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Crise faz crescer número de famílias que recorrem à lenha para cozinhar

Custo de vida alto, desemprego e aumento da pobreza extrema em Campos expõem o retrocesso social

Campos
Por Clícia Cruz
21 de novembro de 2021 - 0h01
Dona Ruth | Apesar do problema no joelho, idosa de 74 anos percorre o bairro diariamente à procura de lenha para cozinhar (Foto Calos Grevi)

As crises sanitária e econômica vêm transformando a rotina de parte dos brasileiros — e para pior. A Classe E, que passou por um período de encolhimento na primeira década dos anos 2000, voltou a crescer, assim como os números de pobres e miseráveis. Em Campos, um em cada quatro moradores vive em extrema pobreza, segundo a Prefeitura. São 130 mil pessoas, muitas sem emprego formal ou renda fixa, que almoçam sem saber se vão jantar. Não só porque os alimentos estão cada vez mais caros. O próprio preparo das refeições impõe um desafio adicional para quem luta contra uma inflação de dois dígitos. Forçadas a escolher entre pagar a conta do mercado ou o gás de cozinha, famílias vêm recorrendo a fogões a lenha e fogareiros a álcool. O improviso oferece riscos e transforma a manutenção da mais básica das necessidades de qualquer ser humano em um jogo de sobrevivência diário, em que até a chuva pode ser determinante para que haja comida no prato.

O preço do botijão de gás de 13 quilos praticado por revendedores de Campos varia conforme a distribuidora e o bairro. Levantamento feito pela equipe de reportagem do Jornal Terceira Via apontou valores que vão de R$ 95 a R$ 110 — uma variação de 16%. Na comparação com os preços praticados no Município em janeiro, quando o botijão chegou a ser comercializado por R$ 75, o sobrepreço pode chegar a 47% e aperta as contas de famílias campistas.

Sandra | Família improvisou um fogareiro na frente da casa, onde as refeições são preparadas (Foto Calos Grevi)

No Parque Rio Branco, Sandra Lúcia Ferreira tem passado tempos difíceis. Com três filhas e dois netos, ela está abrigada na casa da filha mais velha, onde só o genro trabalha registrado. Para cozinhar, a família está usando um fogão de lenha improvisado na frente da casa. Mas, nem todos os dias há o que cozinhar. “Nós estamos vivendo muito apertados, porque somos muitos para comer e só meu genro tem salário. Não dá pra pagar água, nossa luz está cortada e a gente come o que pode”, relata Sandra, contando que, muitas vezes, precisou recorrer aos vizinhos e parentes para alimentar os netos.

A lenha ela e as filhas catam na rua, mas, quando chove, não é possível cozinhar lá fora porque o fogo apaga. Aí, o jeito é pedir para cozinhar na casa de alguém. “Peço a um vizinho e a outro. A gente se ajuda. Quando um tem um pouquinho, cede para o outro”, conta Sandra, que está morando de favor porque a casa em que residia teve uma infestação de cupim. “Perdi meu armário e tudo que tinha dentro da casa. Há perigo do telhado cair. Por isso, não podemos ficar lá. A essa altura da vida, estou vivendo uma situação que nunca imaginei passar”, conta.

Sandra trabalhava numa casa de família no Espírito Santo, mas foi dispensada no início da pandemia e não conseguiu mais se estabilizar. Ela conta que, mesmo passando por tantas dificuldades, não deixa morrer dentro de si um desejo. “Eu deixei de sonhar com muitas coisas, não imaginava passar por uma situação como essa. Mas, ainda acalento o sonho de voltar para a minha casa”, confessa Sandra, com os olhos marejados. Ela espera, para o futuro, que as dificuldades de hoje sejam apenas lembranças que servirão de aprendizado para as filhas.

Roger e Milliane | Casal tem dois filhos pequenos e também enfrenta dificuldades

Comida escassa
Também no Parque Rio Branco, o jovem casal Milliane e Roger vive dentro de casa os efeitos da crise. Desempregados e com dois filhos pequenos, comprar gás não é uma opção. “Se eu compro o gás, falta pra comida, que já é escassa”, conta a jovem, que trabalhava como orientadora infantil e perdeu todos os alunos com a pandemia.

O marido é ajudante de pedreiro e há dois meses não trabalha em nenhuma obra. Ela conta que já faltou até o básico em casa. “Nós já tivemos que comer sem arroz, sem feijão, já faltou leite pro neném e nós tivemos que dar Mucilon com água”, conta a jovem.

Perguntada pela equipe do Terceira Via sobre a última vez em que comeu carne, Milliane e Roger respondem juntos, “no Dia dos Pais”, relatando que foram convidados pra almoçar neste dia na casa do irmão da jovem.
No dia a dia, a família utiliza um fogão a lenha improvisado numa lata de tinta, no qual cabe uma panela por vez. “Eu coloco o feijão pra cozinhar de manhã, vou vigiando o fogo, faço alguma coisa dentro de casa e venho olhar”, relata.

Necessidade
Dona Ruth Felizardo tem 74 anos. A equipe de reportagem a encontrou na rua catando lenha. Com um problema no joelho, ela não deixa de procurar pedaços de madeira para acender o fogo que vai esquentar a água do banho e cozinhar o feijão e tudo que levar mais tempo no fogo. “Eu recebo uma pensãozinha do marido, mas o dinheiro não dá pra tudo, ainda mais agora, que a cobrança de esgoto passou a ser feita junto com a água e dobrou o valor da conta. É luz, é imposto, remédio e comida. Tenho que economizar o gás. Quando meu marido era vivo, ele construiu o fogão de lenha porque gostava da comida feita nele. Mas, hoje, pra mim é uma necessidade”, explica Dona Ruth, que mora com o filho de 36 anos, que está desempregado.

Além de buscar lenha, Dona Ruth ainda precisa contar com a colaboração dos vizinhos para obter água potável porque a água dela foi cortada por falta de pagamento.

Economista Paulo Clébio explica momento crítico (Foto: Carlos Grevi)

O retrocesso econômico
O economista e mestre em Desenvolvimento Regional Paulo Clébio do Nascimento vê como um retrocesso esse “momento crítico” que as famílias vêm passando devido a alta dos preços. “Eu não vi uma situação dessas em momento algum, não só na minha carreira profissional, mas na minha vida”, comenta o economista.

“O Governo Federal amplia a cada dia mais o seu faturamento, a receita do Governo Federal está estrondosa e você tem uma população pobre. Um exercício que fazemos no desenvolvimento regional é imaginar o contrário. A gente não pode ter um país rico com gente pobre. Em 2008, 2010, você não tinha mais a Classe E. Essas pessoas passaram a pertencer às classes D e C. O pessoal da Classe C estava viajando, passou a C+, e a gente perdeu isso”,  explica Paulo Clébio.

Sobre o aumento excessivo do valor do gás, o economista explica que seria possível para o governo conter a alta. “No momento de crise, a empresa pública tem que pagar o preço. A Petrobras é uma empresa mista, muito mais pública do que privada, na qual o governo deveria se posicionar para que o preço não subisse. Segurar o aumento dos combustíveis, porque combustível é o que move tudo”, defende Paulo Clébio, que completa: “Não é absurdo imaginar que as pessoas voltem a viver de forma mais rústica, usando o quintal de casa pra plantar, cultivando seu próprio alimento, porque nós estamos vivendo o declínio econômico”, comenta.

Paulo Clébio também comenta que hoje se observa que grande parte da população de baixa renda vive com auxílios dos governos e que essa não é uma solução econômica eficaz. “O ideal é que haja políticas públicas firmes para dar ao cidadão a condição de viver, de se alimentar, retirando impostos, proporcionando a condição de compra. Um exemplo de quando o governo quer reduzir valor é a Linha Branca de eletrodomésticos, o valor não foi reduzido? O governo, agora, poderia fazer isso com os combustíveis. Com os preços baixando, as pessoas têm mais condição de consumir. Isso gera empregos e faz a economia girar”, explica.

“Teve época em que o fogão de lenha era moda, era ‘gourmet’. Era bonito ter um. Agora, volta a ser uma necessidade”, finaliza.

Hospital Ferreira Machado (Foto: Arquivo/Silvana Rust)

Queimados
O Hospital Ferreira Machado inaugurou, no dia 12 deste mês, o Centro de Atendimento Especializado de Queimaduras (CAEQ). A unidade está instalada no andar térreo do hospital e conta com uma equipe multidisciplinar para acompanhamento dos pacientes vítimas de queimaduras após a alta hospitalar.

O superintendente do HFM, Dr. Arthur Borges, informou um aumento de 11% no número de pacientes queimados de janeiro a outubro deste ano, em relação ao ano passado. Segundo ele, a equipe percebeu o crescimento do número de pessoas que deram entrada após se queimar tentando usar métodos alternativos para cozinhar, como fogareiro de álcool, por exemplo.

De janeiro a outubro de 2020, 193 pessoas deram entrada na unidade com queimaduras. O número subiu para 215 no mesmo período de 2021, segundo a estatística fornecida pelo hospital.