×
Copyright 2024 - Desenvolvido por Hesea Tecnologia e Sistemas

Uso medicinal da maconha é abordado em tese de doutorado da Uenf

Pesquisa de Luciana Barbosa foi uma das dez finalistas do Concurso Nacional de Teses e Dissertações da Associação Nacional de Pós-Graduação

Ciência
Por Redação
26 de maio de 2023 - 9h50
Pesquisadora da Uenf, Luciana Barbosa (Divulgação)

Os usos medicinais de maconha têm sido foco de debates em torno do direito à saúde e sobre políticas de drogas em diversos países do mundo. Mesmo em países onde o acesso legal à planta não foi regulamentado, como no Brasil e no Chile, seus usos têm se difundido como possibilidade de tratamento para diversas enfermidades. A pesquisadora Luciana Barbosa se aprofundou no tema em sua tese de doutorado “Redes canábicas no âmbito da saúde: usos medicinais de maconha, mobilização social e produção de conhecimento”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política, do Centro de Ciências do Homem (CCH-UENF) com a orientação do professor Mauro Campos.

A tese de Luciana Barbosa foi uma das dez finalistas do Concurso Nacional de Teses e Dissertações da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS) em 2022. Em um contexto histórico, a relação milenar entre seres humanos e a cannabis, e sua consequente domesticação, gerou diversas variedades da planta, selecionadas de acordo com os interesses dos povos que a cultivaram. Seus usos vão desde as finalidades terapêuticas à utilização de suas fibras para a confecção de cordas e tecido. O cultivo se tornou imprescindível para a vida no leste asiático e suas sementes foram usadas como importante alimento. Posteriormente, a qualidade de suas fibras permitiu aos chineses a invenção do papel.

Os chineses foram pioneiros na descoberta de fármacos, produzindo a primeira farmacopeia conhecida no mundo. Nela a cannabis é indicada para o tratamento de dor reumática, constipação, problemas relacionados à menstruação, gota, malária e falta de concentração. Também se indicava consumir suas flores com moderação, pois o excesso poderia levar à “visão de demônios” e à impotência masculina.

A alusão mais antiga às propriedades psicotrópicas da cannabis na Índia data de aproximadamente 2.000 anos aC. Em relação aos usos medicinais, a cannabis fora utilizada como diurético, estimulante do apetite e da digestão, no controle da febre e no tratamento da insônia, lepra, doenças venéreas, úlceras, tuberculose, convulsões infantis, dores de cabeça, nevralgia, tétano, disenteria e cólera, ressalvando que o abuso poderia gerar os efeitos opostos, como falta de apetite, perda de memória e sedação.

A seguir, a pesquisadora Luciana Barbosa discorre sobre sua tese de doutorado:

De onde surgiu o interesse em estudar um tema tão polêmico?

Em 2015, eu tentava desenhar meu projeto de doutorado em torno de algo sobre conhecimentos populares e usos de plantas medicinais quando uma amiga me escreveu falando sobre um cultivador e usuário medicinal de maconha que ela havia conhecido e lhe havia contado sobre ter curado um câncer no sistema linfático com o uso de um óleo elaborado com um extrato artesanal da planta. A história do rapaz me deixou interessada. Fiz contato com ele e descobri que conseguia o óleo em uma “rede de distribuição” gratuita da cidade do Rio de Janeiro que lhe enviara a substância pelo correio. Após iniciar o tratamento com o óleo doado, começou ele mesmo a produzi-lo a partir de um cultivo doméstico. Segundo ele, a maconha diminuía seus enjoos, dores, melhorava o apetite e o humor. Uma busca na internet me mostrou que havia outros relatos sobre benefícios medicinais da maconha e algumas matérias de jornais que falavam sobre uma “rede secreta” que distribuía maconha para uso medicinal, realizado, inclusive, por crianças que sofriam com crises convulsivas.

Em meio ao estudo, seu pai descobriu um câncer. Como foi saber que sua fonte de estudo poderia ajudá-lo?

Meu pai, que dois anos antes havia passado por uma cirurgia de pontes de safena, e da qual ainda não havia se recuperado totalmente, foi diagnosticado com câncer de pulmão e iniciaria em pouco tempo o tratamento com quimio e radioterapia. Militar aposentado, e mesmo sendo muito conservador, meu pai ficou interessado no tratamento. Ele utilizou o óleo cotidianamente apenas durante o período da quimioterapia. E os efeitos da maconha eram evidentes, tanto no que diz respeito aos benefícios, como nos efeitos por ele considerados “colaterais”, relacionados à psicoatividade da planta, e que nem sempre lhe agradavam.

Você poderia esclarecer como tem sido possível utilizar de forma medicinal uma planta proibida na maior parte do mundo, inclusive no Brasil?

Nos dois primeiros anos após a regulamentação da importação de produtos à base maconha pela Anvisa, em 2016, o Brasil importou legalmente mais de 78 mil produtos para fins medicinais à base da planta. Além do acesso pela importação, até o ano de 2020, cerca de 100 famílias brasileiras obtiveram na justiça um Habeas Corpus preventivo, que lhes permite cultivar a planta com objetivos terapêuticos. Além disso, associações têm conseguido na justiça o direito de cultivar maconha, produzir um óleo medicinal com a planta e distribuí-lo entre seus associados mediante prescrição médica. Apesar desses fatos, ocorridos nos últimos cinco anos, não há ainda qualquer regulamentação para a produção e cultivo de cannabis que permita o acesso a tais tratamentos, assim como o desenvolvimento de pesquisas com a planta no Brasil. Dessa forma, o acesso a tal tratamento tem ocorrido pela via da judicialização da saúde ou pelo cultivo ilegal, denominado por ativistas como “desobediência civil não violenta”.

Com toda essa dificuldade diante do tema, como você fez para realizar a pesquisa para sua tese?

A tese é constituída por uma extensa pesquisa etnográfica, realizada a partir da observação participante, entrevistas semiestruturadas, levantamento e análise documental de matérias de jornais, revistas, sites e programas televisivos. O trabalho de campo foi realizado entre maio de 2017 e maio de 2019 e pode ser compreendido em três fases: pesquisa exploratória (que consistia basicamente em ir a todos os eventos sobre o tema que eu tivesse oportunidade durante meu primeiro ano de doutorado — de audiências públicas a rodas de conversa promovidas por ativistas); pesquisa junto à Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi), no Rio de Janeiro; e pesquisa em profundidade realizada na Fundação Daya, em Santiago/Chile. É importante ressaltar que realizei toda a pesquisa com bolsa de doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Além disso, a pesquisa no Chile só foi possível devido ao financiamento público integral por meio do Programa Doutorado Sanduíche no Exterior/CAPES.

E como aconteceu a sua inserção no campo, quais lugares você visitou e o que conheceu?

Iniciei os contatos com atores e atrizes chave, conheci algumas associações canábicas e transitei por espaços de debate, no intuito de conhecer a rede de ativistas que se formava ao redor da questão antes de construir os recortes da pesquisa. Essa etapa ocupou todo o primeiro ano do doutorado, no qual acompanhei audiências públicas, workshops, palestras, eventos acadêmicos, um curso de cultivo, uma oficina sobre a elaboração do óleo medicinal de maconha e conheci pessoalmente quatro importantes associações civis que tratam sobre o tema, que denomino na tese como “associações canábicas”, sendo duas na cidade do Rio de Janeiro e duas na cidade de João Pessoa, na Paraíba. E também fui ao Chile, conheci a Fundación Daya e pude acompanhar a rotina de trabalho dessa associação. E um país que tem uma relação com a maconha diferente da nossa.

E o que pôde identificar no contato mais próximo com as associações?

As associações canábicas têm exercido importante papel no processo de politização em torno dos usos da maconha, atuando como ponte entre pessoas interessadas no uso medicinal e os meios para alcançar tal tratamento, acolhendo pacientes e organizando formalmente usuários, cultivadores, médicos, advogados ativistas e pesquisadores de diversas áreas. Também atuam na produção e circulação de conhecimento a partir da construção de parcerias com universidades e institutos de pesquisa, a criação de espaços de informação e debate, além da participação em audiências públicas nas esferas municipais, estaduais e federais.

Parte da sua pesquisa foi realizada na Fundação Daya, no Chile. Por que escolheu este país e como foi a experiência?

O Chile foi o país escolhido pelo fato de ter abrigado em seu território o maior cultivo de maconha para fins medicinais da América Latina, sob a responsabilidade da Fundação Daya. Além disso, segundo a Fundação, cerca de 75% dos seus associados são autossuficientes, ou seja, já aprenderam o suficiente para cultivar a planta e produzir o próprio medicamento, e assim o fazem. Mas, ao contrário do que se pode achar, o Chile não regulamentou o cultivo de maconha, apenas descriminalizou o cultivo e a posse para uso pessoal. Essa característica aproxima o Brasil e o Chile em termos legislativos. Esses três fatores nos fizeram escolher o país como destino para a terceira e última etapa da pesquisa de campo. A experiência foi muito enriquecedora. Poder acompanhar a rotina de trabalho da Fundação, ter contato cotidiano com os pacientes, médicos, terapeutas, realizar muitos cursos de cultivo e de produção dos medicamentos me permitiu realizar uma pesquisa extensa em relação à produção e compartilhamento de conhecimento que no Brasil ainda não era possível, pois as associações ainda estavam se consolidando.

E para quais doenças o uso da cannabis é indicado?

Em 2018 cerca de 800 médicos, de 25 especialidades diferentes, receitaram cannabis no Brasil. De lá pra cá, o número de especialidades e prescrições tem aumentado muito, então é difícil dar essa resposta. Mas posso citar algumas prescrições recorrentes, como tratamentos de epilepsia refratária, Alzheimer, Mal de Parkinson, câncer, dor crônica, ansiedade, depressão, insônia, adicção, além de diversas doenças raras.

E quais são os princípios ativos contidos nesses óleos?

Os óleos artesanais feitos nas associações brasileiras têm todos os canabinoides contidos na planta. De maneira geral, os óleos são assim, e a padronização é realizada pela seleção genética das sementes e clones. Há também os medicamentos importados produzidos com todos os canabinoides da planta (chamados de full spectrum) ou com Canabidiol (CBD) isolado. A maconha tem dezenas de canabinoides, dentre os quais os mais conhecidos são o CBD e o THC. Muitas vezes as pessoas se referem ao CBD como único composto medicinal da maconha, reduzindo o THC ao efeito psicoativo. Inclusive, muitas vezes ouvimos “CBD” como sinônimo do óleo de cannabis. Mas essa compreensão é equivocada e está associada a questões morais e não científicas. Já temos pesquisas suficientes para afirmarmos que ambos os canabinoides são responsáveis pelos efeitos medicinais da planta, junto a outros que estão sendo estudados. Então os óleos não são de canabidiol, mas de cannabis/maconha, podendo ter maior ou menor concentração de determinados canabinoides, de acordo com a variedade da planta.

Por que a cannabis faz efeito no corpo humano?

O que biomédicos descobriram, em especial Raphael Mechoulan e sua equipe, é que temos em nosso corpo um sistema, batizado de sistema endocanabinoide, por meio do qual nós produzimos substâncias análogas às da maconha em nosso organismo. Por isso temos receptores específicos para os canabinoides, sejam eles produzidos pelo nosso organismo (chamados endocanabinoides) ou pela planta (fitocanabinoides). Um filme muito bom para entender um pouco melhor sobre isso é “O cientista”. Está disponível gratuitamente no YouTube.

Como funciona o trabalho realizado e qual a importância de associações como a Apepi que você visitou durante sua pesquisa?

As associações têm papel fundamental tanto na construção de vias de acesso ao tratamento com cannabis, como no incentivo à pesquisa e ao debate público. Com o alto preço dos medicamentos importados ou disponibilizados em farmácias, e as dificuldades de cultivar a planta relacionadas ao proibicionismo, as associações têm sido importantes fornecedoras dos óleos medicinais de cannabis. É importante também frisar que foi a organização social de pessoas interessadas (pacientes, mães, cultivadores/as, médicos/as, advogados/as, ativistas antiproibicionistas) que promoveu a ascensão do debate acerca da maconha para fins medicinais e o acesso (primeiro ilegalmente, hoje com autorizações judiciais). A organização da sociedade civil também foi extremamente relevante para o desenvolvimento de conhecimento experiencial e de pesquisas científicas, uma vez que o debate público tem exigido da ciência posicionamentos. Então eu entendo que foi essa organização social, que chamo de ativismo terapêutico, que impulsionou uma série de discussões e transformações nos últimos anos em torno dos usos medicinais de maconha no Brasil.

O que você pode concluir no seu estudo sobre a produção do óleo medicinal?

As conclusões apontam que o conhecimento em torno dos usos medicinais de maconha, como dosagens, variedades de plantas, técnicas de cultivo e a elaboração do óleo artesanal, têm sido produzidos principalmente por uma rede colaborativa por meio da qual circulam informações, relatos de experiências, sementes, mudas, flores e tudo o que diz respeito à maconha. Diferentemente do que ocorre com outros medicamentos vendidos na farmácia, no caso da cannabis o conhecimento e as formas de uso foram construídos primeiro por usuários, cuidadoras e cultivadores, e, posteriormente, em decorrência das demandas sociais, respaldadas pelo conhecimento científico, médico e jurídico — ainda que tais instituições estejam envoltas em muitas controvérsias no que diz respeito a esse tema.

Como essa rede colaborativa funciona?

A ideia de rede nos ajuda a pensar as relações entre atores e atrizes sociais que se conectam, trocam informações entre si, mantendo uma constante produção e circulação de conhecimento. No caso dos usos medicinais de maconha, a troca de informações entre esses atores permite que novos usuários aprendam sobre o tratamento de maneira detalhada, já que os médicos muitas vezes não detêm conhecimento suficiente sobre o assunto. Isso ocorre especialmente nesse caso por tratar-se de uma planta proibida em grande parte do mundo nos últimos quase 100 anos. À revelia da legalidade, usuários continuaram produzindo e compartilhando conhecimento a partir das próprias experiências e pesquisas pessoais — desde formas de cultivo às formas de uso. Nessa circulação, as pessoas relatam, comparam, refletem sobre suas experiências, e, conforme se mantém ligados uns aos outros, ainda que indiretamente, durante um longo período, o conhecimento vai sendo produzido e testado, baseado nas informações que circulam. A rede canábica é particularmente interessante por reunir diversos atores sociais, como usuários medicinais e suas famílias, ativistas antiproibicionistas, médicos, instituições públicas e universidades, que dialogam sobre um tema em comum. Essa diversidade de perspectivas produz uma grande variedade de conhecimentos.

Além da tese, que está disponível online, você publicou outros materiais sobre a pesquisa?

Publiquei três artigos por enquanto, todos em revista científicas de acesso público e gratuito. O artigo na revista Mediações, onde trato dos resultados gerais da tese; a publicação no dossiê sobre ação coletiva e movimentos sociais da Revista Teoria e Cultura; e o artigo publicado no dossiê “Antropologia a partir dos medicamentos”, da Revista Ilha, onde trato da construção da maconha como medicamento a partir da pesquisa na Fundação Daya.

Fonte: Ascom/Uenf