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Governo do Estado reconhece Quilombo de São Fidélis, mas comunidade luta por título da terra

Em 1820, a propriedade pertencia a João Manuel de Souza, o barão de Vila Flor; após a abolição, muitos ex-escravizados permaneceram como colonos

Região
Por Ocinei Trindade
12 de junho de 2022 - 0h04
Sede | Fazenda São Benedito é propriedade privada, mas comunidade quilombola luta para retornar ao local

A Fazenda São Benedito é um dos maiores patrimônios arquitetônicos e culturais de São Fidélis, no Norte Fluminense. Em 1820, a propriedade pertencia a João Manuel de Souza, o barão de Vila Flor. Após a abolição, muitos ex-escravizados ficaram morando como colonos. A fazenda foi vendida para vários fazendeiros. A partir de 1960, descendentes de negros escravizados foram dispensados do lugar. A terra é defendida por historiadores e comunidade negra como Quilombo São Benedito. A Lei Estadual 9.704/22, sancionada pelo governador Cláudio Castro recentemente, reconhece o Quilombo São Benedito como Patrimônio Histórico e Cultural do Estado do Rio de Janeiro. Porém, a propriedade é particular e os descendentes de ex-escravizados ainda lutam pelo direito e retorno à terra.

Frank Felles preside Associação Quilombola em São Fidélis

A Associação Quilombola São Benedito existe há 16 anos. É presidida por Frank Antônio Felles da Silva desde 2014. Ele conta que a comunidade quilombola existe, mas que não é completamente reconhecida, necessita de um documento, o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTDI). Em 2018, esse processo para a emissão da documentação chegou à Casa Civil, e depende da Presidência da República para garantir o reconhecimento de título e posse da terra da Fazenda São Benedito. Atualmente, a propriedade pertence ao empresário Badger Hentzy, responsável pela recuperação e restauração do solar centenário, concluídas em 2019. A reportagem não conseguiu falar com ele.

“O RTID é o carro-chefe de todas as comunidades quilombolas do Estado do Rio de Janeiro. Quem não tem, passa por muitas dificuldades. Nós temos documentação desde a época da escravatura. A gente precisa comprovar que somos uma comunidade quilombola. Estamos até hoje lutando pelos nossos direitos. Brigamos pela titulação para que possamos voltar para a terra de fato. O processo está na Casa Civil, em Brasília. A gente conseguiu passar por lei estadual. Agora precisamos voltar para a terra com a titulação, para que, de fato, a gente tome posse da comunidade, morando ali”, explica Frank.

Foto da antiga fazenda e quilombo São Benedito

A deputada estadual Zeidan (PT) é autora da lei que reconhece o Quilombo São Benedito como patrimônio. “No passado, a fazenda foi considerada modelo, com grande desenvolvimento econômico e produção de açúcar. Esse reconhecimento como patrimônio histórico e cultural a partir de agora nos permite que o quilombo seja preservado”, resume.

Lucimara Muniz faz parte da Coordenação Nacional de Comunidades Quilombolas. Ela é  vice-presidente da Associação Estadual de Comunidades Quilombolas e presidente do Instituto de Desenvolvimento Afro Norte Noroeste Fluminense. Apesar de elogiar a aprovação da lei estadual, diz que ainda é insuficiente.

Solar da Fazenda São Benedito


“É mais uma etapa de conquista. Aguardamos o título definitivo da terra. O processo  encontra-se na Casa Civil para desapropriação do território. Ter descrito o reconhecimento desta comunidade e o seu tombando reforçam a importância da identidade, ancestralidade  e pertencimento quilombola”, diz.

Integrantes da Comunidade Quilomboa São Benedito (Foto: Divulgação)

A historiadora Graziela Escocard considera importante o tombamento do Quilombo São Benedito, oriundo da Fazenda do Barão de Vila Flor “Mesmo após tanto tempo de ocupação na região como quilombo, espero que a comunidade ganhe visibilidade. Isto marca a história de luta e resistência dos moradores descendentes de escravizados da região de São Fidélis”, avalia.

Pesquisa histórica

Em 2018, a doutora em sociologia política Fernanda Sabino publicou, pela Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), a tese “A formação do sujeito político a partir das redes pessoais: o fazer da autonomia em duas comunidades quilombolas do Norte Fluminense”. Por quatro anos ela se dedicou a pesquisar descendentes de escravizados em Machadinha, Quissamã, e em São Benedito, São Fidélis. Ela considera o Quilombo São Benedito como alvo de muitos conflitos de interesses.

Fernanda Sabino é doutora em sociologia política pela Uenf

“O conflito existe. As terras e o casarão da Fazenda São Benedito são de propriedade privada. A comunidade quilombola de São Fidélis está desterritorializada. Esse processo de afastamento das pessoas que viviam ali existe desde os anos 1960. Os descendentes dos ex-escravizados começaram a ser removidos e saíram aos poucos”, destaca.

Para Fernanda, o reconhecimento como patrimônio é importantíssimo, pois a Fazenda São Benedito faz parte da história de São Fidélis. “A produção agrícola era enorme e abastecia toda a região. A titulação para comunidades indígenas e quilombolas não é questão financeira, como muitos pensam. Mas tem significado histórico, de memória cultural e ancestralidade. A reivindicação do território para retornar à terra é justa, mas é um grande desafio, já que a fazenda está sob a posse de um empresário”, conclui.