×
Copyright 2024 - Desenvolvido por Hesea Tecnologia e Sistemas

Ângela Diniz e Doca Street: quem ama não mata

No Mês da Mulher, a socióloga da Uenf, Luciane Silva, analisa um dos casos de feminicídio mais emblemático da história brasileira

Artigo
Por Redação
19 de março de 2021 - 17h21
Doca Street e Ângela Diniz: um crime que chocou o Brasil nos anos 1970 (Foto: Reprodução)

Considerada pelos jornais da época como uma “paixão avassaladora”, o caso entre a mineira Ângela Diniz e o filho de família rica Raul Fernando do Amaral Street, marcou definitivamente a história da luta das mulheres no Brasil. No dia 30 de dezembro de 1976, após uma das muitas brigas do casal, Doca Street desferiu quatro tiros fatais no rosto de socialite. Para as leitoras e leitores que já conhecem bem este caso, em 2020 foi lançado um podcast que rapidamente tornou-se popular, Praia dos Ossos da Rádio Novelo, que conta episódios entre o dia da morte e o julgamento do réu confesso.

Após assassinar a namorada por não aceitar o comportamento independente de Ângela, conhecida como a Pantera de Minas por sua beleza, Doca tornaria-se para a opinião pública vítima dos “encantos” de uma mulher que viveria a partir daquele dia, uma segunda morte.

De comportamento independente, Ângela Diniz viveu com ele, um relacionamento curto de quatro meses atribulado. Naquele dia, após mais uma discussão, ela tentaria colocar fim ao relacionamento. A casa de Búzios e o dinheiro eram dela.

Tendo como advogado um dos maiores criminalistas do Brasil, Evandro Lins e Silva, Doca beneficiou-se de uma estranha construção na qual  o criminalista solicitava a um júri composto por cinco homens e duas mulheres que refletisse sobre “até que ponto a participação da vítima contribuiu mais ou menos fortemente para deflagração de tragédia”.

Além de uma pena bastante suave para Doca, a sociedade à época classificaria a vítima como responsável pela própria morte e sua vida como uma série de escândalos e imoralidades. Esta fenomenal história ainda tem lugar no debate nacional por representar um divisor de águas para o feminismo no Brasil. Após viver uma vida sem grande feitos, gastando e gozando de liberdade, Doca morreu em 2020. Em suas próprias palavras, “arrependido até o último fio de cabelo pelo que havia feito”.

O segundo julgamento, em 1981, resultado da pressão do movimento feminista, tinha como principal slogan “quem ama não mata”. Uma resposta ao argumento “matar por amor”. Um outro tempo. O argumento de que a morte foi ocasionada por forte paixão, ou seja, a passionalidade como defesa, não seria aceita, e Doca seria condenado a 15 anos de prisão.

Em 2021, ainda nos deparamos com casos semelhantes: a defesa da honra em casos de traição, a paixão fatal que termina em morte; o desfecho no qual o cônjuge, não aceitando a nova vida de sua ex esposa, retorna ao lar e mata a família; não raras vezes, incluindo filhos do casal, são exemplos das formas de relacionamento vividas constantemente por mulheres.

Ângela, belíssima, jovem e autônoma, fugia ao padrão imposto de “mulher recatada”. E o julgamento de seu comportamento explicita o controle sobre o corpo feminino e sobre o comportamento, punido no limite, com a morte.

Nossa socialização romântica aos 12 anos, com as revistas Sabrina, Julia e Bianca, muitas mulheres na década de 70 sonhavam com um homem perfeito.  Até mesmo a cena de uma praia paradisíaca na qual dois amantes fugiam dos holofotes, lembrava este roteiro de filme. Em minha opinião, devemos incentivar as decisões de nossas mães, amigas, filhas, alunas, quando estas decidem colocar o ponto final em um relacionamento. Geralmente nestes casos, anos já foram gastos em tentativas de ajustes e salvação de um casamento. Com maior independência financeira, o que falta ainda em 2021, são equipamentos de apoio às vítimas de violência.

Luciane Silva é socióloga e professora da Uenf ; autora do artigo para o Jornal Terceira Via (Arquivo)

As redes de acolhimento são essenciais e as delegacias especiais deveriam possibilitar (deviam ter as condições para isto) a estas mulheres a proteção inicial de que precisam. Não estamos falando das classes pobres. Falamos de mulheres de classe média e alta que sofrem da mesma sorte que outras: o assassinato como forma final de silenciamento.