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Participação feminina na política em ano de eleições

Recorde de candidaturas ainda não iguala representação masculina

Política
Por Marcos Curvello
19 de outubro de 2020 - 0h02

Representatividade | Presença de mulheres reforça democracia, diz socióloga

Campos tem 271 mulheres concorrendo a uma das 25 cadeiras da Câmara nas eleições deste ano. Elas representam 33,3% do total de 813 candidatos a vereador no Município — média 0,1 ponto percentual menor que a nacional, segundo dados atualizados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Embora seja considerada histórica, a marca ainda é somente 3,3% maior do que o mínimo determinado pela Lei 9.504 de 1997, alterada em 2009, e contrasta com distribuição da população por sexo no Brasil.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 51,03% dos habitantes do país são mulheres. Uma discrepância que, segundo especialistas, anuncia a urgência de um debate sobre a presença feminina na política e sobre a própria noção de democracia.

“Estamos falando de uma estrutura política de séculos, nas quais mulheres não votavam e não eram votadas. Isso não vai ser alterado na eleição de 2020 e não se resolve por Lei, embora ela seja importante para colocar a questão, como foram importantes as ações afirmativas nas universidades uma década atrás. Isso abre um diálogo sobre a maturidade da democracia no Brasil, a considerar que democracia pressupõe participação popular”, diz a socióloga Luciane Silva, professora da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF).

Segundo ela, o crescimento do número de candidaturas femininas pauta uma discussão de interesse amplo. “Termos candidaturas femininas não significa que as pautas discutidas serão as das mulheres. E quando falo das mulheres, falo da população em geral, pois saúde básica, acesso a creches e combate aos números de feminicídio são questões que devem importar à sociedade como um todo. Esse é o ponto mais importante dessa mudança. Assim como a pauta racial não é dos negros, mas de brancos, negros e indígenas, a pauta das mulheres não é exclusivista”, avalia.

A socióloga alerta que a promoção da presença feminina na política e nas estruturas de poder não deve ser compreendida como um “embate entre gêneros”. “Essa é uma construção que tem que ser feita entre homens e mulheres. Não pode ser uma espécie de competição. Isso seria absolutamente equivocado. É importante uma compreensão, uma sensibilidade ao fato de que a promoção da igualdade de gêneros dentro da política é o mesmo que promover a democracia no país”, diz.

Veja a íntegra da entrevista abaixo:

A participação feminina nas eleições é recorde, mas ainda não iguala a representatividade de homens e mulheres na política. Porque?

É importante que a gente possa olhar a questão da participação das mulheres na política para além do Brasil. Ela é bastante fundamental para pensar a democracia, mas, em muitos países do mundo você tem a mesma situação ou uma situação semelhante à do Brasil. Embora mesmo na América Latina o Brasil ocupe posições muito ruins quanto a esse quesito a representatividade da mulher na política. Nós devemos lembrar que essa é uma questão que diz respeito à própria forma da divisão social do poder, que não aparece apenas na política. Olhamos mulheres no Judiciário, mesmo com mudanças, os cargos de poder são majoritariamente ocupados por homens. Temos uma representatividade de mulheres na Ciência, no entanto, as mulheres produzem muito, mas não recebem o mesmo. Ou seja, a política aqui é uma dimensão que reflete a desigualdade de gênero. Essa é uma forma de abordar esse tema, a desigualdade de gênero em outras esferas, como a econômica e a científica, também está na política. Menos mulheres ocupando cargos decisivos no Executivo. Esse ano, temos uma mudança histórica importante garantida por lei. Devemos avaliar não apenas a formalidade da lei, mas, principalmente de que forma ela vai se efetivar nas pequenas cidades brasileiras, onde não temos mulheres nas Câmaras de Vereadores.

Como você vê a lei 9.504, que estabelece um mínimo de 30% de candidaturas femininas nas eleições?

Vejo a lei 9.504 da mesma forma que fizemos, uma década atrás, a discussão das ações afirmativas na Universidade. Quer dizer, você precisa de mecanismos que possam produzir maior equidade de gênero. E isso não vai se dar naturalmente na sociedade brasileira. O mesmo você pode pensar sobre desigualdade. Nesse momento a intervenção do estado é necessária como indutor de mudanças sociais. É por isso que essa ferramenta é importante. É claro que, sozinha, ela não garante nenhuma mudança social. Mas, coloca em evidência a possibilidade da discussão. A obrigatoriedade desse mínimo de 30% serve, primeiro, para colocar o debate: temos poucas mulheres na política brasileira. Em segundo lugar, serve como uma discussão muito importante para a maturidade da democracia no Brasil, a considerar que a democracia pressupõe a participação popular. E quando a gente troca em miúdos o que significa participação popular, percebemos na pirâmide social que mulheres ganham menos, têm uma jornada de trabalho maior. Durante a pandemia, são as principais cuidadoras da família — vão cuidar das crianças, dos idosos, e portanto, têm uma carga de responsabilidade. Então, por que não essa temática, a temática da creche, a temática da saúde básica, a temática da diferença, a temática racial? Por que ficariam de fora de uma pauta que tivesse as mulheres como protagonistas da construção da democracia no Brasil? Se nós falamos em relações desiguais de gênero, se nós falamos de cidades nas quais se tem uma tradição de poder que une terra, dinheiro, tradição e, de certa forma, uma reprodução do mesmo, famílias que dominam o cenário político há décadas, há muitos mandatos, a entrada das mulheres significa também a possibilidade de rompimento com o ciclo de continuidade política no qual se acaba elegendo sempre as mesmas pessoas. Então, a entrada da mulher no debate, na competição eleitoral, colocando seu nome e colocando outras pautas — isso é bem importante, a colocação de outras pautas —, a entrada da mulher produz uma mudança.

Muitas vezes, porém, partidos lançam candidaturas femininas apenas para cumprir o que determina a lei. Como lidar com isso?

Estamos falando aqui de uma estrutura política de séculos. Estamos falando aqui de relações instituídas de poder nas quais mulheres não votavam, não eram votadas, não participavam desse cenário político. É óbvio que isso não vai ser alterado na eleição de 2020. Exige uma urgência de ampliação das instâncias de participação e isso não ser resolve por Lei. Agora, conhecemos bem o jogo político no Brasil e sabemos que essa é uma possibilidade, o uso de candidaturas femininas fantasmas. Mas, nesse processo de mudança, é claro que o uso de candidaturas fantasmas não invalida o número de candidaturas que efetivamente estão propondo mandatos coletivos de mulheres, estão pautando as discussões sobre violência doméstica, sobre saúde, sobre educação de mulheres. Ou seja, os mecanismos de controle e de fiscalização também mudaram para que se evite esse mau uso das candidaturas femininas. E isso é um processo dinâmico. Ele pode ser aperfeiçoado ao longo das próximas eleições. E, nesse sentido, precisamos investir nas candidaturas femininas. O fato de ter mulheres concorrendo por si só não significa que as pautas sejam pautas que interessam às mulheres. E quando falo as mulheres, quero falar da população em geral, porque, quando falo em saúde básica, quando falo de melhoria de condições para acesso às creches, quando falo de um combate efetivo aos números de feminicídio, essas não são pautas das mulheres. Acho que esse é o ponto mais importante da nossa compreensão sobre essa mudança. Assim como a pauta racial não é uma pauta dos negros, é um problema de todos, brancos, negros e indígenas, a pauta das mulheres não é uma pauta exclusivista. Pelo contrário. É uma pauta de ampliação não só do processo democrático, mas de debates que são urgentes, como é o caso do feminicídio, pelos números, pelo perfil do fenômeno no Brasil, e pela necessidade que temos da melhoria dos mecanismos de combate à violência doméstica, por exemplo. Quando você ocupa lugares de poder, você possibilita que mais mulheres façam denúncias, criem mecanismos de acolhimento, sintam-se unidas em redes de solidariedade que são fundamentais. E esse debate tem que ser feito com homens e mulheres. Não pode ser feito como se fosse uma espécie de competição. Isso seria absolutamente equivocado. É importante uma compreensão, uma sensibilidade ao fato de que a promoção da igualdade de gêneros dentro da política é o mesmo que promover a democracia no país.

Qual a importância de termos mais mulheres na política?

O que é importante frisar é que não é uma questão apenas da entrada da mulher na política. É uma questão da entrada da mulher na política com uma pauta contrária a uma forma de fazer política que nós já conhecemos. E essa forma de fazer política que nós já conhecemos é um dos fatores que geram uma sensação de que o Brasil é um país onde a classe política é corrupta e onde você trabalha pelo jeitinho ou de formas ilegais. A entrada de novos atores na política, não só mulheres, mas negros, indígenas, possibilita uma maior representatividade, possibilita uma renovação das pautas e das formas de fazer política.

O que ainda é preciso para que haja representação feminina efetiva no processo democrático de representação popular?

Não basta acharmos que a entrada de mulheres na política resolve o problema. Representatividade é extremamente importante. É a porta de entrada. A grande mudança só acontece quando pudermos pautar temas que são polêmicos ou indesejáveis. O tema do aborto é controverso demais no Brasil, o tema do feminicídio, a discussão da divisão doméstica do trabalho entre homens e mulheres, igualdade salarial. Essas pautas precisam ser defendidas e existe uma grande possibilidade de que a renovação dos quadros de representação possa abrir espaço para que essas pautas entrem no cenário, no Parlamento, e ampliem a democracia e melhorem a qualidade de vida geral da população. Quando elegemos mulheres e quando essas mulheres têm uma qualificação educacional, ocupam esses lugares de poder, estamos combatendo uma das formas de desigualdade mais presentes nas sociedades ocidentais se olharmos a pirâmide socioeconômica. As mulheres negras ocupam os lugares mais inferiores nessa pirâmide, ganhando menos e vivendo as situações mais precarizadas, tanto no trabalho quanto de violência. Essas mulheres são as menos representadas dentro deste cenário político. Esse é um desafio que com certeza ainda leva algumas décadas para que se comece a atacá-lo efetivamente. Isso porque se tem um problema muito grave de escolaridade de certas parcelas da população e de acesso dessas mulheres aos espaços de construção democrática. Como alguém entra no cenário político? Muitas vezes é pelo bairro. Pessoas que moram na Penha, no Parque Rosário, no Turf, e que resolvem entrar na vida política, muitas vezes como vereadoras. Esse caminho é bem tortuoso. Por isso, é absolutamente fundamental que existam mecanismos de promoção da participação política das mulheres.