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Crianças ainda sofrem com atraso na alfabetização por causa da pandemia

Segundo o Inep, porcentagem de alunos do 2º ano que não sabem ler e escrever mais que dobrou de 2019 a 2021

Geral
Por Clícia Cruz
18 de setembro de 2022 - 0h01

Ariella Gomes Reis tem nove anos, e Walmir Gonçalves Basílio, 11. Os dois já sabem o que querem ser no futuro. Ela sonha em ser médica, porque tem paixão por cuidar das pessoas. Ele quer ser policial e já se imagina até de farda. Além de já projetarem as carreiras, também têm em comum um obstáculo: ainda estão aprendendo a ler. O processo de aprendizado e socialização de crianças, sobretudo na alfabetização, foi prejudicado pela pandemia de Covid-19, dizem profissionais da Educação e especialistas. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) divulgou, nesta sexta-feira (16), dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) que mostram que a porcentagem de crianças do 2º ano do ensino fundamental que ainda não sabem ler e escrever nem mesmo palavras isoladas (como “mesa” e “vovô”) mais do que dobrou no Brasil entre 2019 e 2021. Calculado a partir do desempenho de uma amostra de alunos de escolas públicas e privadas em uma prova nacional, o índice subiu de 15% para 34% nesses dois anos, justamente quando as aulas presenciais foram suspensas por causa da pandemia de Covid-19.
Na tentativa de minimizar as perdas e recuperar parte do tempo perdido, escolas públicas e privadas de Campos estão recorrendo a métodos diversos para estimular seus alunos.


Na Escola Municipal Custódio Generoso Vieira, no Parque Prazeres, em Guarus, a turma da tia Roseni lê um poema. Cada linha é dita com muita empolgação pelos alunos. O brilho nos olhos é nítido, mas por que tanta alegria? A pequena Ariella responde: “Agora, quando saio na rua com minha mãe, sei ler os nomes das lojas, escrevo bilhetes. Antes, ficava triste, pensava que nunca ia conseguir aprender”, diz a menina, que cursa o 3º ano do Ensino Fundamental. A mãe dela, Arlene, conta que, quando foi informada de que a escola estava preparando uma turma de reforço escolar, fez questão de inscrever a menina. “Chegaram a me dizer que ela tinha problemas de aprendizagem. Mas, quando conversei com a professora Roseni, ela me disse que ia tentar e, três meses depois, minha filha está lendo. Manda mensagens no grupo da família, escreve cartas para nós. Todo esforço vale a pena e ver o empenho dessa professora é emocionante”, diz a mãe.


Walmir já está cursando o 6º ano, mas só este ano aprendeu a ler. Para ele, o reforço escolar é um presente. O menino tem prazer em estudar e se mostra muito participativo durante as aulas. Ele conta que sentiu falta da escola e que os métodos da professora têm ajudado. “A gente aprende com jogos, brincadeira, e isso me ajudou muito, porque agora eu consigo entender melhor as matérias”, diz o menino.

Reforço de conteúdo para diminuir defasagem
A professora Roseni Correia de Freitas alfabetiza crianças há 35 anos e relata que a pandemia realmente foi um fator que “prejudicou de forma nunca vista antes” o processo de alfabetização, porque as crianças ficaram praticamente dois anos sem o ambiente escolar. Para estimular os pequenos, ela se vale de diversos métodos, como o uso de cartazes, jogos, bingos, poesias e tudo mais que seja capaz de despertar o interesse dos alunos. A turma é mista, composta de crianças de várias séries do ensino fundamental, todos necessitando, ainda, do processo de alfabetização.
Roseni se emociona ao contar sobre o início do projeto. “Quando eu vi nossa realidade, 80 crianças sem saber ler e escrever eu fiquei muito triste e preocupada. A alfabetização é o alicerce da Educação. Como vai ser o futuro dessas crianças se nós não intervimos? A leitura e a escrita são a base. Com o diagnóstico de cada criança, com a sondagem feita, nós desenvolvemos material específico para atender às necessidades de cada um. O resultado está aqui. Cada um aprendendo no seu tempo, porque cada criança é uma”, diz a professora.


A diretora pedagógica da secretaria municipal de Educação, Ciência e Tecnologia (Seduct), Tânia Alberto, explica que a Prefeitura de Campos criou, ainda durante a pandemia, um programa de reforço escolar online, no qual atuaram 200 professores para atender aos alunos. “Já em 2022, nós criamos um programa de reforço escolar, em que cada escola pode elaborar o seu projeto, de acordo com as suas necessidades, disponibilidade, espaço e perfil”, explicou.


Ela explica, ainda, que a rede também mantém o programa Tempo de Aprender, que oferece às escolas um mediador de aprendizagem, que é um assistente de alfabetização. “Esses profissionais atuam nas turmas de 1º e 2º ano, auxiliando o professor nessa tarefa”, diz.
Ainda segundo Tânia, a Seduct vai iniciar, ainda em 2022, a avaliação de fluência verbal de todos os alunos até o 6º ano de escolaridade. O processo deve ser concluído até fevereiro de 2023 e vai subsidiar a elaboração de novas estratégias de reforço escolar.


Desafios também na rede particular

Em uma escola particular, a professora Isabela Melila, alfabetizadora, explica que, nesse momento de pandemia, mais do que nunca, o apoio e a participação da família são necessários.
“Muitas das nossas crianças não foram estimuladas no processo inicial da alfabetização, que é aquele momento de utilizar a tesourinha, aprender a pegar o lápis, desenhar. Isso tudo, que é visto, muitas vezes, como uma brincadeira, na verdade é o início do processo e temos crianças que não tiveram esse momento porque os pais nem matricularam nas escolas durante a pandemia. Temos alunos que estão na escola pela primeira vez. Por isso, tudo que damos em sala é preciso que seja reforçado em casa”, ressalta.


A coordenadora Ana Gisela Vierling explica que um ano não será suficiente para recuperar o tempo perdido, mas diz que a escola adotou uma estratégia para recordar o conteúdo já dado no primeiro bimestre. A partir do segundo, o conteúdo começa a ser mesclado com novas matérias. “Foi preciso ir com calma, trabalhando o incentivo, tudo de forma mais lúdica, até porque, para eles, foi a primeira vez que fizeram uma avaliação em sala”, conta.

Estímulo é a chave do aprendizado
Para a neuropsicopedagoga Keila Chicralla, especializada em neurociências pedagógicas, o desafio do professor é utilizar diversos estímulos para prender a atenção desse aluno que ficou muito tempo em casa, principalmente aqueles que têm mais dificuldade de concentração.
“A criança tem um tempo que consegue se concentrar. Depois de 15, 20 minutos olhando para um quadro ou ouvindo sobre determinado assunto, ela se dispersa. O professor precisa utilizar técnicas para chamar atenção do aluno, utilizando estímulos sonoros, vídeos, mudando a forma de apresentação da matéria, saindo do quadro, apresentando o material em um cartaz. De tempos em tempos é preciso renovar a atenção”, explica Keila.


Ela também chama atenção para a necessidade de especialização dos professores. “O professor dessas crianças precisa ser um alfabetizador. Ele precisa dominar as técnicas. É muito necessário investimento na capacitação do professor, porque ele é um profissional que não pode parar de se atualizar. A situação da alfabetização já não era boa no nosso país. Com a pandemia, piorou muito e é urgente que se propicie ferramentas para corrigir o atraso que uma grande fatia dos estudantes carrega desde antes da pandemia”, diz a neuropsicopedagoga.