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Cadê o “novo normal”? Mais fome e menos doações para as entidades

Expectativa de que a pandemia faria surgir uma sociedade fraterna, solidária e acolhedora aos vulneráveis, não vem se confirmando

Guilherme Belido Escreve
Por Guilherme Belido
31 de maio de 2021 - 16h28

Em 29 de março de 2020, sob o título ‘Dando pão a quem em fome’, este espaço abrigou ampla matéria sobre o extraordinário trabalho que as freiras do Mosteiro da Santa Face, no Jardim São Benedito, prestavam em favor de moradores de rua e desassistidos em geral, fornecendo café da manhã, almoço e lanche para mais de 150 pessoas.

O texto nada teve a ver com a pandemia, visto que há muito estava na pauta registrar o esforço humanitário das freiras, num gesto comovente de amor ao próximo e dedicação aos mais necessitados. Um trabalho árduo e difícil, para o qual nada recebiam em troca.
Mas o tempo foi passando e, por coincidência, a publicação saiu já com a pandemia instalada. O que não se sabia é que todo aquele trabalhão ficava a cargo de apenas nove freiras, incluindo a madre Maria da Encarnação, que acordavam 4 da manhã, faziam as orações, e já às 5h iniciavam os preparativos.

Reproduzindo aqui trecho da matéria anterior: ‘Não há cadastro, burocracia ou exigência de espécie alguma. A comida é servida aos necessitados, e ponto. Não interessa religião, cor, idade, se estão desempregados ou se catam papel na rua. Se estão ali, são alimentados’.

A matéria teve ampla repercussão e, de 150 quentinhas, logo passariam a fornecer mais de 300, a partir do aumento significativo das doações. À época, a prefeitura até precisou auxiliar na organização das filas para evitar aglomerações.

Só que depois de algum tempo as doações foram diminuindo e justamente quando a pandemia se avolumou, com lockdowns que impuseram aos vulneráveis maior vulnerabilidade — bem como mais invisibilidade aos já costumeiramente invisíveis — a “explosão de solidariedade” minguou, e nos dias de hoje, o que chega de doação ao Mosteiro, de acordo com a irmã Maria Amada, é quase a metade de antes.

Mas a freira não se queixa. Longe disso, agradece comovida o que é doado — geralmente cestas básicas — e frisa o quanto são importantes para que elas continuem a alimentar os necessitados. Num episódio inusitado — recorda — uma pessoa doou um boi inteiro, naturalmente que dividido em 4 ou 6 pedaços, e que elas, felizes, passaram a noite inteira destrinchando a carne que ‘engrossou’ as quentinhas por vários dias.

Não apenas no mosteiro, mas nas entidades assistenciais, casas de acolhimento, asilos, comunidades carentes, etc, justamente quando a pobreza dispara, as doações encolhem. O ímpeto de ajudar, de doar e de reconhecer o sofrimento alheio, dando de comer a quem tem fome, talvez esteja se esvaindo, tal qual o “novo normal” que praticamente ninguém mais ouve falar. Sob essa ótica, o “novo normal” retrocedeu ao velho anormal de sempre. Ressalve-se, muitos seguem ajudando. Mas em menor escala e de forma pontual.

*Parêntesis — (Além das doações de qualquer natureza, incluindo material de limpeza, quem preferir pode doar através de transferência bancária: Bradesco: Agência: 0065-5 Conta: 103297-6 Dalva Costa Ferraz – Madre Superiora CPF: 524.896.127-00 ou Banco Itaú: Agência:0463 Conta: 15281-9 Dalva Costa Ferraz – CPF: 524.896.127-00 / Encomendas de salgados, doces, etc podem ser feitas pelos telefones 2722-4402 ou pelo celular 9.9826-2400).

Recuo de solidariedade no aumento da miséria. Tipo “caçar Pokémon”. Já deu!

Em meados do ano passado a expressão “Novo normal” estava em voga. Dizia-se que o pós-pandemia traria uma nova sociedade acolhedora e que não mais iria virar o rosto ante as crianças que passam o dia nos sinais pedindo algum trocado e de noite procuram uma marquise para dormir.

Uma sociedade — prossigo — sensível àqueles que por horas e horas ficam na porta de restaurantes caros à espera que na saída os abastados e sorridentes clientes lhes dê um dinheirinho para, no dia seguinte, comprar um litro de leite, 2 ou 3 pães e, se a noite for ‘proveitosa’, talvez até um quilo de arroz e meia dúzia de ovos.

A mesma sociedade que, diante do ‘novo normal’, passaria a enxergar as famílias que “moram” debaixo de pontes ou simplesmente na rua. São os “vulneráveis” ou — no que se afigura bem mais realista — os “invisíveis”. Mas que, diante do ‘novo normal’, passariam a visíveis e reconhecidos.

O autor retoma o assunto porque em julho de 2020, em duas publicações de página inteira, refletiu de forma cética que o ‘novo normal’ estava emergindo num momento de provação mas que, vencida a pandemia — porque um dia haveria de passar — o discurso fraternal que proclama a aproximação de todos para com todos aos pouquinhos iria desaparecer junto com a doença e, ao fim e ao cabo, as velhas rugas fariam tudo voltar ao normal, nada mais, nada menos, que o velho anormal de sempre — frase que, aliás, deu título à primeira das duas publicações.

Observe o leitor, não foi uma afirmação. Antes, uma opinião. Uma visão realista, talvez pessimista, mas que, torcendo para estar errado e desejando que o futuro mostrasse o contrário, pedia vênia aos que pensavam diferente para inferir que o pós-pandemia traria como resultado uma sociedade ainda mais isolacionista que a atual.

Como o pós-pandemia ainda não chegou, tanto pior. No meio de 2020 não se pensava que praticamente um ano depois a doença seguiria batendo ainda muito mais duro e trazendo variantes perturbadoras e desconhecidas.

O sentido da expressão — Convém deixar claro que o mundo mudou e que as transformações de comportamento sentenciaram inúmeros “novos normais”. Entretanto, o ‘novo normal’ então apregoado não se limitava a mudanças de hábitos, de higiene ou mesmo no relacionamento entre amigos. O ‘novo normal’ proclamado dizia respeito a uma transformação visceral da sociedade para com os desprotegidos, de ampla responsabilidade social e de combate à desigualdade e ao preconceito. É disso que se tratava.

Então, pergunta-se: alguém tem ouvido falar em “novo normal”? Ou isso foi um arroubo de ocasião como “caçar Pokémon”?