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Um nó social de difícil solução chamado Novo Horizonte

Casas populares invadidas no Parque Aeroporto colocam famílias carentes de um lado e construtora, Prefeitura, Estado e União do outro

Campos
Por Cíntia Barreto
17 de outubro de 2021 - 0h01
Quinze dias antes da entrega oficial, as casas foram ocupadas (Foto: Divulgação)

Sobrevivendo sem o mínimo, como água e luz, centenas de famílias continuam ocupando as 772 casas dos conjuntos habitacionais Novo Horizonte I, II e III, localizados no bairro Jardim Aeroporto, subdistrito de Guarus, em Campos. Ainda sem previsão de adquirir a tão sonhada casa própria, mais de duas mil pessoas, incluindo centenas de crianças, permanecem nas ocupações, e contam com a ajuda de movimentos sociais, que distribuem alimentos, roupas e outros tipos de doações, para se manterem.

A construção das casas é de responsabilidade da Realiza Construtora, sob gestão da Caixa Econômica Federal (CEF), e vinculada ao Programa Minha Casa Minha Vida, que oferta moradias a preços subsidiados e com planos de pagamento especiais à população de baixa renda. As unidades seriam entregues a beneficiários cadastrados em 2018 e sorteados no ano seguinte pela Prefeitura de Campos, que auxilia na execução em nível municipal de políticas públicas da União.

“O programa Minha Casa Minha Vida é do Governo Federal e a Prefeitura apenas auxilia no cadastro desse público. Os critérios são todos normatizados a nível federal. Além da seleção delas, ajudamos também a resolver algumas pendências no processo de documentação dessas famílias. Sendo assim, a Prefeitura entra como apoio nesse processo, mas toda gerência é da Caixa Econômica Federal, através do programa citado”, explica o secretário de Desenvolvimento Humano e Social, Rodrigo Carvalho.

As obras foram iniciadas em dezembro de 2017. A previsão era de que as casas fossem concluídas e entregues em março deste ano, mas as unidades foram ocupadas em abril, principalmente por pessoas não contempladas no processo de seleção. Com isso, a maior parte das famílias sorteadas para receberem as moradias, e que também se encontram em vulnerabilidade social, não conseguiu entrar nos imóveis.

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Ocupantes alegam não ter para onde ir
Rosimara Rosa de Jesus, de 35 anos, não foi contemplada pelo programa. Mesmo assim, ela ocupou uma das residências com seu companheiro e três filhos, com idades de 5, 9 e 11 anos. A família, que é natural de Campos, morava em Rio das Ostras, mas Rosimara e o marido perderam seus empregos no início da pandemia e precisaram retornar para a cidade natal. “A gente não tinha pra onde ir. Achamos até que teríamos um acolhimento na nossa terra, mas não temos ajuda de ninguém. O poder público não faz nada. A gente está aqui porque precisa, ninguém está aqui porque quer”, disse Rosimara.

Tatiane Bastos tem três filhos, está grávida de sete meses e não participou do processo seletivo da Prefeitura. Desempregada, disse que não sabe o que fazer depois do nascimento do bebê. “A situação está muito difícil. A gente dorme no chão, não podemos trazer nada. Temos que pegar água de uma torneira lá fora pra encher garrafas, pegar lenha para cozinhar. Não sei como vou cuidar do meu bebê”, desabafou Tatiane.

Em junho, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin autorizou a permanência das famílias nos conjuntos habitacionais Novo Horizonte e suspendeu tentativas de reintegração de posse dos imóveis. Segundo o defensor público regional de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro, Thalis Arcoverde, que cuida da defesa dos ocupantes, a decisão ainda obriga que a Prefeitura de Campos se responsabilize por oferecer moradia adequada antes de retirá-los do local.

De acordo com a assistente jurídica da Defensoria Pública da União (DPU) do Núcleo Regional de Direitos Humanos, Rafaelly Galossi, o órgão vem assistindo os ocupantes. “O que o DPU pede no processo, e o que os movimentos sociais apoiam, é que a reintegração de posse só seja feita depois que essas mais de 700 famílias estejam amparadas”, afirmou Rafaelly.

Prefeitura e Estado se posicionam
No dia 6 de agosto, o governador Cláudio Castro (PL) esteve em Campos dos Goytacazes e se comprometeu em discutir a situação dos ocupantes do Novo Horizonte. No dia 19 do mesmo mês, representantes do movimento participaram, no Rio de Janeiro, de uma audiência com o secretário estadual de Infraestrutura e Obras, Max Lemos, onde apresentaram uma pauta de reivindicações.

A pasta informou, em nota, que “realizou o levantamento das famílias em questão para a realização do diagnóstico técnico social e para ver se elas se encaixam nos requisitos do Programa Casa da Gente, recém-lançado pelo Governo do Estado, que irá contemplar o município de Campos com construção de unidades habitacionais”.

Já a Prefeitura afirmou que “a equipe da Secretaria de Estado de Habitação, realizou em conjunto com a equipe técnica da Prefeitura, o levantamento das famílias que ocupam as casas. O Estado fez visita técnica para reconhecimento de área da ocupação. A Prefeitura aguarda a proposição para possíveis ações a partir do levantamento feito no local”. Após essa investigação, que está prevista para ser finalizada ainda esta semana, haverá reuniões que podem definir novos rumos das centenas de famílias que pedem por moradia.

Beneficiários passam por situação semelhante
Além dos ocupantes não contemplados pelo sorteio da Prefeitura, há um número menor de famílias beneficiadas pelo Minha Casa Minha Vida que também decidiram se mudar para os condomínios Novo Horizonte antes da entrega oficial dos imóveis. Os motivos alegados são os mesmos: necessidade e falta de opção.

Monique de Souza França é uma das beneficiárias do programa. Sem emprego, decidiu ocupar a casa a qual afirma ter direito. “Eu não tive o que fazer. Precisava de um lugar para morar, então tive que adiantar minha vinda. Eu não tenho para onde ir”, contou Monique.

Diferente dela, o auxiliar de cozinha, Lucas da Silva Caetano, de 24 anos, mesmo sendo um dos sorteados, preferiu não ocupar o imóvel. Mas, segundo ele, pagar aluguel está cada vez mais difícil. “Estou passando por dificuldades financeiras. Além disso, não consigo informações sobre a minha casa. Fui ao antigo CSU, à Secretaria de Habitação, ligo pra lá, e eles só falam que não tem novidade, que não tem previsão. O poder público também não procura saber como as pessoas do outro lado estão vivendo”, afirmou Lucas, que ainda lembrou que seu nome está vinculado ao financiamento do programa Minha Casa Minha Vida. “Hoje, eu não poderia comprar outro imóvel, mas mesmo que tivesse dinheiro, porque o meu nome e o do meu companheiro estão presos nisso”, contou o ajudante de cozinha.

Elvea Lúcia Oliveira da Silva também aguarda a entrega do seu imóvel. Desempregada, a mãe de um adolescente de 16 anos divide o aluguel da casa onde mora com mais uma família de quatro pessoas, também contemplada pelo sorteio. “Gasto R$ 278 por mês com remédios para transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) para o meu filho e está cada vez mais difícil manter o aluguel. É um absurdo essas pessoas pegarem casas que não são delas e ainda depredam. Eu entendo que também passam por dificuldade, mas onde elas moravam antes? E nós, sorteados, como ficamos?”, questiona.

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Entrega depende da reintegração de posse
Os beneficiários do programa Minha Casa Minha Vida aguardam o desenrolar do processo de  reintegração de posse dos imóveis na Justiça, para que possam, finalmente, receberem suas moradias. A ação foi proposta pela Realiza Construtora. A empresa afirmou, em nota, que “obteve decisão favorável, pendente de cumprimento, para retirada dos invasores e desocupação do empreendimento”.

Já a Caixa Econômica Federal emitiu nota informando que “acompanha a atuação dos órgãos competentes para efetivação da reintegração de posse das unidades e viabilização da entrega aos legítimos beneficiários, à luz das regras do Programa”. O banco esclarece, ainda, que “a data de entrega dos empreendimentos do Programa Minha Casa, Minha Vida é definida somente após a conclusão das obras, legalização do empreendimento e aceite das concessionárias, de forma a garantir a sua habitabilidade”.

Por fim, a Prefeitura de Campos afirmou que os contemplados buscam a secretaria municipal de Desenvolvimento Humano e Social regularmente e que, lá, “recebem atendimento e acompanhamento do setor de Habitação”. O Município orienta, ainda, que “as pessoas que precisarem de atendimentos sociais devem procurar o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) do seu território.”

DPU denuncia violação de direitos
Ocupantes do Novo Horizonte denunciam que estão sendo impedidos de entrar nos conjuntos habitacionais com móveis, eletrodomésticos ou qualquer utensílio doméstico. Alguns deles chegaram até ser ameaçados por homens que se apresentariam como seguranças da Realiza Construtora. Com isso, eles moram em casas totalmente vazias, tendo que dormir no chão, por exemplo.

De acordo com a assistente jurídica da DPU do Núcleo Regional de Direitos Humanos, Rafaelly Galossi, que acompanha o caso desde o início, os ocupantes estão tendo seus direitos violados.

“O estado e o Município estão cientes do que está acontecendo. Inclusive, a gente oficiou, enquanto Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), o Batalhão de Polícia Militar de Campos (8º BPM). Conversamos, em reunião oficial, com a Prefeitura de Campos e com o Estado do Rio de Janeiro. Então, todas as instituições e órgãos públicos estão cientes, mas não fazem nada”, contou Rafaelly, completando: “A posse é dos ocupantes, mesmo que temporárias. Judicialmente, pelo próprio STF, por meio de uma decisão liminar que nós conseguimos, eles estão respaldados. Então, isso quer dizer que elas podem entrar na ocupação com seus objetos, pertences básicos, seus alimentos, mas, na prática, eles estão sendo impedidos pelos seguranças”, afirmou a assistente jurídica.

A equipe de reportagem tentou contato com a Realiza Construtora entre os dias 7 e 14 de outubro, por meio de telefone e e-mail, mas a empresa não respondeu às denúncias de ameaças feitas por ocupantes. Também não comentou as alegações de que estaria impedindo as famílias de entrarem com seus pertences nas unidades habitacionais do Novo Horizonte.

Em nota, a construtora se limitou a informar que “foi a responsável pela construção do Residencial Novo Horizonte, obra do Governo Federal, sob gestão da Caixa Econômica Federal (CEF) e vinculada ao Programa Minha Casa, Minha Vida. O cronograma de construção foi rigorosamente observado e a obra foi concluída em 29 de março de 2021, dentro do prazo pactuado. A invasão do empreendimento ocorreu quinze dias depois da finalização da construção, quando seria iniciado o cronograma de entrega das chaves aos beneficiários do programa”.

Já a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro informou, também por meio de nota, “que a Corporação atua com foco na segurança pública, realizando o patrulhamento preventivo e ostensivo em todo o estado do Rio de Janeiro. O 8º BPM (Campos dos Goytacazes) emprega policiamento na região com viaturas e motocicletas, tendo como base a análise da mancha criminal e informações compiladas pelo setor de inteligência do batalhão. Ressaltamos que a Polícia Militar segue à disposição do cidadão com equipes para acionamento imediato, através da Central 190, no momento em que os crimes estão sendo cometidos”.