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Campos chega aos 187 anos, mas com perdas no seu patrimônio cultural

Arquitetos e historiadores apontam a demolição da Igreja Mãe dos Homens como início da desfiguração do Centro

Cidade
Por Ocinei Trindade
28 de março de 2022 - 0h01
Shopping foi erguido em estacionamento onde funcionaram Igreja Mãe dos Homens e Santa Casa (Montagem Elton Nunes;Foto Silvana Rust)

No dia 28 de março de 1835, Campos dos Goytacazes deixou de ser vila e se tornou cidade. Historiadores reivindicam datas anteriores para celebrar o marco inicial, como 1º de janeiro de 1653, dia da posse da primeira Câmara de Vereadores; e 29 de maio de 1677, data da fundação da Vila de São Salvador dos Campos dos Goytacazes. Nos últimos 187 anos, Campos mudou bastante devido ao crescimento urbano. Seu patrimônio arquitetônico eclético é um dos mais relevantes do país. Perde apenas para o do Rio de Janeiro. A cada ano, edifícios públicos e particulares têm se deteriorado. Com isto, parte da história fica ameaçada de desaparecer. Arquitetos e urbanistas defendem maior empenho do poder público para a preservação do rico acervo material e histórico.

Campos conta com 325 prédios tombados pelo Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural (Coppam), além de outros que são reconhecidos também pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac) e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). São construções relevantes como os solares do Liceu, Visconde de Araruama (Museu Histórico), da Baronesa, de Carapebus (Asilo do Carmo), dos Ayrizes; o Mercado Municipal, além de igrejas centenárias Nossa Senhora do Carmo, São Francisco, Nossa Senhora da Lapa e Donana, entre outras.

Canal Campos-Macaé no extinto Jardim de Alah

No período do Império, em 1844, foi iniciada a obra do Canal Campos-Macaé, com 109 quilômetros de extensão. Inaugurado em 1861, começou a operar com viagens a vapor em 1872. Deixou de funcionar em 1874 por tornar-se obsoleto. A falta de conservação ou abandono de todo patrimônio campista costumam ser denunciados por historiadores, memorialistas, arquitetos e urbanistas. Alguns apontam os anos 1960 como o início do processo de degradação do importante conjunto arquitetônico da cidade. Na ocasião, o prefeito era José Alves de Azevedo.

Fachada do antigo Trianon


“Considero a demolição da Igreja Mãe dos Homens, em 1961, juntamente com o antigo prédio da Santa Casa, o marco zero do declínio da nossa arquitetura histórica. Foram duas icônicas construções de extrema importância histórica, que, mesmo tendo tombamento do antigo Sphan, conseguiram revogar o ato junto ao então presidente do Brasil, Jânio Quadros, e levaram os prédios aos escombros”, destaca o pesquisador Genilson Soares, presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Campos.   O arquiteto e urbanista José Luis Puglia tem a mesma opinião:

Agência bancária erguida onde era o Trianon

“É um fato totalmente estranho a retirada do tombamento da igreja. A partir daí, o centro da cidade entrou em um processo onde aconteceram inúmeras demolições de prédios importantes em sequência. A mais significativa, para mim, foi a demolição do Teatro Trianon, em 1975. As mudanças urbanas são inequívocas.  O centro histórico se degradou. Hoje é um espaço sem vida e decadente”, avalia Puglia. A extinção do antigo teatro, apesar de ser propriedade particular, se deu na gestão do então prefeito Zezé Barbosa.  


Além das construções históricas mencionadas, outras edificações desapareceram parcial ou inteiramente nos últimos 187 anos da cidade. Como exemplo, a Praça do Santíssimo Salvador, que passou por dezenas de intervenções desde o século 19, sendo a última na gestão do prefeito Arnaldo Vianna, em 2004; demolições dos prédios do Banco do Brasil e da Associação Comercial e Industrial de Campos (os novos foram inaugurados em 1974 e 1982, respectivamente); o Mercado Municipal “engolido” por estruturas metálicas. Em 1982, o prefeito Raul Linhares atendeu a uma reivindicação dos feirantes e encobriu o prédio histórico. Já em 2014, a prefeita Rosinha Garotinho iniciou a obra de um novo camelódromo, ocultando ainda mais o agora centenário Mercado Municipal.

Praça do Santíssimo Salvador (Século 19)

Em 1947, o famoso Jardim de Alah passou a se chamar Parque Alberto Sampaio. O local ficou abandonado por anos.  Em 1988, o prefeito Zezé Barbosa decidiu reformá-lo e encomendou um grande projeto arquitetônico. Parte do canal foi coberto para abrigar diferentes áreas do parque. Há quase 20 anos o local deixou de cumprir a função de lazer e está decadente.

Ultima reforma da Praça São Savador em 2004


“Nos dias atuais, vemos o Parque Alberto Sampaio totalmente degradado com a ação do ‘desenvolvimento’ urbano. Desde a criação do viaduto que corta o parque até a instalação do camelódromo, o lugar praticamente perdeu suas características paisagísticas. Campos é uma cidade que carece de áreas verdes, e esse era um dos poucos parques que tínhamos na área central”, avalia o arquiteto e urbanista Albite Coutinho.


Diversidade arquitetônica

Praça onde se situa o Cha Cha Cha no início do século 20
Local atual do Cha Cha Cha – Centro de Campos

Nos anos 1990, Campos foi apontada pela edição francesa Guia Michelin como a segunda cidade brasileira com maior variedade de estilos arquitetônicos. Este ecletismo só ficava atrás da capital, Rio de Janeiro. Ernani Alves integra a Associação Norte Fluminense dos Engenheiros e Arquitetos (Anfea). Para ele e alguns pesquisadores, Campos teve seu apogeu arquitetônico entre 1886 a 1940.

“A cidade possui referências de arquitetura colonial barroca com a Igreja do Carmo (1752); a Igreja São Francisco de Assis (1771); o Solar da Baronesa (1844). Na arquitetura neoclássica, temos o interior da Catedral; a fachada do antigo Palácio Nilo Peçanha (extinto Fórum de Justiça e atual Câmara Municipal). Na arquitetura eclética cito o Palacete Villa Maria (1918). Já na arquitetura modernista, citaria diversas obras do arquiteto Jofre Maia, a partir de 1935”, destaca Ernani.

Para o vice-presidente da Anfea, Rodrigo Porto, Campos se sobressai em construções ecléticas, em diversos estilos, riquíssimos histórica e arquitetonicamente. “Cito como exemplar a casa do ex-prefeito Barcelos Martins, em estilo art déco. Perdemos muito da nossa história enquanto patrimônio artístico, arquitetônico e cultural. Mas, Campos ainda segue como destaque no cenário nacional nesse sentido”.  

Praça Quatro Jornadas com antiga sede do Banco do Brasil

O arquiteto e urbanista José Luis Puglia chama a atenção para outras construções de estilos variados em Campos. “Lembro da luta da Lyra de Apolo, buscando resgatar seu patrimônio tão seriamente atingido. Deve-se atentar para a antiga estação ferroviária, um dos poucos exemplares na nossa cidade da arquitetura art déco, e que é de propriedade da Prefeitura. As ruas Santos Dumont e Sete de Setembro ainda possuem inúmeros prédios de preservação e valorização”, observa.

Praça São Salvador com Igreja Mãe dos Homens ao fundo à esquerda

Para o arquiteto Albite Coutinho, demolições e abandonos de edificações importantes de Campos “podem ser definidos como rejeição da história em detrimento da vida moderna”, cogita. Ele diz ainda: “As transformações da paisagem urbana na área central trouxeram perdas irreparáveis das referências históricas da arquitetura, para dar lugar a um novo conceito de edificação; representando o novo desenvolvimento político e social, rompendo de vez com o passado e negando a importância da própria história da cidade”, cita.

O futuro das construções históricas

Todos os entrevistados afirmam que, para maior e melhor preservação do conjunto arquitetônico e histórico de Campos, é preciso maior desempenho por parte das autoridades locais. “Quanto aos prédios tombados pelo Coppam em péssimo estado, acho que, se não houver uma mudança rigorosa nas atitudes, simplesmente só nos restarão fotos como lembrança. A partir do momento em que o Conselho se posicionar com legitimidade, apresentando uma política de preservação e proteção do patrimônio, poderemos, ainda que com ressalvas, ter esperança de mudanças”, diz Ernani Alves.

Centenário Mercado Municipal

José Luis Puglia considera que o poder público deveria dar o exemplo cuidando do seu próprio patrimônio. “Destaco o Museu Olavo Cardoso e o Palácio da Cultura, só para citar dois exemplos. Sem uma política pública e um real incentivo para os proprietários de imóveis de interesse de preservação, essa realidade não mudará”, aponta.

Segundo Rodrigo Porto, Campos é uma cidade tradicionalista, e há apreço pelas referências arquitetônicas consideradas históricas. “Tivemos a perda do alto poder aquisitivo da sociedade local e o abandono por parte do poder público, que poderia e deveria ser um grande incentivador à proteção da memória, história e cultura”, considera.

Albite Coutinho observa que as edificações que conseguiram se safar da destruição por força legal ou tombamento, sofrem com o abandono e o descaso. “É difícil solucionar esse problema sem que haja ação efetiva do poder público. A questão cultural de nosso povo em preservar a história como mola mestra para o desenvolvimento ainda não está no nível mínimo desejado”.

Prédio antigo onde atualmente funciona a Justiça Federal ao lado da Catedral

De acordo com a presidente da Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, Auxiliadora Freitas, também presidente do Coppam, o órgão tem se reunido com frequência. “O processo de reformulação da legislação sobre patrimônio está em análise. O documento está bastante defasado. Essa alteração está na Procuradoria Geral do Município. Queremos ver todo esse patrimônio preservado com nosso incentivo, dentro de ações que estão em fase de estudo. A Câmara de Dirigentes Lojistas de Campos também tem sido nossa parceira, nos ajudando na elaboração da demanda de descontos relativos aos comerciantes e donos de imóveis com base em leis do Coppam”, explica.

Antiga Avenida 15 de Novembro

Para o pesquisador Genilson Soares, nestes 187 anos de Campos dos Goytacazes é preciso pensar nas futuras gerações com educação patrimonial. “Não se consegue congelar um antigo centro histórico e transformá-lo em uma cidade cenográfica, mas é papel dos gestores e dos agentes preservacionistas, lutarem para que se conservem as construções mais representativas. A falta de preservação terá como consequência a perda da nossa própria identidade. A saída está nas novas gerações, na compreensão do universo sociocultural, da trajetória histórico-temporal em que estão inseridas. É um processo de autoestima, pois você só ama e preserva aquilo que conhece”, conclui.

Galeria de imagens de Campos de antes e agora

Igreja Mãe dos Homens e Santa Casa