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João Damásio destaca o preconceito racial em suas composições musicais

"É preciso ser antirracista em todos os sentidos", defende o artista no mês da Consciência Negra

Entrevista
Por Ocinei Trindade
21 de novembro de 2020 - 0h03

João Damásio se dedica à musica e ao ativismo negro há mais de três décadas (Fotos: Antônio Cruz)

Cantor e compositor em Campos dos Goytacazes há mais de três décadas, João Damásio costuma tocar em suas letras e canções uma ferida chamada “racismo”. Nos anos 1990, ele compôs “Mãe África”, música que participou de um festival, mas não foi classificada. Em um trecho, ele diz: “Sou negro sim. Não quero fim da minha raça. Mãe África, mãe preta em suas tetas mamei a vida, mamei a morte do sul ao norte sem liberdade. O negro é humanidade, o negro tem dignidade, o negro vive, o negro grita, o negro sente: o negro é gente igual a gente”. O artista e militante participa da série de entrevistas na Semana da Consciência Negra.

Esta canção dos anos 1990 é uma espécie de desabafo?

Eu frequentava o curso de Contabilidade no Colégio Estadual Nilo Peçanha. Em 1991, inscrevi a canção em um festival musical da cidade de Campos, mas a comissão julgadora considerou a composição “muito racista”. A música não foi classificada. Eu tinha a necessidade de compor sobre a vergonha da escravidão. Tem um trecho da música que diz “o negro não assume a negritude”. O racismo é subdivisão. Há muita sofreguidão, pois o negro já foi comparado a bicho incapaz de adquirir conhecimento. Se gente passa a vida toda seguindo o sistema e a sociedade e a história brasileira sem contestar, não avançamos.

Como se combate o racismo?

É preciso ser antirracista em todos os sentidos. A miscigenação misturou branco com negro, e, quem não tiver consciência elevada, talvez prefira ser branco a ser negro. Historicamente, pretos significavam uma ideia ruim e negativa desde a escravidão, após, e ainda isso ocorre até os dias de hoje.

E isso magoa, certamente. Como despertar a consciência das pessoas?

O mal da escravidão trouxe um desconcerto entre os brasileiros até hoje. Trabalhar a consciência é recuperar a auto-estima. Ninguém quer ser aquilo que não presta. Por séculos o negro foi condenado deste modo negativo. Houve avanço por meio da luta do movimento negro, mas ainda é insuficiente. Como pode ser um ser humano ser dono ou proprietário de outro ser humano? Houve conivência da igreja, dos reis, do sistema, império, ganância. Os negros são vítimas dessa vergonha que foi a escravidão.

Como se sente quando percebe o racismo?

A gente sempre ouve  frases equivocadas como  “a situação está preta”, como neste momento de crise financeira. O esgoto a céu aberto se tornou “vala negra”. A água que está suja está associada a cor preta.  Tem ainda as expressões racistas como quando algo é ruim como “só podia ser negro”;  “quando não suja na entrada, suja na saída”. Brincadeiras de mau gosto à parte, nós crescemos com o sentimento de inferioridade desde criança.

Quando a gente é tratado de forma diferente, questionamos por que nascemos diferentes. Eu descobri que a diferença não estava em mim, mas na maneira de pensar das pessoas sobre mim. Descobri que existia o racismo quando meu pai que era eletricista me disse que a educação seria a forma de eu conseguir liberdade. Eu tinha que ter formação, pois com a educação eu tiraria a corrente que estava em minha cabeça pelo racismo e preconceito.

Como observa os negros em posição de poder ou de destaque na sociedade?

Não temos  quase nenhuma representatividade na política. Basta ver os parlamentos, os governos de cidades e estados, além da ausência de negros no sistema judiciário; assim como professores de universidades, militares de altas patentes nas Forças Armadas; no setor agrário como proprietários de fazendas. Há um ou outro, apesar do país ser de maioria negra.  Há referências positivas recentes como Barack Obama nos Estados Unidos, além Joaquim Barbosa que passou pelo Supremo Tribunal Federal. Antes, um negro ascender na sociedade era impossível.

Na Semana da Consciência Negra quem te inspira em Campos dos Goytacazes?

Gostaria de prestar uma homenagem aos nossos abolicionistas da Planície Goitacá, aos nossos intelectuais orgânicos como Jorge da Paz Almeida, Dona Conceição de Maria, a Vovó Tereza, Geraldo Gamboa. Como sabemos, Zumbi dos Palmares é conhecido como o Herói da Resistência.  A luta de Zumbi é uma inspiração para que outros multiplicadores pelas causas do movimento negro se espalhem pela cidade e pelo país. Só deve haver uma raça, independentemente da cor da pele: a raça humana.