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Consciências negras importam

O Dia Nacional da Consciência Negra e de Zumbi dos Palmares vai além do 20 de Novembro

Cultura
Por Ocinei Trindade
16 de novembro de 2020 - 9h00

O despertar da consciência também passa por acontecimentos históricos. Sem conhecê-los, torna-se mais difícil compreender nossa origem, o modo de pensar e de agir como brasileiros. Os povos originários ou indígenas já estavam na terra brasilis há milhares de anos, antes da chegada dos portugueses em 1500. Décadas depois, vieram os africanos escravizados, trazidos em navios negreiros. Nesta mistura de etnias e crenças, conflitos e tensões não faltam até hoje. O ano de 1655 marcou a morte de Zumbi dos Palmares, líder negro que lutava pelo fim da escravidão, no dia 20 de novembro. Em 2003, a data passou a ser celebrada como Dia Nacional da Consciência Negra. O combate ao racismo resulta dessa conscientização.

O Jornal Terceira Via ouviu algumas das vozes de homens e mulheres negros que vivem em Campos dos Goytacazes na Semana da Consciência Negra. As entrevistas completas serão publicadas ao longo da semana no site do veículo (www.jornalterceiravia.com.br). Cada um reflete ao seu modo o que significa o racismo enfrentado na sociedade brasileira, além da necessidade de despertar em pessoas de todas as idades e cores de pele sobre o que representa possuir consciência sobre a cultura e os valores dos negros. Um advogado, uma pesquisadora acadêmica, um cantor, uma atriz, um professor e uma ialorixá comentam sobre a necessidade de educar e rever o papel do negro na sociedade brasileira.

Jorge de Assis preside a comissão de Direitos Humanos da OAB-Campos (Foto: Acervo Pessoal)

O advogado Jorge de Assis preside a comissão de Igualdade Racial da OAB-Campos,RJ. Ele considera que ter consciência negra traduz o orgulho e a necessidade premente da identificação da causa e da luta dos ancestrais africanos. “Eles foram vítimas do sequestro transatlântico e, forçadamente desembarcaram no Brasil, trazendo consigo um conjunto de culturas, de costumes e de tradições que eram pacífica e harmoniosamente vivenciados em solo africano. É também manter a consciência de que a escravidão foi formalmente abolida, mas que ainda há muita coisa a ser mudada no que pertine aos direitos humanos e as liberdades fundamentais das pessoas negras”, afirma.

O cantor João Damásio gravou em 1991 um álbum onde se destaca a canção “Mãe África”. Em um trecho, ele diz: “Sou negro sim. Não quero fim da minha raça. Mãe África, mãe preta em suas tetas mamei a vida, mamei a morte do sul ao norte sem liberdade. O negro é humanidade, o negro tem dignidade, o negro vive, o negro grita, o negro sente: o negro é gente igual a gente”. A composição foi inscrita em um festival de música em Campos dos Goytacazes na época.

João Damásio se dedica à musica e ao ativismo negro há mais de três décadas (Fotos: Antônio Cruz)

“A comissão julgadora considerou a composição `muito racista´. A música não foi classificada. Eu tinha a necessidade de compor sobre a vergonha da escravidão. Tem um trecho da música que diz `o negro não assume a negritude´. O racismo é subdivisão. Descobri que existia o racismo quando meu pai, que era eletricista, me disse que a educação seria a forma de eu conseguir liberdade”, conta.

Racismo institucional

O professor e dramaturgo Adriano Moura acredita que ter consciência negra é compreender os processos históricos, econômicos, políticos e culturais que produziram a escravidão, além de construir uma mentalidade capaz de combater o racismo como herança desses processos.

Adriano Moura é professor e dramaturgo

“Como professor tento combater na minha área de atuação que é a educação, discutindo, lendo, refletindo com meus alunos, futuros professores a assumirem postura combativa. Racismo é crime, e, como tal, deve ser denunciado, julgado, punido. Não dá para fazer vista grossa para instituições, amigos, artistas, políticos que o praticam. Não posso combater o racismo contra negros e fechar os olhos para situação dos indígenas e imigrantes de países latino-americanos. Tento lidar com o assunto abrangendo a complexidade étnica do mundo”, analisa.

Para a atriz e professora Lucia Talabi, falar de consciência negra é tocar em múltiplas  questões como as culturais, políticas, econômicas, religiosas e  humanitárias. “Há um vasto campo de relações que deveria ser discutido por negros e não negros, com objetivo de evoluir para uma convivência de respeito. Isto  em busca da desconstrução de estruturas que provocam injustiças, desigualdades, e a exclusão nos espaços de representação e poder a uma população que é maioria, tanto em Campos, no Rio e no Brasil”, defende.

Cristiane Ferreira é pedagoga e ialorixá em Campos dos Goytacazes (Foto: Acervo Pessoal)

A pedagoga Cristiane Ferreira observa que o racismo e a necessidade de promover a consciência negra são pautas que devem estar presentes nas salas de aula desde muito cedo. Ela também é ialorixá, sacerdotisa do candomblé e da umbanda. A discriminação religiosa de cultos de matrizes africanas é ainda uma manifestação racista.

“No Brasil, a desigualdade entre o branco e o negro é explícita.  Não vivemos uma democracia racial. Diante de qualquer tipo de crime,  todos nós temos o dever de nos posicionar. E atualmente, as redes sociais são grandes aliadas, para expressar nossas indignações. Embora atos de racismo e injúria racial possam ocorrer também pela internet, em redes sociais. A melhor forma de combater o racismo é a denúncia. Não  podemos  perpetuar a impunidade em pleno século XXI. O crime de racismo não tem fiança e é imprescritível, com multa e pena de até cinco anos”, afirma Cristiane.

Resistências

Clareth Reis pe professora e pesquisadora da Uenf

A professora Clareth Reis coordena o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI) da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Para ela, o Dia da Consciência é importante para toda a sociedade. “É um dia de falar também sobre os efeitos nocivos do racismo. E o racismo é um problema da sociedade em geral, e não apenas da população negra”.

Jorge de Assis lembra que  Dia da Nacional da Consciência Negra é uma conquista que vem desde o Movimento Abolicionista, no século XIX.

“O Movimento Negro retomou sua força, durante a luta contra a Ditadura Militar e pela redemocratização do País, na segunda metade da década de 1970, denunciando o racismo e o mito da democracia racial, deixando nítido que a luta contra os preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, deve ser de toda a Nação brasileira. Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”.

Adriano Moura considera que o 20 de novembro não é para se comemorar. “É para refletir sobre como combater as desigualdades sociais que vitimam predominantemente a população negra e mantêm as estruturas que sustentam o racismo. Também como sendo uma data que deveria servir de culminância de uma prática que precisa durar o ano inteiro: dar visibilidade à produção de pessoas negras nos diferentes setores como ciência, educação, arte. O apagamento é instrumento de discriminação”.

Clareth Reis afirma que para ter consciência negra é preciso se ver e se sentir integralmente negra ou negro.

“É saber que somos pessoas que merecem ser respeitadas e não apenas “toleradas”;  é olhar no espelho e enxergar sua pele preta, seu cabelo crespo e se gostar. É se assumir como negra, ou negro, em qualquer espaço social que transitar, seja na família, na escola, no trabalho ou no lazer. É saber que a nossa sociedade é racista. Por isso é necessário se juntar à luta antirracista.  Andar de cabeça erguida e não sentir vergonha de adentrar em qualquer espaço, mesmo que não sejamos bem vistos pelos olhares e atitudes de pessoas racistas”, comenta.

Professora, atriz e ativista cultural, Lucia Talabi reflete sobre Consciência Negra (Divulgação)

De acordo com a ialorixá e pedagoga Cristiane Ferreira, é preciso despertar a conscientização através de exemplos. “Não podemos esquecer a importância de preservar e proteger as comunidades quilombolas que representam uma prova viva da Escravidão. A educação se faz com exemplos e pode salvar uma sociedade”.

Lucia Talabi acredita ser necessária a reflexão sobre a história de contribuição cultural, tecnológica e produtiva da população negra no Brasil.

“Comemorar a força deste povo escravizado que sempre respondeu ao sistema escravocrata, com históricos e emblemáticos enfrentamentos pela vida e  pela liberdade. Esta data deve reverberar todos os dias do ano. O brasileiro precisa cada vez mais ser tocado pela compreensão do significado de resistência”, conclui.