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Português internetês

Idioma segue em contínuo processo de transformação

Geral
Por Redação
7 de novembro de 2021 - 0h02

O desenvolvimento da linguagem dotou o ser humano da capacidade de expressar sentimentos e ideias complexas. Das primeiras pinturas feitas em cavernas para registrar cenas do cotidiano pré-histórico às trocas de mensagens instantâneas por aplicativos, o processo comunicacional se desenvolveu em paralelo à história dos povos, acompanhando mudanças sociais e tecnológicas. Em um processo permanente e orgânico de mutação, as línguas incorporam marcas do tempo, refletem usos e costumes e podem até mesmo se tornar ambiente de disputas políticas e acadêmicas. Idioma oficial do Brasil, de Portugal e de outros sete países, o Português, celebrado nacionalmente no último dia 5, carrega na escrita e na fala o somatório dessas transformações, que continuam acontecendo. A grafia abreviada do internetês atende a urgência de uma sociedade conectada. O emprego frequente de estrangeirismos lembra o caráter global das relações contemporâneas. Já a luta por trazer neutralidade de gênero à norma culta reflete a demanda por inclusão de uma parcela da população. Em comum a todos esses exemplos, o fato de que despertam debates sobre fluidez e limites da língua.

Pesquisadora Ulli Marques


Doutoranda em Cognição e Linguagem, a pesquisadora Ulli Marques afirma que a língua é uma “atividade social”, que se dá e se transforma em compasso com as necessidades e vivências dos falantes.


“A língua não é apenas um sistema linguístico gramaticalmente estruturado, mas um processo em contínua transformação, um produto discursivo e, portanto, social, que muda conforme a sociedade muda. Se a estudarmos em uma perspectiva histórica, veremos que, ao longo dos séculos, mudanças ocorreram não somente no vocabulário, com a criação e aceitação de novas palavras, mas também mudanças morfológicas e sintáticas, embora essas ocorram de maneira mais lenta”, explica.

O internetês, com sua grafia taquigráfica, marcada pelo uso de abreviaturas e símbolos gráficos, surgiu no ambiente da Internet, ainda nos anos 90, e chegou às pontas dos dedos dos brasileiros conforme a telefonia celular se popularizou. Para Arlete Sendra, doutora em Literaturas de Língua Portuguesa, essa forma de se comunicar, que ainda permanece restrita à comunicação escrita, “introduziu o futuro em nossa história”.


“Todo idioma é plural e retrata os fatos da história. Para atender os avanços, vetores do progresso e matrizes das desigualdades sociais, nosso idioma a ele incorporou o internetês, língua que introduziu o futuro em nossa história e nos internacionalizou”, diz.


Também reflexo da diminuição das distâncias entre os povos, possibilitada pelo desenvolvimento dos sistemas globais de comunicação, a incorporação à Língua Portuguesa de palavras, expressões ou construções frasais estrangeiras sem equivalente nativo cresceu conforme produtos e tecnologias importados foram introduzidos no Brasil e a Internet aproximou o país de comunidades internacionais.

Arlete Sendra brinca com as palavras


Trata-se, segundo Ulli, do resultado de um “processo natural diante da incorporação principalmente da cultura norte-americana e da Língua Inglesa na rotina dos brasileiros”.


“Ao entendermos que a língua é viva e que se constrói e se modifica por meio da fala, não podemos ser puristas e pensarmos que a Língua Portuguesa poderia sair ilesa, uma vez que é produto da coletividade e, por isso mesmo, é fluido. Empréstimos linguísticos sempre aconteceram. A própria Língua Portuguesa é fruto de processos de transformações da língua latina, com influência de outras línguas, como o grego, o árabe, as línguas africanas, indígenas entre outras”, opina.


Já o movimento pela introdução, no Português, do gênero neutro — caracterizado pela substituição “a” e “o” no final dos pronomes por outras letras ou símbolos não identificados como masculino ou feminino — está inscrito na luta por representatividade da comunidade LGBTQIA+, que questiona o binarismo do idioma. Ana Poltronieri é doutora em Letras e professora do Instituto Federal Fluminense (IFF) e se interessa pela discussão, que é polêmica entre pesquisadores da língua.


“Ao contrário de muitos dos meus pares, eu sou favorável à linguagem neutra, embora reconheça que o sistema linguístico do Português brasileiro tenha especificidades que, na sincronia, ora agregam, ora refutam o neutro, porque o Português é uma língua de flexão. Entretanto, há um aspecto de inclusão muito importante na linguagem neutra, porque ela concebe a existência na língua dos LGBTQIA+. Há menos de 30 anos, as mulheres lutaram por esse direito e conseguiram, e, hoje, ouvimos expressões como ‘brasileiros e brasileiras’ e ‘alunos e alunas’ em eventos formais, o que era impensável antes da nossa luta. Muitos analistas do discurso afirmam que o mundo social muda quando a língua inclui a diversidade. A meu ver, isso é verdade”, defende Ana.

O futuro da Língua Portuguesa
Doutora em Literatura Comparada, Vânia Bernardo considera o Português como língua rica e versátil, “como é a cultura do seu povo”, acredita. “Nos anos 90, numa entrevista à Veja, o linguista americano Steven Roger Fischer disse, equivocadamente, que por sermos cercados de países cuja língua é o espanhol, estaríamos, em 300 anos, falando um portunhol! Não creio que será assim! Ao analisarmos todas as influências sofridas, ao longo desses séculos, veremos que, dependendo do Brasil, a Língua Portuguesa estará cada vez mais espraiada pelo mundo, confirmando a análise feita pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CLPL) baseada na propagação de seus princípios”.

Ana Poltronieri


Para Ana Poltronieri, “o futuro de toda e qualquer língua ao falante pertence”. Ela destaca ainda outra característica do Brasil que fala Português. “Gostaria de destacar a literatura e a música, porque são sistemas semióticos nos quais o Português brasileiro mostra a beleza de seus recursos expressivos. Nesse sentido, idioma não é só estudo gramatical, como muitos pensam, visto que ele nos dá acesso a inúmeras artes, além de ser um meio importante de interação”.


O historiador, professor e poeta Hélio Coelho defende formar novos leitores. “Mesmo contra a corrente, é preciso criar leitores desde cedo, em casa e na escola. Despertar o gosto pela poesia, pela leitura, pela boa música, pelo teatro”.


Já Arlete Sendra resume o que provoca a Língua Portuguesa: “Eu destacarei sua musicalidade, sua gramática espontânea e natural. Gosto de sua  expressividade poética, sua irreverência vocabular, seus improvisos. Gosto muito do riso que gargalha dentro da  palavra. Da lágrima que molha a dor”, conclui.