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Entre a lei e o bom senso: religiosos e cientistas questionam igrejas abertas na pandemia

Lei Municipal que considera funcionamento de igrejas como essencial durante pandemia de Covid-19 e outras catástrofes divide opiniões em Campos

Religião
Por Ocinei Trindade
28 de março de 2021 - 13h17
Missa na Catedral do Santíssimo Salvador em Campos em tempos de pandemia: distanciamento (Fotos: Carlos Grevi)

Desde 15 de março de 2021, Campos dos Goytacazes conta com uma lei municipal que classifica o funcionamento de igrejas como atividade essencial durante a pandemia. O autor da lei é o vereador Anderson de Matos (Republicanos), ligado à Igreja Universal, e que está no primeiro mandato. Ao sancionar a lei, o prefeito Wladimir Garotinho disse ser um marco importante devido à situação difícil do Brasil. Lideranças religiosas não são unânimes em relação à lei. Teólogos e cientistas políticos questionam sua aplicação, apesar de considerarem o exercício da fé como algo proveitoso em tempos sombrios de Covid-19.

Vereador Anderson de Matos (Republicanos) é autor da lei que considera igreja fundamental na pandemia

O texto da lei 9.032 (clique aqui) destaca a necessidade de manter as igrejas abertas, mesmo diante da pandemia e outras catástrofes. Além de templos cristãos, outras denominações religiosas também podem se valer da lei para funcionar neste período. Nas redes sociais, o vereador Anderson de Matos recebeu vários elogios, mas também muitas críticas em meio aos altos índices de infecção pelo coronavírus, e à necessidade de evitar aglomerações. A suposta necessidade de manter a arrecadação de dinheiro e ofertas nos templos figurou entre os comentários de internautas que se manifestaram nas redes sociais do Terceira Via. O vereador recorre ao senso comum da fé cristã para argumentar sobre a necessidade da lei no País.

“Opiniões contrárias e favoráveis fazem parte da democracia. Trata-se de um tipo de crítica preconceituosa e com falta de informação. Os fiéis das igrejas e dos templos religiosos, assim como qualquer outra pessoa, não precisam estar presentes para fazer doações voluntárias, elas fazem isso via internet. A permanência dos templos religiosos abertos pode não ser essencial para alguns, mas é, por exemplo, essencial para 87% da população brasileira que, segundo o IBGE, é de maioria cristã”.

Sobre o apoio das igrejas e religiões durante a pandemia, o vereador Anderson é enfático. “O apoio é essencial ao ser humano, no auxílio espiritual e social, que inclui distribuição de toneladas de alimentos, e ainda põe seus templos à disposição para vacinar, realizar doação de sangue e orientar sobre medidas sanitárias de proteção. Esse apoio das religiões é consagrado como direito fundamental constitucionalmente assegurado”, acredita.

Bispo de Campos, Dom Roberto Ferreria Paz (Foto: Arquivo) Silvana Rust)

Para o bispo católico da Diocese de Campos, dom Roberto Ferreria Paz, a lei municipal é reducionista. Ele considera que o serviço essencial que presta a igreja não está limitado ao templo.

“A igreja são pessoas. Onde houver pessoas, há igreja. Médico católico que atende os doentes de Covid é igreja; as enfermeiras católicas da Pastoral da Saúde são igreja. Então, confundir a igreja com o templo não é uma assertiva teológica, é uma teologia deficiente. Não se pode contrapor a liberdade de culto, a liberdade de consciência e de expressão litúrgica à vida. A vida está em primeiro lugar, pois liberdade religiosa não é absoluta. Esta lei pode abrir frestas para que setores fundamentalistas que veem a religião como uma espécie de hegemonia na sociedade, e não como um serviço de evangelização, de testemunho do amor de Deus, isso me preocupa. Uma vez que quer se debilitar estratégia de contensão de Covid, como é o lockdown, contrapondo igrejas ao lockdown. Não. Se é necessário lockdown, essa lei tem que estar subordinada ao bem comum, à ordem pública e à defesa da vida. Esta é a posição da Igreja Católica e da CNBB”, diz o bispo.

Igrejas católicas e evangélicas de Campos estão abertas, mas com redução de fiéis durante as celebrações, com orientações para uso de máscara, distanciamento físico e uso de álcool gel.

“Se o Ministério Público urgir, se o prefeito urgir que as missas sejam somente online como já foram, voltamos com muita obediência, pois obedecemos ao bem comum: a vida. Não precisamos de igrejas abertas para arrecadar dinheiro, não é essa a proposta. Que fique claro, a orientação será sempre salvar vidas”, defende a autoridade católica em Campos.

Análises e observações da lei

Prefeito Wladimir Garotinho com lideranças religiosas durante sanção da lei municipal

O chefe do Executivo, Wladimir Garotinho, encontrou-se com diferentes lideranças religiosas durante a sanção da lei municipal. “O papel da igreja é de suma importância para orientar, pregar o evangelho e confortar nossa alma”, disse na ocasião. Para o doutor em Teologia pela PUC-RJ e professor do programa de Políticas Sociais da Uenf, Fábio Py, a participação política da bancada evangélica, cada vez mais poderosa no Brasil, é um fenômeno que vem desde 1988.

“Deve-se lembrar nesse contexto de pandemia das atividades das grandes lideranças religiosas e corporações religiosas, sobretudo evangélicas. Em abril de 2020, fizeram um apelo no Planalto com carreata, para que considerasse igreja como essencial. Há um dado que as arrecadações dessas igrejas caíram 30% em 2020. A lei é uma espécie de resposta a isto. Em Campos, mostra a relação de Wladimir Garotinho com a Igreja Universal, Assembleia de Deus e outras lideranças religiosas de grande estrutura, como Segunda Igreja Batista e Igreja Semear. Isto não é uma prerrogativa local, mas no País”, observa Py.

Professor da Uenf e doutor em teologia, Fábio Py (Acervo Pessoal)

Para o cientista político Hamilton Garcia, a lei municipal é questionável. “Ela patenteia a fragilidade da esfera pública no Brasil e o fortalecimento do corporativismo de um modo geral, além da corrupção das instituições políticas. Elas têm pouca legitimidade e, por isso, tendem a se mostrar sempre fracas diante dos interesses bem articulados, bem representados. Isto não se aplica só à religião, mas a muitos interesses corporativos que hoje se organizam, muitas vezes, em detrimento do interesse público.

Segundo Garcia, as igrejas, os serviços e o comércio deveriam estar abertos sempre que possível nesse contexto de pandemia, desde que respeitando todas as regras.

Hamilton Garcia, cientista político e professor da Uenf

“Seria muito importante nesse momento a Igreja incentivar a realização de cultos híbridos ou remotos. Isto ajudaria a incentivar a inserção do público religioso nas redes, aumentar a competência das pessoas no manuseio das novas tecnologias de comunicação, inclusive os fiéis mais ricos, e a igreja a ajudarem os fiéis mais pobres a terem um chip ou aparelho para participarem do culto. Isto traria um impacto positivo na contribuição das religiões no processo educacional, sobretudo nos estratos mais pobres que têm dificuldade de acompanhar as atividades remotas no ensino básico e fundamental. As religiões perdem a oportunidade de darem uma contribuição ao Brasil neste momento”, acredita.

Favoráveis e contrários à lei

Alda Ribeiro é espírita e elogia a lei municipal (Arquivo)

Importante liderança da doutrina de Allan Kardec em Campos, Alda Ribeiro é referência entre os espíritas da cidade. Ela vê com bons olhos a lei municipal sobre funcionamento de igrejas durante a pandemia.

“Essa lei considerando a igreja como essencial é fundamental para o acalento das almas. Estamos vivendo uma grande transformação, em que a proposta universal é a fraternidade, como Jesus nos recomenda: “amai-vos uns aos outros”. Se aplica a todo o País. Considero a igreja, a instituição religiosa como a casa do pai e da mãe. O templo traz a todos nós o conforto, a proteção, a segurança. Respeitamos o espaço de 30%, como orienta a lei. Temos que respeitar a disciplina e a necessidade da esperança diante dessa crise mundial”, diz.

Cristiane Ferreira é pedagoga e ialorixá em Campos dos Goytacazes (Foto: Acervo Pessoal)

Adepta do candomblé, a ialorixá Cristiane Ferreira de Oxum não concorda com a lei por considerar idas aos templos de qualquer religião um risco atualmente.

“Não é essencial nesse momento tão avassalador. Religião não está no templo. Durante todos os cultos religiosos existem cânticos, louvores, orações feitas em conjunto. Nesse ar disperso, transpiramos, e já sabemos que existem os casos assintomáticos. Os orixás estão determinando silêncio em nossos atabaques, recolhimento em nossas casas e muita cautela. Devemos poupar os nossos mais velhos. Podemos perfeitamente usar os recursos tecnológicos, fazer lives para orações. Essa lei só serviria para dizimar mais vítimas, e, entre elas, os próprios profissionais da saúde que estão exaustos”, considera.

Carlos William é pastor batista em Guarus (Reprodução)

Carlos William é pastor protestante e presidente da Associação Batista Plani-Norte. Ele considera igrejas abertas um suporte de assistência espiritual para sociedade em meio à pandemia, desde que respeitadas as medidas de prevenção e higiene. Para ele, a lei impede a arbitrariedade das autoridades, permitindo que as Igrejas exerçam suas funções.

“Atualmente os cultos têm sido somente online em nossa Igreja, pois temos adotado medidas ainda mais restritivas com a intenção de prevenir o contágio dos membros e a comunidade local. Após o inicio da pandemia, iniciamos a transmissão de todos os cultos pelo Facebook”.

De acordo com o pastor batista, a fé pode ser praticada fora dos templos, sim. “Trata-se de um símbolo muito importante de comunhão e cumplicidade, pois o templo é também um lugar de treinamento para os crentes que cumprem a missão do seu Mestre”, acredita.

“Qualquer religião é uma coletivação. Sendo a Covid uma doença tão contagiosa e que requer tantos cuidados, abrir os templos para grandes celebrações ou pequenos cultos é, no mínimo, um risco, principalmente para a população mais pobre que tanto sofre com a pandemia”, diz o doutor em teologia, Fábio Py.

Política e religião

No Brasil, Igreja e Estado estão separados desde 1890. Antes, o catolicismo era a religião oficial do País e as demais religiões eram proibidas. O catolicismo gozava de privilégios com apoio do Estado. A Constituição de 1988, no artigo 19, declara que é proibido à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento, ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.”

Nas últimas décadas, com o avanço das igrejas evangélicas, sobretudo as pentecostais e neopentecostais, o Estado laico tem sido questionado e criticado por líderes e seguidores de alguns movimentos religiosos que tentam sobrepor as leis civis e a própria Constituição.

“Hoje há um atravessamento muito direto nas instâncias maiores federais e municipais em atividades religiosas. Os grandes líderes perpassam as pequenas comunidades e influenciam na sua governança. Essa lei municipal em Campos reforça a condição da capilaridade dessas grandes corporações religiosas evangélicas e católicas, que estão à frente das bancadas no Brasil todo. Campos dos Goytacazes é um grande berço cristão brasileiro”, observa Fábio Py.

Igreja Assembleia de Deus em Guarus (Reprodução)

Para o cientista político Hamilton Garcia, o problema do laicismo é que ele se entregou a uma perspectiva “lasciva” por parte da sociedade. “O que se vê é uma defesa de pautas ultramodernistas que são insustentáveis, que são muito vanguardistas diante da sociedade que a gente tem. De fato, isso enfraquece o laicismo quando este é associado à ‘lascívia’, à falta de regra, libertinagem, agressão às tradições, à desordem. Não é um momento bom para a cidadania laica e o Estado laico. Me parece que diante dos exageros e das inconsequências de alguns setores radicalizados, isso enseja uma reação conservadora e tradicionalista que está associada às religiões e que a usa para se afirmarem. Isso é preocupante”, avalia.

Fé e esperança

Celebração na Igreja Semear (Reprodução)

Entre favoráveis e contrários à lei municipal sobre igrejas abertas na pandemia em Campos, todos concordam de que a fé é importante para o enfrentamento da doença que tem ceifado milhares de vidas só no Brasil. “A fé é uma questão importante, que deve humanizar homens e mulheres. Uma expressão religiosa mais consciente pode ajudar a gente a se conscientizar diante da grande peste que tomou conta do planeta. Ela pode ajudar na crise sanitária, assumindo o dado mais primordial no cristianismo: a humanidade e o reconhecimento das mazelas humanas”, acredita Fábio Py.

Culto na Igreja Batista do Flamboyant, em Campos (Reprodução)

Para Hamilton Garcia, a religião é uma ferramenta para organizar a solidariedade. “Auxilia as pessoas a poderem suportar psicologicamente todo trauma da pandemia e de outras catástrofes. A religião tem um papel positivo. Agora, ela nunca deve abrir mão de fazer seu sacrifício e de repartir os recursos que conseguem amealhar dos seus próprios fiéis em proveito deles nesse momento difícil”, diz.

Para o bispo da Diocese de Campos, Roberto Paz, antes da religião, está Cristo. “Jesus é o verdadeiro templo. E cada pessoa é templo de Deus, e honramos a Jesus Cristo no seu corpo, e o corpo de Cristo é a igreja. A igreja está viva, está rezando, está partilhando esses momentos de sofrimento, está crucificada nos que estão entubados. Então, a solidariedade, a comunhão, a oração, a graça não dependem de um espaço. Celebraremos a Páscoa. Vamos fazer a travessia da morte para a vida, das trevas para a luz. Promovemos a fé inabalável no Deus que salva, que liberta e que restaura”, conclui.