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Casas sob constante risco às margens do Rio Paraíba do Sul

Em Campos, existem ainda casas próximas à BR-101 que expõem moradores ao tráfego intenso e a acidentes fatais

Campos
Por Ocinei Trindade
24 de abril de 2022 - 0h01
Na Beira do Perigo (Foto: Silvana Rust)

Tragédias e mortes por conta de chuvas intensas, deslizamento de encostas e alagamentos em áreas urbanas têm sido frequentes em cidades fluminenses, como Petrópolis, Paraty, Angra dos Reis, além da capital. Os riscos de problemas semelhantes aparecem também no extenso município de Campos dos Goytacazes. Na zona rural, periferia e trechos urbanos há centenas de construções irregulares ou em péssimo estado de conservação que ameaçam vidas humanas. Especialistas em urbanismo e em ações sociais criticam o poder público pela falta de política habitacional e preservação de áreas, como margens de rios e lagoas. Moradores de vários locais considerados inseguros se dividem entre ficar e se mudar.

Fundão | Construções precárias se estendem ao longo da margem do Paraíba (Foto: Silvana Rust)

Casas erguidas em locais proibidos por lei são facilmente identificadas em Campos. No bairro do Fundão, Guarus, entre o Rio Paraíba do Sul e a BR-356, há várias construções em situação irregular. Algumas delas podem ser observadas das pontes General Dutra e Alair Ferreira, próximo ao Centro. Gustavo Manhães integra a Associação Norte Fluminense de Engenheiros e Arquitetos (Anfea). Ele chama à atenção para os riscos nessa área, além de outras do município.

“A legislação federal não permite construções próximas a rios e lagoas, visando proteger o meio ambiente. No entanto, a inoperância do poder público e a falta de fiscalização facilitam as construções irregulares. Sabemos do problema econômico e social, e da preferência das pessoas ocuparem áreas em locais urbanos; não é comum isso ocorrer fora do eixo urbano. Erguer moradias perto de água não oferece boas fundações. Não há segurança garantida. O risco é iminente, sem falar em crime ambiental com despejo de esgoto. Este problema grave a gente observa em Campos e no restante do Brasil”, diz.

Pedlowski | Padrão climático
extremo vai continuar a vigorar

O geógrafo e professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense, Marcos Pedlowski, diz que as construções tão próximas de rios são preocupantes.

“Construções perto de rios, pontes e encostas nunca são boa coisa. O problema é que as pessoas às vezes chegaram antes da ponte ser erguida, como é o caso da Alair Ferreira. Estão ali nessa convivência turbulenta com o rio há muitas décadas. O ideal é que a gente não tivesse essa situação. Muitas pessoas ocupam essas áreas não por quererem simplesmente.  São os espaços que sobraram para elas. Retirá-las de áreas como esta, perto da região central, para uma periferia como Parque Eldorado, Tapera ou Ururaí, por exemplo, sem dar condições para elas manterem sua renda, não é simples. Sabe-se que construir conjunto habitacional em lugar isolado piora a vida das pessoas. Por isto é um problema tão complexo”, considera.

Marilândia Paes | “A casa tem problemas, mas não tenho para onde ir”

Ainda às margens da rodovia BR-356 e do Rio Paraíba, na Aldeia I, a reportagem encontrou a aposentada Marilândia Paes. Ela saiu de Pernambuco há 40 anos e foi morar no local.  Divide a casa com os filhos e netos. A construção é cheia de infiltrações e rachaduras. Há ainda riscos de acidentes de trânsito. “É muito perigoso, sei dos riscos, pois já vi vários acidentes acontecerem aqui. Há muito barulho também. A casa está cheia de problemas, mas não tenho para onde ir. Sairia se pudesse, porém não tenho alternativa”.

Aldo Chaves | No Aldeia I há 55 anos, pedreiro crê que não há perigo

Também na Aldeia I, o pedreiro Aldo Chaves está construindo uma casa sem licença na beira de um barranco, às margens do Rio Paraíba. Ele diz que vive no local há 55 anos. Chegou a se mudar para um conjunto habitacional próximo, mas acabou retornando por questões familiares. Aldo não considera a área de risco. “Aqui é alto. Mesmo nas últimas enchentes, a água não chegou a alagar o terreno. Acho que não tem perigo. Sempre vivi aqui e nunca tive problemas. Pretendo ficar”.

Dramas familiares e desejo de mudar

No subdistrito de Guarus há centenas de casas em péssimo estado, erguidas irregularmente às margens de lagoas, canais e rodovias. No Parque Santos Dumont, a oito quilômetros do Centro, há pelo menos 200 resimyrdências ao lado da BR-101 em situação de risco. Ao longo das últimas décadas, atropelamentos e mortes são registrados no local. Um deles tirou a vida de Marco Antônio, de apenas 9 anos, no ano de 2012. Ele morreu em frente de casa. A irmã, Tamyres dos Santos, lembra da tragédia:

Tamyres e Ivanessa com avó Doralina: morte de membro da família na BR-101

“Ele tinha apenas 9 anos de idade. Aqui, a velocidade dos carros é sempre alta. É muito perigoso. É uma dor que todos nós carregamos com essa morte. Tenho vontade de sair daqui, mas dependemos de uma casa cedida pela Prefeitura. Nos candidatamos em cadastros municipais, mas nunca houve respostas”, conta.

Ivanessa dos Santos é outra irmã do menino morto. Ela vive com a avó, Doralina Correia, em uma casa minúscula onde várias pessoas se espremem no espaço apertado. Diz que sonha em deixar o local. “Eu me mudaria, com certeza. Já perdi muito aqui”, desabafa. Apesar dos dramas e das péssimas condições de moradia, a matriarca resiste em se mudar. “Morei aqui a vida inteira. Apesar das dificuldades, me acostumei. Mas, se a maioria quiser sair, iria também. Só que não temos para onde ir”, diz a idosa.

Casas em péssimas condições p´roximas da BR-101 e Avenida Carmen Carneiro, em Guarus

Moradores do local se dividem entre sair e ficar, apesar das condições ruins e dos riscos permanentes de acidentes. Um homem que pediu para não ser identificado diz que mora ali há 50 anos. “Sairia para um lugar melhor. São cerca de 200 imóveis aqui. Estamos cadastrados na Prefeitura há anos. Creio que a maioria quer sair por melhores condições de vida”, diz. A dona de casa Khetre Moreira, de 23 anos, pensa igual. “Tenho dois filhos, me inscrevi na Prefeitura para receber uma casa, mas nunca consegui. Gostaria de mudar para uma casa melhor”, revela.

Durante o governo da prefeita Rosinha Garotinho (2009-2016), o programa habitacional “Morar Feliz” pretendia construir 10 mil residências populares. Apenas a metade foi concluída. Várias famílias do Parque Santos Dumont, às margens da BR-101, foram transferidas para os novos conjuntos habitacionais à época. Entretanto, muitas permaneceram no local. O governo Wladimir Garotinho se posicionou por meio de nota a respeito de áreas de risco e reivindicações por moradias em lugar seguro:

“A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social informa que as famílias foram retiradas de quase todas as áreas de risco e realocadas em conjuntos habitacionais do Programa Morar Feliz. Algumas pessoas retornaram para os locais de origem e outras não aceitaram sair dos imóveis. O município está atualizando o número de moradores em áreas consideradas de risco, e segue dialogando com o Governo Estadual e Federal para minimizar o déficit habitacional do município”.

Luciane Silva | “Famílias em áreas de
risco enfrentam racismo ambiental”

A socióloga e professora da Uenf, Luciane Silva, diz que famílias em áreas de risco enfrentam racismo ambiental. “Isto fica bem exemplificado quando observamos as populações atingidas não só em Campos, mas em outras cidades como Rio de Janeiro, Petrópolis e outros estados. Geralmente, são pessoas não brancas e que não têm poder aquisitivo para pagar moradia em perímetro urbano. Campos é um caso interessante para pensar sobre a vida em condomínios fechados. A especulação imobiliária é enorme. Há uma verticalização na região da Pelinca, numa cidade que tem o maior território do Estado do Rio de Janeiro. Não temos uma Secretaria de Habitação. O caso da Novo Horizonte é exemplar para pensar Campos e o Brasil, exatamente porque a Prefeitura aceita que 700 famílias sejam despejadas do local”, afirma.

Clima, pesquisas e soluções

O professor Marcos Pedlowski lembra que o padrão climático extremo deve vigorar nas próximas décadas. “Isto tornará essa discussão mais presente e necessária. Como vimos em Petrópolis, as áreas mais frágeis em que os pobres encontraram espaço para se estabelecer, serão as mais duramente atingidas pelos eventos meteorológicos extremos. A solução seria uma ação democratizante do Estado em termos da ocupação do solo urbano, pois só assim não teríamos as pessoas pobres habitando áreas de risco. Mas para isso teríamos que ter governos que estivessem dispostos a realizar reformas estruturais, o que só acontecerá com muita pressão e organização da maioria da população”, diz.

Ana Paula Arruda | “Urbanização
no Brasil é excludente e desigual”

A professora Ana Paula Arruda atua no Programa de Pós-Graduação em Planejamento Regional e Gestão da Cidade, da Universidade Candido Mendes. Ela diz que o modelo de urbanização no Brasil é excludente e desigual.  “É importante que o Município faça um mapeamento das áreas de risco e pense também nas melhores alternativas, à luz dos instrumentos de gestão urbana previstos no Plano Diretor. Campos já vivenciou vários programas habitacionais. Mas é muito importante atentar para a qualidade desses projetos; e se, de fato, eles garantem inclusão urbana e o direito à cidade”, considera.

O Núcleo de Pesquisas e Estudos Socioambientais da Universidade Federal Fluminense analisa os riscos relacionados aos desastres ambientais, como inundações e constantes alagamentos em Campos dos Goytacazes. A cientista social Érica Tavares conta que o grupo já trabalhou em áreas de Ponta Grossa, Morro do Coco, bairros de Guarus e Tapera, entre outras. Atualmente, estão na localidade de Ururaí e no distrito de Santo Eduardo:

“Infelizmente, não há estimativa precisa sobre a situação de moradias em risco em Campos. Este é um primeiro passo para implementação de medidas. Antes de qualquer intervenção, o poder público deve realizar estudos sobre as condições dessas áreas e avaliar as alternativas possíveis com participação da população. As intervenções realizadas em Campos, principalmente através de políticas habitacionais, não consideraram a perpcepção dos afetados, nem promoveram mecanismos de participação. Novas moradias podem ser a solução para algumas famílias. Entretanto, para muitas delas, são necessárias políticas urbanas que considerem a possibilidade de permanência desses grupos sociais nos territórios em que sempre viveram, desde que haja melhoria das condições ambientais nesse entorno”, afirma.

A assistente social e coordenadora de pesquisas do núcleo da UFF, Antenora Siqueira, explica que a classificação das localidades em “áreas de risco” não é algo consensual.

“É preciso saber qual risco e risco para quem. É preciso ouvir os afetados ou atingidos por inundações, por exemplo. Muitas vezes é a violência e não as águas os maiores riscos;  e que estratégias podem ser utilizadas, caso se sintam em risco. Se o risco for de inundação, é importante construir as respostas com eles. Em Campos, pesquisas apontam que várias famílias saíram de suas casas (voluntária ou involuntariamente) para conjuntos habitacionais e passaram a conviver com outros riscos, que não os da inundação. Quebraram-se as relações de vizinhança, o cotidiano com a escola, a igreja, o posto de saúde local. Muitos escombros não foram retirados dos locais e se tornaram abrigos de ratos e insetos, o que trouxe problemas para os moradores que ficaram. Há famílias que desejam retornar ao seu bairro de origem. São cidadãos que possuem direitos constitucionais e que não conseguem acessar”, conclui.