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Epidemia nacional

Neste artigo, Paulo Cassiano Jr. aborda o feminicídio e a violência contra a mulher

Artigo
Por Paulo Cassiano Júnior
7 de abril de 2019 - 11h23

Barbara Penna (Foto: reprodução)

“Infelizmente, a gente tem de morrer para conseguir nossos direitos”.

A voz, emitida em tom de desabafo e desencanto, evidencia que ela não morreu. Mas chegou bem perto. Ela é Barbara Penna, goiana de 24 anos, a quem se poderia atribuir, sem o risco da indelicadeza, ao menos dez anos a mais. Também pudera.

No livro da história dos milagres, um capítulo especial será reservado para Barbara. No dia 7 de novembro de 2013, ela foi espancada, queimada viva e atirada da varanda do terceiro andar do prédio onde morava por seu companheiro. Após quatro meses de internação hospitalar (dos quais 38 dias em coma) e mais de 200 intervenções cirúrgicas, Barbara sobreviveu a múltiplas fraturas, à privação parcial da visão, à perda da orelha direita e à queimadura de 80% do seu corpo. A dor que ainda não superou foi a da alma.

Insatisfeito com as sevícias, o companheiro aumentou a temperatura do horror ao atear fogo no apartamento. No incêndio, morreram carbonizados os dois filhos de Barbara (Isadora, de 2 anos, e João Henrique, de apenas quatro meses), além de um vizinho de 76 anos, intoxicado, ao tentar prestar socorro à família.

A morte também bateu na trave da carioca Elaine Caparroz, 55 anos, massacrada por um estudante de Direito 28 anos mais novo, com quem iniciava um relacionamento afetivo. Prevalecendo-se dos seus quase 1,90m de altura e de suas habilidades como lutador faixa-marrom de jiu-jitsu, Vinicius Batista Serra surrou a paisagista durante horas e só foi embora quando julgava já ter consumado seu intento: eliminar a parceira. Atrás de si, deixou um cenário de destruição: móveis quebrados, paredes borradas de sangue e uma mulher nua, desacordada e com o rosto totalmente desfigurado. “Parecia o demônio”, lembra a vítima.

Calvários semelhantes a esses estão pontuados nas biografias de milhares de mulheres brasileiras, com a ressalva de que nem todas conseguem a graça de escapar. Somente nos primeiros 47 dias de 2019, nada menos que 162 mulheres foram vítimas de feminicídio. Isso significa que, no Brasil, uma mulher morre a cada sete horas por razões da condição do sexo feminino. A esses números, alarmantes por si sós, devem ser somadas outras 98 mulheres que, identicamente a Barbara e a Elaine, encontraram sorte para sobreviver. Esses são apenas dados oficiais. Considerando os incontáveis casos de violência que, por medo de represálias, condescendência amorosa ou outros motivos, não são levados ao conhecimento das autoridades (subnotificação), essas estatísticas revelam um quadro ainda mais grave. Nas palavras da pesquisadora Renata Gil, o feminicídio “já configura uma espécie de epidemia nacional”.

Epidemia se combate com profilaxia e antibiótico. É necessário massificar a educação para transformar o paradigma axiológico da nossa sociedade, que legitima a agressividade misógina pelo machismo e pelo patriarcado. Como a mudança desses alicerces culturais é um trabalho em longo prazo, paralelamente a isso é necessário efetivar e até recrudescer as medidas legais contra os agressores. Dez anos após entrar em vigor, a imposição de medidas protetivas da Lei Maria da Penha conseguiu reduzir em 10% a taxa de homicídios contra mulheres em casos de violência doméstica. Deve ser esse o caminho.

Afinal, a gente não tem de morrer para conseguir nossos direitos.