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Mães-solo não são heroínas

Com pouco ou nenhum apoio dos pais de seus filhos, mulheres reivindicam o direito de serem humanas e pedirem ajuda

Comportamento
Por Redação
9 de maio de 2021 - 0h01
Paolla Souza e Ana Lu: Apesar do pai participar da criação da filha, a pesquisadora, professora e atriz se considera mãe-solo (Fotos: Carlos Grevi e Álbuns de Família)

Toda mãe, seja qual for a configuração familiar em que se encontra, enfrenta desafios. O medo, a culpa, o julgamento e a responsabilidade, que é para sempre. E embora as tarefas e obrigações devessem ser dividas, uma vez que a concepção de um filho não é unilateral, cabe muitas vezes a essas mulheres encarar a missão sozinhas. Por muito tempo, mães que tinham pouco ou nenhum apoio dos pais de seus filhos eram chamadas “mães-solteiras”, como se o estado civil influísse sobre essa condição.

Hoje, a denominação mais adequada seria outra: “mães-solo”, porque a solidão ao criar uma criança não está necessariamente relacionada ao fato de essa mulher ser ou não casada. O termo ainda gera dúvidas e não é preferido por muitas mulheres nessa condição. Contudo, elas são unânimes ao afirmar que a maternidade exercida sem divisão igualitária não é tarefa de “heroínas” ou de “guerreiras”: elas são mulheres, humanas, que precisam de ajuda, não apenas de elogios.


Os últimos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a respeito das famílias brasileiras são de 2015, quando havia 28,9 milhões de núcleos familiares sustentados por mulheres. Em 2020, na primeira etapa da pandemia da Covid, aquelas que exerciam funções informais, microempreendoras, autônomas ou desempregadas tiveram direito a receber o dobro do auxílio emergencial, R$ 1200. Ainda assim, as mães sabem bem que criar um filho vai além de alimentá-lo. Há muitas mulheres que recebem pensão alimentícia dos pais de seus filhos ou, mesmo casadas, sentem-se solitárias quando o assunto é a educação e a formação do caráter dessas crianças. Foi fundamentando-se nessas histórias que grupos que discutem a maternidade propuseram o termo “mãe-solo”. 

Adriana Medeiros e Caiã: Crianção teve a contribuição da família e de amigos

A pesquisadora, professora e atriz Paolla Souza, é mãe da pequena Ana Lu, de quase 5 anos. Ela e o pai de sua filha não foram casados e, embora ele participe da criação da menina, Paolla se considera uma mãe-solo.

“Vivemos em uma sociedade fortemente patriarcal. Espera-se de nós mulheres que estejamos casadas com os pais de nossos filhos ou permaneçamos em relacionamentos ruins em nome dessa família, isso é patriarcado! Logo, se não estou casada com o pai da minha filha, sou lida pela sociedade como mãe solteira. Não como mãe e ponto. O estado civil vem colado. A nossa sociedade é muito machista e moralista. Por isso, mesmo com toda rede de apoio que tenho da minha família e do pai da Ana Lu, eu me identifico como mãe solo, pois as maiores responsabilidades são minhas. Para eu deixar de falar que não sou mãe-solo a divisão da criação deveria ser igual. E não é. Da mesma forma que pai e mãe foram responsáveis por gerar uma vida, são responsáveis por dividir de forma igualitária a criação. Por isso eu afirmo que há muitas mulheres casadas que são mães-solo”, explica.

A atriz Adriana Medeiros, no entanto, apesar de ter vivido uma história semelhante à de Paolla, não se identifica com a denominação. Ela foi mãe aos 23 anos, chegou a morar com o pai de seu filho por um curto período, mas logo se viu a única responsável pela educação do Caiã, que hoje tem 30 anos. Contudo, mesmo sem a presença do pai, Adriana não se sente confortável para dizer que o criou sozinha.

“Tive minha mãe, minhas irmãs, meus amigos que sempre estiveram próximos na criação do meu filho. Foi difícil, é claro, mas não posso dizer que fui inteiramente responsável. Outras pessoas partilharam desse processo. Uma pena que uma delas não foi o pai do Caiã. Ele não viveu essa experiência maravilhosa que é criar um filho. Hoje eu e ele temos uma boa relação, mas a verdade é que com o filho criado fica fácil, afinal já não há mais as preocupações e cuidados que uma criança exige. Afora isso, sinto-me até privilegiada porque tive total liberdade para moldar o meu filho com as minhas ideias. Caso o pai estivesse próximo, certamente haveria conflitos”, conta.

Ana Paula Motta e Pedro Otávio: apesar do orgulho, não se vê heroína

Para a professora e jornalista Ana Paula Motta, a maior dificuldade é a condição psicológica.  Ela descobriu a gravidez quando havia acabado de se separar do marido e se viu sozinha diante desse desafio, mas também acha que, assim como a demarcação do estado civil é problemática, a expressão “solo” não se encaixa nessa situação.

“Penso que esse termo pode soar como uma romantização. Eu não planejei isso, não foi uma opção, não gostaria que fosse assim, mas aconteceu. Além disso, sempre fui muito incisiva, exigia que o pai participasse da criação do Pedro, ainda que os encargos mais complexos fossem meus”, lembra.

Guerreiras não

Mesmo que não concordem em relação ao termo, todas as mães ouvidas nesta reportagem desaprovam a ideia de que o fato de criar seus filhos sozinhas lhes confere o título de heroínas.  A pedagoga e arte-educadora Elisangela Rosa, mãe do Jeiel, de 13 anos, salienta a necessidade de desconstruir as representações criadas em torno da figura materna.

Eliz Rosa e Jeiel: para ela, mães precisam de apoio, não somente de elogios

“Nos colocam no limiar entre o sagrado e o profano. Ao mesmo tempo em que a mãe é imaculada, aquela que não erra, a sociedade também nos demoniza, principalmente se estivermos desacompanhadas de um marido. Senti muito isso sendo mãe-solo. O fato de eu não estar em um relacionamento foi, muitas vezes, mais importante do que os desafios que eu tinha de lidar na criação do meu filho. Perguntas como ‘Você não vai voltar para ele?’ eram recorrentes. Veja que é comum ouvirmos que as mulheres foram ‘rejeitadas’ ou ‘abandonadas’, quando o que essas mães precisam é de uma rede de apoio e não de julgamentos ou até mesmo palmas”, ressalta.

Adriana concorda: “O desafio de assumir uma criança com pai ausente não é um espetáculo, mas, caso fosse, há muitas gente na coxia dizendo que não vai dar certo (risos). Há a culpa, as preocupações, a falta de dinheiro, os palpites… Ter um filho sozinha transforma tudo. Mas assim como não existe essa ideia de ‘sexo frágil’, também não há ‘mulheres guerreiras’. Somos humanas, exaustas, com dores e frustrações”, destaca.

A pesquisadora Paolla se lembra de um episódio que a marcou.

“Quando fui entrevistada para o doutorado, um professor me perguntou como eu daria conta de conciliar a maternidade e a pesquisa acadêmica. Eu respondi: ‘você vai fazer a mesma pergunta para o pai da minha filha que também está concorrendo pela vaga ou só vai perguntar para mim porque acha que a responsabilidade de cuidar de um bebê é só da mãe? O professor não esperava essa resposta. No fim, fui aprovada e tive muito apoio dos meus orientadores e da minha família, e a sementinha na minha barriga me deu forças. Passei e ainda passo por situações difíceis, precisei de acompanhamento psicológico, afinal nossa subjetividade feminina é construída em torno de um ‘projeto família’ e, quando nos vemos subvertendo isso, mesmo que sem querer, nos sentimos perdidas. Isso deve ser pontuado. Não queremos que batam palmas, queremos construir uma sociedade em que a responsabilidade pela criação de uma criança seja assumida de forma igualitária entre mães e pais”, conclui.