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Quilombos entram pela primeira vez no recenseamento do IBGE

Levantamento vai apontar as necessidades das sete comunidades remanescentes de escravizados de Campos

Campos
Por Redação
7 de agosto de 2022 - 0h05

Os recenseadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) já estão nas ruas de Campos. Esse ano, pela primeira vez, os sete quilombos com Carta de Reconhecimento que existem no município receberão a visita dos pesquisadores. É a primeira vez, também, que membros destas comunidades vão responder oficialmente ao Censo na condição de quilombolas e poderão registrar as condições em que vivem atualmente. O Jornal Terceira Via foi até quatro quilombos e conversou com moradores e lideranças sobre mudanças percebidas desde que deixaram de viver em condições análogas à escravização e no que ainda é necessário avançar para que sejam capazes de exercerem cidadania plena, como a maior parte dos demais moradores da cidade.

O quilombo de Conceição do Imbé fica distante da área central da cidade. A maioria dos seus membros são remanescentes de trabalhadoras e trabalhadores do corte da cana-de-açúcar para usinas do entorno. O trabalho é considerado análogo à escravidão porque se dava, basicamente, em troca de comida. Os relatos são de que homens, mulheres e crianças saíam antes de o sol nascer para o canavial e, na metade do dia, recebiam um vale com valor referente ao período trabalhado. Com esse vale, eles compravam os alimentos e, quando dava, alguma roupa e calçado, no estabelecimento da própria usina.

Não havia escola, estrutura de saúde pública, saneamento ou meio de transporte para acessar os direitos básicos de um cidadão que mora na área central ou mais próximo a ela.

“Lembro que tinha uns 17 anos quando, no trabalho, cortei um dedo. Fomos procurar atendimento nos Plantadores de Cana e, depois que saímos, fomos até o Mercado Municipal. Quando saímos do Mercado, não sabia voltar para a Rodoviária. Fiquei perdido na Barão do Amazonas”, conta Edison Rocha, de 66 anos, presidente da Associação Quilombola de Conceição do Imbé.

Memória da fome
Edison conta que chegou a trabalhar em uma usina que empregava a maioria dos moradores da região e viveu os tempos de fome, no período da falência, quando todos os funcionários ficaram sem receber. Ele conta que, nessa época, eles moravam na terra que hoje é deles, mas não podiam plantar. Foi a banana pêra-maçã, típica do local, que salvou adultos e crianças e deu origem ao “Cantão”, prato típico dos quilombos da região do Imbé. Ele analisou o quanto a vida melhorou até aqui e o quanto ainda precisa avançar.

“As pessoas não conheciam a gente e hoje já conhecem como alguma coisa. A gente plantava, mas tinha dificuldade para comercializar, então surgiu a Feira da Roça, ainda no chão, e depois a gente conseguiu as barracas. No final dos anos 80, tínhamos trator, irrigação. O pessoal passou a se alimentar melhor. Mas ainda falta muita coisa. Falta educação, porque aqui só tem uma professora para a escola toda, que é de Lagoa de Cima e vem na própria moto. Falta saúde, porque estamos com o posto médico fechado, abrindo de 15 em 15 dias com clínico, estamos sem ambulância. Também estamos sem ônibus por causa da condição das estradas. A gente tem muito que melhorar ainda”, pontua.

Vida longe do Centro
Próximo à Conceição do Imbé estão localizados três quilombos que estão entre os mais distantes da área central da cidade, os quilombos de Aleluia, Batatal e Cambucá, chamados coletivamente de ABC do Imbé.

Luiza Honorato, de 23 anos, e dona Nilce Helena Teixeira, de 75 anos, vivem no quilombo de Aleluia, onde nasceram. Mais de 50 anos separam as experiências das duas, mas ambas vivem os mesmos reflexos da falta de acesso a serviços públicos. Luiza se formou em massoterapia, mas tem dificuldade de chegar ao Centro da cidade para trabalhar.

“Eu trabalho porque é para fazer meu nome como profissional, na profissão que eu escolhi, porque a gente nem vê nenhum lucro. Saio daqui de manhã para atender, às vezes, uma ou duas pessoas. Na volta, tenho que ficar no Centro ou pegar o ônibus até Rio Preto e, graças a Deus, tenho alguém para me buscar lá”, conta a jovem.

Já dona Nilce Helena trabalhou uma vida inteira nos canaviais. Ela relata que sempre pegou no trabalho pesado, muitas vezes, na chuva, atravessando valas de vinhoto para levar os fardos de cana para o caminhão. Com a reforma agrária nos anos 80, a comunidade recebeu a posse da terra e dona Nilce se tornou agricultora. Desde a criação da Feira da Roça, no final daquela década, ela vende lá sua produção. Hoje, não é a idade que ameaça a continuidade da sua atividade.

“A gente sai daqui de manhã bem cedo, de ônibus. Quando chega em Rio Preto, as pessoas sobem e acham que a gente não tem o direito de ir sentado. Muitas vezes não temos nem como levar todas as mercadorias. Quando chegamos lá, pagamos pela montagem da barraca e quando acaba, tenho que ficar a tarde toda na rodoviária, porque não tem ônibus mais pra voltar. E pensar que já tivemos estrutura para fazer a feira. A gente sabe que não pode desistir, mas fica muito difícil, porque é uma luta que nunca acaba”, lamenta ela, que é uma das mais velhas do quilombo.

Trabalho, cidadania e ancestralidade
No documentário “Griôs – Histórias que os livros não contam – Memórias dos Sete Quilombos de Campos dos Goytacazes”, disponível no Youtube, Anecil Martins Xavier, de 66 anos, morador do Quilombo de Cambucá também fala da relação com a Feira da Roça.

“É a mesma luta continua até hoje. Sair com a mercadoria para lá é bem difícil. Por certo tempo, melhorou um pouco, mas agora estamos na mesma situação. Quem tem condução para levar a mercadoria, continua. Quem não tem vai deixando de participar”, revela ele.

Rafaela Cruz é moradora do Quilombo de Lagoa Feia e pontua os avanços e dificuldades do quilombo em que nasceu e também de Sossego.

“Nós, do Quilombo Lagoa Fea e Sossego, sentimos a necessidade no acesso às políticas públicas como saúde (ginecologista, dentista e ambulância), uma escola reconhecida como quilombola, transporte e acesso à Lagoa Feia como ponto turístico e geração de renda para a comunidade”, pontua.

Reconhecido em 2019, o Quilombo de Custodópolis deve ser o último a receber o senso, por estar localizado na área urbana. É exatamente esse fator que faz com que os quilombolas da antiga “Cidade de Palha”, como era conhecido o vilarejo erguido nas “terras de Custódio”, não sofram os mesmos problemas dos demais.

“Devido ao fato de sermos um quilombo urbano, o que a gente tem buscado fomentar é a cultura e a nossa ancestralidade. Como a gente está dentro da cidade, os problemas de UBS, falta de ônibus e estradas que nossos irmãos têm, a gente não tem. Nossa luta é resistir na ancestralidade” diz Rodrigo Conceição Amaro, 39 anos, presidente da Associação Quilombola de Custodópolis.

Garantia de direitos
Lucimara Muniz é representante da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos, que foi parceira do IBGE no planejamento do recenseamento. Para ela, esse é um momento de levantamento de dados que deverão refletir na aplicabilidade de políticas públicas que garantem direitos estabelecidos das comunidades quilombolas, que são reconhecidas pela Constituição de 1988.

“Com esse senso, vamos ter uma base de quantos somos no país. Hoje, dados da Fundação Palmares dizem que somos 2500 quilombos no Brasil, mas pela Conaq somos mais de seis mil. Pelo levantamento já feito pelo IBGE, somos em mais de cinco mil. No nosso município temos sete comunidades quilombolas reconhecidas pela Fundação Palmares, outras 15 na região Norte Fluminense, uma no Noroeste, além de outras 52 no estado. Esse senso vem reforçar cada vez mais que as políticas públicas sejam aplicadas, para que essas comunidades sejam respeitadas nas suas tradições, ancestralidade e garantia de direitos”, disse Lucimara.

Prefeitura se pronuncia
Em nota a Prefeitura de Campos informou que as secretarias municipais de Obras e Infraestrutura e de Agricultura, Pecuária e Pesca têm recuperado estradas em diversas frentes e que nos próximos 15 a 20 dias, haverá licitação para recuperação de mais cinco estradas municipais.

No entanto, nenhuma das estradas citadas pelo município compreende o trecho entre o entroncamento da estrada de Santa Cruz com a estrada que vem de Tapera, até Conceição do Imbé, que garante acesso fácil às comunidades do Imbé.

Também em nota, a Prefeitura reafirmou a oferta de serviços de saúde por meio do Programa de Assistência aos Assentamentos e Quilombolas (PAAQ), mas não mencionou as Unidades Básicas de Saúde fechadas.