×
Copyright 2024 - Desenvolvido por Hesea Tecnologia e Sistemas

O drama de quem não tem um teto para morar em Campos

O déficit habitacional do município é estimado em cerca de 3.500 imóveis, o que atinge pelo menos 10 mil pessoas

Habitação
Por Redação
2 de maio de 2021 - 0h01
Sem ter para onde ir, seis famílias passaram a morar em salas de aula de uma escola abandonada da Usina São João, em Guarus (Foto: Carlos Grevi)

Ter uma moradia é direito garantido constitucionalmente ao cidadão brasileiro, mas, na prática, isso parece não ser para todos. Em Campos, o déficit habitacional é estimado em pelo menos 3.533 imóveis, o que pode representar mais de 10 mil pessoas sem um teto, levando em consideração famílias compostas, em média, por três membros. E isso não inclui as cerca de 200 pessoas em situação de rua. Apesar dos programas de construção de moradia a custos populares ou até de doação de residências, o que se vê é o crescimento deste público provocado pela multiplicação desordenada das famílias e agravado pela alta no desemprego. Para especialistas, a pandemia do novo coronavírus agravou ainda o problema.

Escola abandonada virou moradia (Foto: Carlos Grevi)

Sem perspectiva de emprego e sem moradia, campistas, em sua maioria jovens, pressionam os governos a investirem em políticas públicas habitacionais. Foi o que motivou um grupo de quase três mil pessoas a ocupar o conjunto de casa popular do programa “Minha Casa, Minha Vida”, o Novo Horizonte, em Guarus. As obras foram concluídas em março de 2021 e, de acordo com a Caixa Econômica Federal, as 772 casas não foram entregues porque “estavam em fase final de indicação e análise da demanda de beneficiários informada pela Prefeitura de Campos”.

O Jornal Terceira Via foi o primeiro órgão de imprensa a entrar no conjunto — que está cercado e monitorado por vigias contratados pela construtora Realiza — e conversar com os ocupantes dos imóveis, que se organizaram em lideranças. As casas foram pichadas com nomes dos que se autodeclaram donos. A Defensoria Pública da União (DPU) acompanha o imbróglio na Justiça.

Relatos que impressionam
“Morava na casa da minha ex-sogra, no KM-8, com meu filho de 3 anos. Mas, desde que me separei do meu marido, a convivência lá ficou complicada. Não tenho casa e nem trabalho. Sobrevivo com Bolsa Família e auxílio emergencial”. Donara Nogueira do Rosário, 19 anos.

Donara está na ocupação do Novo Horizonte e sonha com a casa própria (Foto: Carlos Grevi)

“Sou doméstica, mas fui demitida por conta da pandemia. Como morava de aluguel e passei a não ter dinheiro para pagar, entreguei a casa que morava com meu marido, dois filhos e duas netas no Parque Aeroporto e vim para cá”. Silvana da Conceição, 45 anos.

“Eu vivia da pensão do meu marido que faleceu, mas meu filho completou maioridade e nós ficamos sem renda. Hoje vivo de biscate de faxina, vendendo salgado e até capinando. Ocupei o residencial Novo Horizonte porque quero uma casa”, Carmem Lúcia Cardoso, 60 anos.

“Vivo do Bolsa Família e auxílio emergencial. Entreguei a casa que alugava para viver com meus dois filhos de 8 e 4 anos e vim para a ocupação”, Jenifer Barreto, 25 anos.

Apesar da pressão por uma moradia, uma decisão judicial da 1ª Vara Federal de Campos prevê que os ocupantes deixem os imóveis nos próximos dias. “A Polícia Federal esteve aqui com o documento e disse que precisamos sair daqui. Caso contrário, o Exército viria aqui nos retirar à força”, contou Jenifer.

O defensor público federal Thales Arcoverde recorreu da decisão. Por ligação de vídeo, ele explicou os trâmites necessários para resolver o problema. “A Prefeitura de Campos deveria providenciar um local seguro e transferir estas famílias para lá, para que a Construtora providencie os reparos necessários nos imóveis e a Caixa faça a distribuição conforme cadastro dos inscritos”, disse.

Dentro do programa, há casas que serão compradas por famílias a custo popular e com financiamento da Caixa e outras serão distribuídas pelo governo.

Joice Santos também se viu obrigada a mora na unidade escolar (Foto: Carlos Grevi)

Seis famílias vivem em escola abandonada
Campos é o município com maior extensão territorial do estado do Rio de Janeiro, superando, inclusive, a capital fluminense. Entre seus mais de meio milhão de habitantes, há aqueles que vivem em área de risco. Seis famílias moram em salas de aula de uma escola que pertencia à Usina São João, em Guarus, e esperam por moradia digna há 20 anos.

“Vim morar aqui quando meu filho mais velho estava recém-nascido. Hoje ele está com 13 anos e outro filho meu nasceu aqui. A nossa situação continua bem parecida com a do início. Eu saí da sala de aula e construí aqui nos arredores da escola”, disse Alessandra dos Santos.

Joice dos Santos foi morar com o marido e dois filhos na sala de aula desocupada pela irmã, Alessandra. “Meu sonho é poder sair daqui”, contou.
A escola possui problemas estruturais e pode oferecer risco de morte aos moradores. A ligação de energia é precária e as famílias improvisaram banheiros nas salas de aulas. É o caso de Andreia da Silva Batista, de 40 anos. “Me mudei para cá há poucos dias. Antes, tinha uma casa alugada perto do Hospital Geral de Guarus, mas a área foi dominada pelo tráfico e eu e meus filhos fomos obrigados a sair de lá”, conta Andreia.

Na área central de Campos, uma casa na Rua Ouvidor foi ocupada por um casal que vende doces em sinais de trânsito.

Dados oficiais desatualizados
De acordo com Rodrigo Carvalho, secretário municipal de Desenvolvimento Humano e Social, os dados oficiais sobre habitação em Campos estão desatualizados. O déficit estimado em 3.533 imóveis foi baseado no cadastramento de 2018 do programa habitacional Morar Feliz da prefeitura.

O último Censo foi feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010 e apontou um número bem maior: 10.882 unidades, segundo o professor da Candido Mendes e mestre em planejamento regional e gestão da cidade, Francisco Delgado: “Algumas informações disponibilizadas pelo IBGE relatam uma redução de cerca de 10,5% nos números do déficit habitacional do país, que caem de 6,49 milhões em 2010 para 5,87 milhões em 2019. Se mantidas essas proporções, o déficit do município baixaria das 10.882 para 9.739 unidades”.

A diferença entre os dados do último Censo e os divulgados pela prefeitura tem a ver com a redução da demanda com a entrega de 6.202 casas populares do Morar Feliz a partir de 2010.

Dados da prefeitura
A secretaria municipal de Desenvolvimento Humano e Social mapeou, com base no Cadastro Único, 71.978 famílias e alguns indicadores habitacionais. Deste público, o órgão constatou que 71.100 declararam domicílio particular permanente, 337 particular improvisado e 335 coletivo. Nos demais não houve o registro da informação. Sobre acesso a serviços públicos, 50% das famílias acessam o escoamento sanitário pela rede coletora de esgoto ou pluvial, 93% possuem água canalizada e 67% têm como forma de abastecimento a rede geral de distribuição. Em relação ao tipo de iluminação, 83% possuem acesso a rede elétrica com medidor próprio. Sobre o número de ocupação de imóveis abandonados, a secretaria informou que não possui atribuição para este tipo de monitoramento.

Aluguel social
O déficit habitacional em Campos é evidenciado também pelo programa público de aluguel social. A prefeitura divulgou que, em janeiro de 2021, foram beneficiadas 164 famílias; em fevereiro, o quantitativo foi de 160; e em março, 156. “O processo de avaliação das famílias beneficiárias é feito pela equipe técnica da secretaria, composta por assistentes sociais, que realizam o devido acompanhamento”.

Conjunto Habitacional Novo Horizonte foi invadido (Foto: Carlos Grevi)

Possíveis causas
Francisco Delgado aponta possíveis causas para o déficit habitacional. Para ele, a formação do espaço urbano de Campos evoluiu com a influência política e o poder econômico do setor sucroalcooleiro, que declinou a partir dos anos 1980. A grave crise pela qual passou o setor provocou a migração dos trabalhadores rurais em direção à cidade, em busca de trabalho, com altos custos sociais.

“A especulação imobiliária e privatização do espaço são a causa do surgimento de espaços a serem ocupados por um grande contingente da população mais empobrecida e precarizada da classe que vive do trabalho. Com a crescente ocupação territorial por parte dos condomínios fechados, algumas remoções urbanas são efetivadas pelo poder público local, atingindo as favelas, uma representação das desigualdades e injustiças sociais”, afirmou.

Segundo o IBGE, o Censo 2000 registrava em Campos a existência de 32 favelas, com 16.876 moradores, e 27 em 2010, com 15.777 moradores. “Tais implementações urbanísticas, a despeito de serem iniciativas do poder público municipal, não equalizaram as necessidades decorrentes da expansão urbana desordenada, principalmente pela falta de intervenções eficazes nas áreas periféricas e dirigidas às necessidades das camadas mais carentes da população”, informou Delgado.

“Para o cálculo do déficit habitacional são levados em consideração, entre outras, as informações sobre domicílios constituídos de mais de uma família e ônus excessivo com o pagamento de aluguel. Muitos sequer tiveram acesso ao abono emergencial. Os valores liberados pelo governo representam a possibilidade de sair temporariamente da condição de extrema pobreza”, revela.