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Socióloga analisa sobre as 45 mil famílias de Campos em extrema pobreza

A professora e pesquisadora da Uenf, Luciane Silva, vê com preocupação a fome e a insegurança alimentar no município

Entrevista
Por Ocinei Trindade
10 de outubro de 2020 - 12h54

Luciane Silva é professora e pesquisadora da Uenf (Foto: Terceira Via)

Durante toda a semana, o Jornal Terceira Via publicou uma série de entrevistas com especialistas de diferentes áreas do conhecimento que comentaram sobre a extrema pobreza em Campos dos Goytacazes. O tema foi destaque na edição de número 206, com o título “Campos tem 45 mil famílias em extrema pobreza”.  A socióloga Luciane Silva é professora e pesquisadora da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Neste sábado (10), ela encerra a série semanal de análises sobre o assunto. Os dados são da Secretaria de Desenvolvimento Social e do Ministério da Cidadania por meio do Cadastro Único.

Como socióloga, como avalia os números revelados pelo Ministério do Desenvolvimento Social, com mais de 45 mil famílias vivendo em extrema pobreza em Campos?

Esse dado não é exatamente algo desconhecido em Campos. Ele acompanha o quadro de recessão e desemprego, principalmente para essas famílias que acabam não conseguindo nenhum  tipo de renda formal, nem informal,  por estarem fora do mercado de trabalho. Em alguns casos, com os cortes de políticas públicas voltadas para a distribuição de renda, acabam também fora de benefícios que garantiam minimamente alguma dignidade relacionada ao básico do cotidiano: são três refeições diárias garantidas. Tem me chamado a atenção ao observar as periferias de Campos, como Portelinha, Matadouro, regiões de Guarus e do programa habitacional Morar Feliz espalhadas,  onde se vê famílias numerosas com precariedade de reprodução da condição material. Temos dez milhões de brasileiros que voltam para o mapa da fome. Em Campos, com mais de 45 mil famílias em extrema pobreza, muito provavelmente elas vivem um quadro de insegurança alimentar, passam fome.

Como combater ou minimizar esse problema?

Campos dos Goytacazes tem uma grande quantidade de terra de laboro e agricultável. Não faria muito sentido ter esse tipo de dado (extrema pobreza) em uma cidade com tanta riqueza em sua produção. Combater é assegurar uma renda mínima universal para essa população. Mas, assim como os benefícios como o Bolsa Família e outros, nós não podemos assegurar apenas que as pessoas possam comer. Elas precisam viver com dignidade. Precisamos assegurar as políticas básicas de educação e saúde. Para minimizar, com uma certa urgência, a Prefeitura de Campos poderia complementar esses benefícios, além de mostrar de que forma os recursos federais estão sendo empregados em Campos; o que foi recebido e como têm sido distribuído. Havia uma expectativa de  distribuição de um determinado número de cestas básicas para essa população em situação de extrema pobreza. É preciso assegurar nesse quadro de fome e de urgência na pandemia, dispositivos jurídicos constitucionais que possam fazer com que a comida chegue rápido para quem precisa. A burocracia do Estado como entrave é inaceitável, pois os recursos foram repassados. Transparência nesse momento é fundamental. O mau uso desses recursos durante a pandemia, por exemplo, pode levar o governador Wilson Witzel ao impeachment.  Em minha pesquisa na comunidade Portelinha, concluo que a população pode não morrer de Covid, mas pode morrer de fome.

Há muitas iniciativas particulares e de ONG´s, igrejas que se envolvem no combate à fome na cidade. Como avalia esses movimentos?

Acompanhei  movimentos de muitas entidades filantrópicas, como a das freiras do Convento no Jardim São Benedito. Durante os meses da pandemia, vimos a capacidade de ajuda a milhares de pessoas se exaurir. Quem precisa de alimento, precisa diariamente. Um repasse de 100 a 200 cestas básicas para quem faz essa doação tem um limite. O indivíduo não suplanta a sociedade. A única possibilidade de real combate a esse quadro é o Estado. A iniciativa privada em Campos foi muito acanhada na sua relação com a fome.  Tivemos a iniciativa de uma grande rede de supermercados diante de uma infinidade de outras tantas contribuições privadas que não foram colocadas à disposição dessa população. Ajudar reflete a  fraternidade política nesse momento. Mas mesmo querendo colaborar, há um limite. E nesse limite, o único ente capaz de resolver ou mitigar o problema é o Estado. E, neste caso, na minha percepção, o Município por ficar mais próximo. Desde a Constituição de 1988, é a unidade, talvez com mais possibilidade de tratar de questões relacionadas a renda e pobreza mais de perto. Há iniciativas em outros municípios que conseguiram dar conta. É possível que Campos tenhamos políticas públicas capazes de mitigar a situação de pobreza, fome e desemprego.

Como governos e sociedade deveriam encarar a extrema pobreza e a fome na cidade e no país?

Acho louvável a iniciativa da Terceira Via e, por isso, agradeço a oportunidade de discussão. Os dados sobre o mapa da fome estão públicos. A crise humanitária que estamos vivendo com o valor da cesta básica tende a produzir um quadro de vulnerabilidade social muito grande. Isto compromete a saúde das pessoas que ficam fragilizadas e expostas a outras doenças, além da Covid. Temos que continuar fazendo fóruns de discussão, além da pressão da sociedade civil para que os números sejam abertos sobre os milhões de reais que chegaram a Campos; e que saibamos como as cestas básicas chegaram às casas desses moradores, assim como os equipamentos de proteção individual para os profissionais da saúde. A pandemia explicita muito a má gestão. Não é de forma improvisada e atabalhoada que nós vamos resolver esse problema. Nós temos o pequeno agricultor que produz em Campos belissimamente produtos sadios, sem veneno,  capazes de alimentar quem muito precisa, como crianças e mães gestantes, especialmente. Nós temos que discutir métodos anticonceptivos e gravidez na adolescência. Temos que discutir tudo, mas alimentando as pessoas. Como pensava o Betinho, o alimento é uma grande chance de transformação social. Historicamente, penso que o alimento pode gerar muitas discussões sobre qualidade de vida, meio ambiente e sustentabilidade. Enquanto as pessoas se alimentam, elas podem pensar melhor. A cidade de Campos dos Goytacazes tem todas as condições de alimentar toda sua população.