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Tensões raciais, religiosas e políticas preocupam ialorixá de Campos

Cristiane Ferreira encerra a série de entrevistas na Semana da Consciência Negra

Entrevista
Por Ocinei Trindade
22 de novembro de 2020 - 0h02

Cristiane Ferreira é pedagoga e ialorixá em Campos (Foto: Acervo Pessoal)

Cristiane Ferreira, 55 anos, é pedagoga, animadora cultural, além de ialorixá (sacerdotisa) de terreiro de candomblé e umbanda em Campos dos Goytacazes. Defensora da educação pública e dos pensamentos e ensinamentos de Paulo Freire, ela faz das relações humanas uma contante oportunidade de aprendizagem. Atenta às tensões raciais na cidade e no país onde vive, Cristiane faz questão de refletir sobre a cultura afro-brasileira e a Consciência Negra que, para ela, é para ser pensada e praticada todos os dias do ano.

O que significa ter consciência negra para você?

Em primeiro lugar, não esquecer a Escravidão. Relembrar sempre que seres humanos, nossos ancestrais africanos foram escravizados. E assim se tornaram propriedade de outra pessoa, podendo ser doado, vendido, emprestado, alugado. Legalmente, não  tinha direitos, mas podia ser castigado e punido. Saber que a Escravidão foi abolida, mas o respeito aos direitos da pessoa negra, ainda requer muitas lutas.  Consciência Negra também é identificar e valorizar a presença dos negros nos territórios,  na Literatura, na História, na Arte. É fazer uma reflexão da nossa identidade negra nessa sociedade branca e racista. Romper o silêncio e a vergonha “étnico- racial” que foi incutida à  população negra. Reconhecer que o “ser negro” é  um ser humano.

O racismo é uma triste realidade no País e no mundo. Como analisa esse tipo de crime?

No Brasil, a desigualdade entre o branco e o negro é explícita.  Não vivemos uma democracia racial, ou em uma sociedade livre de preconceitos racistas. A discriminação racial no Brasil se faz presente em todos os âmbitos e esferas sociais. Diante de qualquer tipo de crime,  todos nós temos o dever de nos posicionar. E atualmente, as redes sociais são grandes aliadas, para expressar nossas indignações. Embora atos de racismo e injúria racial possam ocorrer também pela internet, em redes sociais ou sites.  O Brasil é um País com uma  grande extensão territorial. É  impossível que não se tenha contato com outras culturas, com outros costumes. Para que esse convívio seja possível, é necessário que as diferenças sejam respeitadas.

Como se combate o racismo?

Hoje a melhor forma de combater o racismo é a denúncia. É importante que a pessoa denuncie um ato racista. Nós  precisamos incentivar as vítimas a denunciar; desconstruir essa corrente de impunidade e desigualdade de direitos. Buscar nas leis nossa proteção e conhecer bem nossos direitos, e nos certificarmos de que as pessoas responsáveis por garanti-los o façam. Não  podemos  perpetuar a impunidade em pleno século XXI. O crime de racismo não tem fiança e é imprescritível, com multa e pena de até cinco anos. Uma prática racista pode gerar muitas consequências.

O que é preciso para despertar a conscientização dos brasileiros?

O Dia 20 de Novembro deve ser comemorado com a valorização da nossa cultura. A cultura é a herança genética de um povo, é o nosso DNA. E como educadora, é nossa responsabilidade resgatar a auto-estima dos nosso alunos, despertando neles o autorreconhecimento, reconhecimento e o conhecimento. Chega de estórias de princesas loiras. Nossas crianças precisam se reconhecer, ver sua negritude valorizada e enfatizada. Falar com nossas crianças dos negros que deixaram um legado motivacional para todos nós:  Zumbi dos Palmares, Nelson Mandela, Martin Luther King, Dandara de Palmares, Angela Davis, Milton Santos, Carolina Maria de Jesus, Tia Ciata, Luis Gama, Grande Otelo,  Pixinguinha, Abdias do Nascimento, Machado de Assis, Djamila Ribeiro, Elza Soares, Teresa de Benguela,   Conceição Evaristo, Aleijadinho. E aqui em Campos não podemos esquecer de José do Patrocínio,  Nilo Peçanha,  Mercedes Baptista. São alguns personagens fundamentais para  mudanças sociais e políticas ao redor do mundo.

Enfim, despertar a conscientização através de exemplos. Também não podemos esquecer, a importância de preservar e proteger as comunidades Quilombolas que representam uma prova viva da Escravidão. A educação se faz com exemplos e pode salvar uma sociedade.

Campos dos Goytacazes,  assim como o resto do Brasil, há muito ranço referente ao racismo.  Há algo que tenha te ferido nesse aspecto?

Certa vez, em um grupo de Whatsapp eu li um comentário que me deixou triste. Mas, serviu para que eu visse como o preconceito ainda está presente na sociedade. Eu gosto muito de futebol e também do carnaval. E nesse comentário a pessoa falou que “o futebol e o carnaval são coisas de gente alienada”. O futebol é o esporte mais acessível para os pobres e negros. É um ótimo recurso para trabalharmos disciplina, regras e valores com nossa crianças.  É um esporte coletivo. O carnaval é a maior manifestação cultural e artística do nosso País. Os desfiles das escolas de samba, uma grande apresentação teatral,  uma aula magnífica de História e Cultura.  E também é onde todos nós nos reconhecemos, porque no carnaval ricos e pobres, homem e mulher,  brancos e negros podem ser  o que quiser, é uma grande festa igualitária. Também já fui chamada de macumbeira, feiticeira, bruxa várias vezes por causa da minha religião de matriz africana, o candomblé e a umbanda. Mas, com o tempo nós aprendemos a lidar com a ignorância e o preconceito. E dependendo de quem fala, eu recebo como elogio. Hoje eu uso meus fios de conta, elékes e não me preocupo com a opinião alheia. O fato é que vivemos numa sociedade hipócrita. Um padre pode sair na rua de batina, uma freira com seu hábito, e nós de matrizes africanas? Por que não podemos assumir nossa ancestralidade nas nossas vestimentas ? No final do ano, todo mundo veste branco!

E sobre intolerância religiosa e educação?

Como educadora, quero destacar que a luta contra o racismo e a intolerância religiosa. É de suma importância a efetivação da Lei 10. 639/03  que torna obrigatório o ensino da História e Cultura afro-brasileira e africana nos currículos escolares. Sensibilizar educadores para tratar a História da África com a mesma relevância dada a outros processos históricos. Para um mundo mais justo, é imprescindível lutar por políticas públicas humanitárias.

Como observa o País sobre as questões humanas e raciais?

Infelizmente, o Brasil vive um momento obscuro. O fundamentalismo religioso está na política, nas igrejas, nas ruas, nas escolas, e há líderes evangélicos enriquecendo com o sofrimento alheio. A violência já  se tornou natural. Todos os dias pobres, negros, afrodescendentes da periferia morrem. Mais de 160 mil mortes pela Covid 19. A imprensa e os jornalistas sofrem ataques irônicos e pejorativos do Presidente que faz declarações agressivas para desviar a atenção dos problemas que o País enfrenta, muitos causados por ele mesmo. Exibe sua conduta homofóbica, machista, misógina, xenófoba com sarcasmo. É triste, mas viramos uma piada para o resto do mundo.  Mas, apesar de tudo isso, nesse 20 de Novembro não podemos esquecer que, brancas, negras ou indígenas, todas as vidas importam, como a de Marielle Franco, crime ainda não esclarecido totalmente.