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Relatos de vida e morte nas UTIs da Covid-19

Médicos, enfermeiros, técnicos e outros especialistas compartilham histórias de dentro das Unidades de Terapia Intensiva

Saúde
Por Redação
18 de abril de 2021 - 5h00


POR Ocinei Trindade e Priscilla Alves

“Quem subestima o vírus deveria passar um dia, um turno ou ao menos uma hora em uma unidade intensiva que atende infectados por Covid-19 para sentir um pouco do que nós, profissionais da saúde, temos vivido há mais de um ano”. O desabafo é da coordenadora de uma das Unidades de Terapia Intensiva (UTI) para pacientes com Covid do Hospital Geral Dr. Beda, Rita Paes, e também serve para ilustrar a proposta desta reportagem. As UTIs Covid são locais extremamente restritivos e é impossível visitá-las para conhecer de perto a realidade, mas o Jornal Terceira Via ouviu relatos de vários profissionais que atuam nestes setores com o objetivo de descrever ao leitor as dificuldades e casos marcantes vividos lá dentro.

São muitas as histórias de perdas que marcam os profissionais, e a enfermeira Mayara Souto destacou o caso de um jovem que perdeu a vida para a doença de maneira rápida. “Tivemos um rapaz novo que foi admitido no CTI acordado, lúcido, falando sobre a família e os planos de vida e em poucas horas evoluiu para a intubação, vindo com uma piora clínica brusca e em seguida uma parada cardiorrespiratória irreversível”, lamentou.

Para Taís Salgado, chefe de uma das UTIs Covid do Beda, entre os momentos mais difíceis está o de avisar ao paciente que ele vai ser intubado. “Falar para alguém que ele será sedado e saber que seu rosto e sua voz talvez sejam os últimos vistos e ouvidos por aquela pessoa é muito complicado. Tivemos uma jovem que só queria se despedir dos filhos e não conseguiu. Como não ser marcante, sabendo que ali está alguém que nunca voltará para dizer ‘eu te amo’, ‘você é especial’… São pessoas morrendo aos poucos, longe do carinho dos familiares, sem o último abraço”, lembrou.

Carolina Pereira (Foto: Divulgação/Arquivo Pessoal)

Entre tantos casos todos os dias, a enfermeira Carolina Pereira destacou o da perda de uma paciente jovem que também era da área da saúde.

“A morte dela me tocou muito porque era uma pessoa cheia de sonhos e com muita fé de que iria melhorar para cuidar dos filhos. Era muito nova e enfermeira, assim como eu. A parte mais difícil para mim é você se doar naquele momento para ajudar na melhora do paciente e não ver essa melhora”.

Não queria morrer antes do aniversário de filha e neto

A enfermeira-coordenadora Rita Paes tem 16 anos de experiência. Ela diz sentir-se em uma ‘guerra’ e que o momento atual é o pior desde o início da pandemia por causa da maior quantidade e gravidade de infectados. Ela lembra das últimas palavras ditas pelos pacientes.

“O momento da intubação é muito difícil, porque muitos suplicam nos falando frases muito impactantes, como: ‘Não, doutor, por favor!’, ‘Gostaria de voltar para agradecer a vocês…’, ‘Diga para os meus filhos que os amo muito!’, ‘Avisa à minha família para não deixar de cuidar das minhas plantinhas!’, ‘Tenho uma filha de dois anos. Preciso viver por ela!’, ‘Não me deixem morrer!’, ‘Fale para minha esposa que os melhores momentos de minha vida foram ao lado dela!’. E é muito difícil pra gente ouvir tudo isso”, desabafou.

Enfermeira Rita Paes (Foto: Divulgação/Arquivo Pessoal)

Para Rita, muitas foram as histórias marcantes, mas ela cita um caso. “Era um paciente em tratamento de câncer de próstata, que foi infectado pelo coronavírus e internado na UTI. Pouco antes da intubação, ele disse que não poderia morrer porque os aniversários da filha e do neto estavam próximos. Infelizmente, ele evoluiu gravemente, com complicações, e, poucos dias depois, morreu exatamente no dia em seria para comemorar os aniversários. Sem dúvida, isso me marcou muito”, desabafou.

“Para nós, que estamos à beira do leito desses pacientes, é como se os números não existissem. São pessoas que deixam lágrimas, histórias de pais e filhos que morreram com dias de diferença, às vezes casais que foram internados juntos e encaminhados para ventilação mecânica. São famílias devastadas por uma doença”.

Emoção diária

Para o cirurgião cardíaco Pedro Henrique Conte, a parte técnica de uma UTI não é o mais difícil, mas ter que lidar com o emocional e o cansaço. Ele é coordenador do Setor de Emergência do Hospital Dr. Beda e plantonista da UTI-Covid. “Na situação atual, fica bem comprometida a parte emocional, com unidades cheias, muita gente jovem. Estamos indo para o segundo ano de pandemia e todos estão saturados”.

Pedro Conte (Foto: Divulgação/Arquivo Pessoal)

Pedro Henrique Conte explica que uma UTI Covid é bem parecida com uma UTI geral ou convencional. “O que difere no nosso caso é que mais de 90% dos pacientes estão em ventilação mecânica. Isto foge ao habitual de uma UTI comum. Nossa rotina é examinar o paciente, coletar exames diários, a questão da gasometria arterial para analisar os gases sanguíneos com realização de três a quatro vezes por dia. Com base nessas análises, fazemos os ajustes de ventilação e medicação”.

O especialista diz que é importante destacar o trabalho que os pacientes de Covid dão por conta do uso de sedativo. “Precisamos de altas doses, uso de bloqueador neuromuscular, que é uma medicação que paralisa todos os músculos do corpo para tentarmos otimizar ao máximo a parte ventilatória. Após análises dos gases, os pacientes com ventilação inadequada são submetidos à manobra de colocá-los de barriga para baixo (pronados).

Fazer esse tipo de procedimento em um paciente crítico, intubado com várias medicações infundidas nas veias é bem trabalhoso”. Para realizar uma “prona”, às vezes é necessário o apoio de sete profissionais. “Em um plantão meu com 14 pacientes, precisamos realizar o procedimento em oito deles. São muitas mudanças de decúbito. Além da parte assistencial, há a parte burocrática. A parte do prontuário é de suma importância”, relata Pedro Conte.

Cláudio Lança (Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação)

O cardiologista Cláudio Lança é plantonista de Unidade de Terapia Intensiva no Centro de Controle e Combate ao Coronavírus (CCCC – Hospital Beneficência Portuguesa) e no Hospital Geral de Guarus (HGG). Segundo ele, cada dia, cada momento, cada paciente são totalmente diferentes. “O mesmo paciente, em questão de minutos ou poucas horas, pode melhorar um pouco, ou piorar assustadoramente. A gente nunca tem certeza do que vem à frente. Difícil dizer que existe uma rotina. A dinâmica da equipe de saúde muda muito a cada plantão”, conta.

Para Cláudio Lança, uma das coisas mais complexas e angustiantes para os médicos, considerando os casos de Covid, é decidir qual o momento-limite de intubar e iniciar a ventilação mecânica. “Dá a impressão, em alguns casos, de uma condenação. Mas, racional e cientificamente, pelo contrário, é uma tentativa de resgate e salvação. É desgastante”.

O médico do CCCC e do HGG diz que angustiam as variações dos sintomas (para melhor ou para pior) com determinadas manobras.

“Tem o estado emocional do paciente; falta de insumos, que varia entre as UTIs; envolvimento emocional com a situação; comandar e dividir atribuições à equipe de plantão… às vezes, estamos no limite emocional e físico; pressão financeira, trabalhar sem perspectiva de férias. Há dificuldade de profissionais para contratação para substituição. Sofremos com a frustração de vermos um paciente que não está melhorando absolutamente nada, e sacramentar a sensação de impotência. E, depois, ver que muitas outras pessoas que chegam nesse extremo terão o mesmo destino”.

Privações e desgaste psicológico

Profissionais relatam exaustão (Foto: Arquivo/Silvana Rust)

Além da sobrecarga de trabalho e do cansaço físico, a rotina intensa na UTI traz ainda o desgaste psicológico relatado pelos profissionais, geralmente causado pelas frustrações com as mortes. Outro grande desafio são as restrições impostas por todo o aparato de segurança de uso obrigatório.

O técnico em enfermagem Leandro dos Santos é um dos que atua na UTI desde o início da pandemia e sente-se esgotado. “São horas sem beber água, sem ir ao banheiro, com capote, com máscaras apertadas marcando e machucando o rosto. A rotina é muito pesada”.

Em atuação desde o início da pandemia, a técnica de enfermagem Eva Fernandez relata sentir ainda mais medo com o passar do tempo. “O que mais tem me assustado é a quantidade de jovens que estão dando entrada no hospital, a gravidade e a rápida evolução do quadro. Ficamos perplexos com tantas perdas”.

Além dos plantões cansativos e das constantes mortes, a enfermeira Carolina Pereira cita outras dificuldades. “Ainda temos que lidar com a discriminação que a gente sofre na rua por acharem que vamos contaminar todo mundo e a preocupação com os nossos próprios familiares. Tenho filho e tenho muito medo de me contaminar”.

Profissionais fazem apelo

O apelo dos profissionais da saúde para que as pessoas cumpram as medidas restritivas impostas pela pandemia nem sempre surte efeito. Mas, para estes eles, que lidam diretamente com a doença, a luta para minimizar a situação é constante.

“O silêncio da morte sem choro nem despedida e a solidão dos pacientes dão o tom nítido da diferença entre essa e outras enfermidades comuns nas UTIs. A evolução da doença é rápida e desconhecida, mesmo para os mais experientes profissionais. Mesmo assim parece que muitos não se importam. O principal sentimento que habita em mim, ao lado de tristeza, é de pura decepção ao constatar o quanto o ser humano pode ser desprovido de empatia diante de tudo”, lamentou a coordenadora da UTI Rita Paes.

O técnico em enfermagem Leandro dos Santos também cobra empatia. “Muitos jovens não se importam com a pandemia e participam de festas, saem de casa sem necessidade… enquanto nós, profissionais de saúde, estamos aqui lutando pela vida de todos que precisam, muitos não estão dando valor à sua própria vida”.

Ewerton Avellar (Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação)

Sem tempo para despedida

O fisioterapeuta intensivista Ewerton Avellar define a UTI Covid como um lugar intenso.

“São pacientes graves, às vezes apresentando sangramento em boca e nariz, alguns com Insuficiência Respiratória Aguda, ou seja, dificuldades para respirar, ‘fome de ar’, como um peixe fora d’água”, exemplifica. Segundo ele, diante de todos esses casos, o de um pai que queria se despedir da filha foi o que chamou mais atenção.

“Tivemos um caso recente de um paciente que percebeu na movimentação da equipe que seria entubado e pediu ao médico para fazer uma chamada de vídeo para a filha. Porém, o pedido dele foi negado devido à gravidade da doença e um quadro de queda de saturação importante, tendo que seguir com a intubação naquele instante. Infelizmente, o paciente alguns dias depois morreu. Eu me coloquei no lugar dele, como pai também, e fiquei muito triste com a situação”.

Carta de amor antes da intubação

O paciente com Covid é considerado um solitário por causa da obrigação pelo isolamento. Geralmente são nos profissionais de saúde que eles encontram apoio humano para enfrentar a doença. A enfermeira intensivista Gianelli Gusmão conta a história do primeiro paciente com Covid que cuidou na UTI. Antes da intubação, ele pediu para que a equipe entregasse uma carta de amor à esposa.

Enfermeira Gianelli (Foto: Arquivo Pessoal)

“Ele tinha escrito uma carta de despedida para a esposa e pediu para a fisioterapeuta ler para ele em voz alta. Foi uma linda declaração de amor. Quando eu fui administrar a sedação nele, eu segurei a mão dele bem forte e disse que ele ia voltar. O choro faz parte. É impossível não se envolver, e não ter sentimentos diante do sofrimento daquele ser humano. A vantagem de usar máscara é que eu consigo esconder as lágrimas”, lembrou. Ainda segundo Gianelli, essa história teve um final feliz e o paciente conseguiu se recuperar e recebeu alta.

O médico Pedro Henrique Conte diz que otimismo e esperança são coisas que nunca podem ser tiradas de ninguém, independente do estado clínico dos pacientes. “A esperança é o que nos mantém vivos, principalmente na fé. Nesse momento a fé é um alicerce bem importante. Ouvi do professor Adib Jatene que disse: “a função do médico é curar. Quando a gente não pode curar, a gente precisa aliviar. Quando não puder curar e aliviar, a gente precisa confortar’. Todos os profissionais de saúde precisam ser especialistas em gente antes de tudo”, conclui.