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Campos tem 122 crianças em casas de acolhimento

Bebês de colo ou com pouca idade, brancos e sem necessidades especiais são os mais procurados por famílias

Geral
Por Thiago Gomes
18 de outubro de 2020 - 0h01

Futuro incerto | Crianças acima dos 3 anos têm mais dificuldade de serem adotadas (Foto: Silvana Rust – Arquivo)

Há uma fila de crianças para adoção e outra de pais à espera de adotar. Dois grupos com o mesmo objetivo, que é formar uma família. Mas, se sobram pessoas querendo amparar legalmente um menor, por que ainda há pelo menos 40 crianças nos abrigos de Campos aguardando adoção? Isso ocorre porque elas estão fora do perfil mais buscado pelos interessados em adotar. Meninas, com idade entre 0 e 3 anos, brancas, são as preferidas. No entanto, existe uma divergência entre a preferência dos futuros pais e a realidade das crianças aptas à adoção. No município, no momento, não há uma única criança que se encaixe em tal descrição. Enquanto isso, aqueles fora da predileção dos pretendentes aguardam nas unidades de acolhimento e, à medida que os anos passam, veem o sonho de ganhar um novo lar ficar cada vez mais distante.

Os dados mais recentes sobre o assunto são de 31 de agosto de 2020 e compõem o relatório mensal de atendimento das unidades de acolhimento da Fundação Municipal da Infância e Juventude de Campos (FMIJ). Os números mostram que 122 crianças e adolescentes aguardam nas oito casas de acolhimento institucional de Campos. Destas, 40 estão disponíveis para adoção. As outras 82 ainda podem ser reintroduzidas em suas próprias famílias, pois não perderam totalmente o vínculo familiar. Das 40 disponíveis para adoção, apenas oito estão na faixa etária de 0 a 10 anos, o que representa 20% do quantitativo. Só sete crianças são brancas (17%). Há 18 pretos (45%) e 15 pardos (38%).

Ainda a respeito do grupo à espera de um novo lar, 16 crianças (40%) têm algum tipo de deficiência ou transtorno psiquiátrico. O que se conclui ao analisar tais dados é que a maioria dos internos não se enquadra no perfil preferencial dos pretensos pais.

Presidente da FMIJ, Sana Gimenes| – Foto: (Carlos Grevi – Arquivo)

De acordo com a presidente da FMIJ, Sana Gimenes, o tipo de criança mais procurado (já citado no início da reportagem) não é uma realidade só de Campos. Segundo Sana, a partir dos 10 anos, já fica mais difícil achar um lar adotivo e a situação complica ainda mais no início da adolescência, chegando ao “praticamente impossível” aos 16 ou 17 anos. Sendo que ao atingir os 18 anos, os internos precisam deixar os abrigos. Além da idade, crianças com necessidades especiais também têm menos chances de conseguir uma família substituta.

“A preferência por crianças brancas, pequenas e sem qualquer tipo de condição de saúde existe, mas temos visto nos últimos tempos algumas mudanças nesse comportamento. E isso é muito bom porque a adoção não é um ato que se refere à pessoa que adotou, mas sim à criança ou ao adolescente que vai ser adotado. Apesar dessa percepção de alteração da realidade, a preocupação existe, pois sabemos que à medida que a criança vai permanecendo mais tempo no acolhimento, mais improvável fica a sua adoção”, esclareceu Sana Gimenes.

A equipe de reportagem fez contato com a Vara da Infância e da Juventude de Campos, solicitou entrevista, mas não recebeu um parecer do órgão sobre o assunto até o fechamento desta edição.

Preparação para a realidade

A possibilidade de nunca serem adotadas é uma realidade que as crianças, sobretudo aquelas fora do perfil mais buscado, precisam enfrentar. Para isso, segundo Sana Gimenes, existe uma equipe multidisciplinar da FMIJ, formada por pedagogos, assistentes sociais e psicólogos, que ajudam esses meninos e meninas a lidarem com sentimentos como abandono, rejeição, entre outros.

Uma faixa etária em especial, formada pelo grupo com menos chances de uma adoção, de 14 a 17 anos, recebe uma atenção a mais da FMIJ. Para esses jovens foi criado há pouco mais de um ano o Programa de Autonomia e Estratégias para o Desligamento Institucional (Paedi). A presidente da fundação explica que o objetivo é proporcionar experiências que os auxiliem a enfrentar os desafios da vida adulta fora das unidades de acolhimento. O programa encaminha os adolescentes para a qualificação profissional, além de outras atividades internas e externas, mediante projetos de autonomia individualizados e prevê ainda a concessão de uma bolsa-auxílio aos adolescentes.

Renato Gonçalves| Preside o Conselho – Foto: (Divulgação)

“Além do trabalho de acompanhamento psicológico que nós fazemos com todas elas (crianças), e o atendimento técnico individualizado, a gente também desenvolveu esse programa específico que trata da autonomia dos adolescentes que não foram adotados e que entrarão na vida adulta sem vínculos familiares e muitas vezes até sem vínculos comunitários muito fortes”, esclareceu.

Sana destacou que o órgão ainda acompanha por algum tempo os ex-acolhidos depois de completarem a maioridade para garantir que haja inserção tranquila deles na comunidade.

Outros complicadores

Quando o assunto é adoção, há vários desafios a serem vencidos, conforme destaca o assistente social da Unidade de Acolhimento Lara, Renato Gonçalves. Ele, que também é presidente do Conselho Municipal de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, lembra que tanto o Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 19) quanto a própria Constituição Federal (art. 227) tratam como direito do indivíduo crescer em uma família. Por isso, quando não é possível manter o vínculo familiar, seja por violência, abuso ou outros problemas, o sistema se encarrega de introduzir o menor em uma família substituta.

Na teoria, seria uma espécie de violação dos direitos do jovem crescer em uma instituição, longe dos parentes. Mas Renato pondera que, quanto a isso, não há nada que o Estado possa fazer se não houver interesse da outra parte em adotar.

Além de idade e raça, há outros complicadores que podem afastar pretensos pais de seus futuros filhos. Segundo Renato, grupos de irmãos também enfrentam sérias dificuldades para encontrar um novo lar. Isso porque a maioria dos interessados busca um único filho adotivo e a prática das Varas da Infância e Juventude consiste em manter os irmãos juntos.

“Já tivemos casos de adoção de grupo de três e até quatro irmãos. É difícil, mas já conseguimos. Nestes casos que envolvem muitos irmãos, as equipes técnicas das casas de acolhimento e da Vara da Infância e da Juventude tentam de todas as formas mantê-los juntos. Só quando é feita a avaliação de que não há outro jeito, é que o juiz autoriza o desmembramento desse núcleo familiar”, comentou.

Vencendo a pandemia

Por causa da pandemia da Covid-19, as visitas foram suspensas na unidades de acolhimento em Campos. Esses encontros, segundo Renato Gonçalves, são importantes porque aproximam quem quer adotar de quem está à espera de adoção. Por isso, os abrigos precisaram se reinventar e instituíram as visitas remotas. Seja por chamada de vídeo, vídeos gravados ou até por telefone, pais e possíveis futuros filhos puderam se conhecer e estreitar laços.

“Dentro do perfil que as pessoas demonstraram interesse durante a inscrição no processo de adoção, conseguimos colocar em contato pais e crianças. Já tivemos histórias bem-sucedidas de adoção por esse novo sistema”, comemorou.

E o assistente social conclui: “Adoção é uma história de amor. Se alguém já pensou pelo menos uma vez em adotar, aconselho a buscar informações sobre o assunto junto à Vara da Infância. Temos uma infinidade de relatos de pais e filhos que se encontraram e vivem felizes. A família ficou completa após a adoção”, concluiu Renato.

Nova família| Rafael foi adotado aos 28 anos, contrariando o que normalmente se vê no momento de uma adoção

Gesto de amor

Completamente fora do perfil tantas vezes já mencionado na reportagem, Rafael ganhou um novo lar no ano passado. Portador de Síndrome de Down, ele tinha 28 anos quando foi parar em uma casa de acolhimento após a morte da mãe. Apesar da idade, Rafael necessita dos mesmos cuidados e atenção dispensados a uma criança. Graças ao amor do casal Manoeli e Fábio Gonçalves Coboski, o rapaz foi adotado e hoje, já com 29, integra a família formada por mais dois filhos, um de 13 e outro de 20.

Fábio e a esposa são professores de educação física e trabalham com pessoas com necessidades especiais. Foi durante o desenvolvimento do projeto de paraesporte do casal que ambos conheceram Rafael. Para Fábio e Manoeli, todos merecem uma oportunidade de pertencer a uma família.

“Quando Rafael foi encaminhado para o abrigo, nós íamos visitá-lo sempre. Depois começamos a trazê-lo para passar o final de semana conosco. Mas era um sofrimento muito grande tanto para nós quanto para ele quando chegavam as segundas-feiras e tínhamos que levá-lo de volta. Então resolvemos acabar com essa aflição e o adotamos. Muitas vezes as pessoas querem adotar uma criança, mas ficam presas a características físicas específicas e acabam perdendo a oportunidade de serem felizes e de fazerem alguém feliz”, contou o professor, lembrando que, se sua família não adotasse Rafael, seu destino, provavelmente, seria permanecer no acolhimento institucional.