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Professora da UFF analisa dados sobre extrema pobreza em Campos

Érica Almeida é assistente social e atua em projetos com trabalhadores que sobrevivem do lixo e resíduos

Entrevista
Por Ocinei Trindade
7 de outubro de 2020 - 10h00

Assistente social e professora da UFF, Érica Almeida (Foto:Reprodução)

O Jornal Terceira Via, em sua edição semanal, destaca a reportagem “Campos tem 45 mil famílias na extrema pobreza”.  Os dados alarmantes fazem parte do Cadastro Único da Secretaria de Desenvolvimento Social, sob a responsabilidade do Ministério da Cidadania. A assistente social e professora da Universidade Federal Fluminense, Érica Almeida, é uma das pesquisadoras entrevistadas pela reportagem. Nesta edição do site Terceira Via, a acadêmica analisa a situação da fome e da extrema pobreza em Campos dos Goytacazes e no País.

 

Como acadêmica e ativista em projetos sociais, como analisa os dados do governo que apontam mais de 45 mil famílias em situação de pobreza extrema em Campos?

Embora nós ainda não tenhamos os dados do Censo de 2020 para poder afirmar, com certeza, sobre o percentual de pessoas extremamente pobres no município, os números relativos ao Cadúnico, divulgados pela equipe técnica do setor de monitoramento e avaliação da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social de Campos são extremamente preocupantes. Segundo eles, das quase 60 mil famílias inscritas no Cadúnico, 5% encontram-se na condição de pobres e 68% na condição de extremamente pobres, ou seja, 109 mil pessoas. Se todos os extremamente pobres de Campos estiverem cadastrados no Cadúnico, isto pode significar que 21% da população do município vivam com renda per capita de até R$ 89 por mês. Se você considerar uma família de quatro pessoas, seria viver com menos de 400 reais por mês. Esses são dados  podem ter piorado com a longevidade da pandemia.

A título de comparação, em 1991, depois da chamada década perdida (1980), a extrema pobreza em Campos representava 15,66%; em 2000 ela caiu para 6,47% e em 2010 atingiu 3,6%. Portanto, contar com 21% da população do município nessa situação vai exigir solidariedade social e muitas políticas públicas intersetoriais, para enfrentar esse problema, e não ajuste fiscal e privatização dos serviços e bens públicos essenciais.

São famílias, em sua maioria, representadas pelo arranjo mãe e filhos, e que apresentam maiores dificuldades de se inserir no mercado de trabalho, seja em função da sua jornada de trabalho nas atividades do cuidado com os filhos, com os pais idosos e/ou doentes, com os familiares com deficiências, e etc,seja pela pouca escolaridade, em virtude do abandono precoce dos estudos, em função do trabalho ou da gravidez. Essas particularidades, muito comum nas famílias de trabalhadores com menor renda, acabam obrigando as mulheres a se submeterem ao trabalho intermitente e ao biscate, que remuneram pouco e não garante direitos.

O que é extremamente grave, embora não seja uma novidade para aqueles que vêm acompanhando o cenário político nacional de cortes nos gastos sociais em pleno contexto de crescimento do desemprego, é o salto da extrema pobreza e da fome após 2017, expressões da questão social que vinham sendo enfrentadas desde 2003, e que foram erradicadas em 2015, com um conjunto de políticas socioassistenciais e territoriais, dentre elas, a universalização do Bolsa Família e do BPC, entre aqueles que atendiam às exigências dos mesmos. Mesmo com críticas aos critérios adotados por estes programas socioassistenciais, é de conhecimento público os seus resultados positivos.

Bairros da periferia de Campos (Fotos:Carlos Grevi)

A pandemia trouxe mais visibilidade da miséria, da fome que já existiam? Como avalia este momento no país e na cidade?

É claro que a pandemia agravou ainda mais a pobreza, com a elevação das taxas de desemprego, em parte pelo fechamento e/ou diminuição do ritmo das unidades produtivas, mas, também, pelo desalento dos trabalhadores, depois de muito tempo procurando emprego e não encontrando. Além disso, a pandemia exigiu a quarentena e o distanciamento social, afetando drasticamente alguns setores que empregavam muitos trabalhadores de baixa renda, como o comércio, restaurantes e lanchonetes, hotéis. A construção civil parou, as donas de casa demitiram suas empregadas domésticas, ou seja, foi um “tsunami”, principalmente para os trabalhadores e trabalhadoras de menor renda. Como se não bastasse, os trabalhadores por conta própria, informais, também tiveram suas atividades impactadas. As diaristas, os catadores de recicláveis, os ambulantes, foram duramente atingidos.

É preciso ressaltar, no entanto, que a situação atual não é resultado apenas da crise sanitária, ela tem outros componentes que precisam ser problematizados. Em 2019, o desemprego atingiu 13 milhões de trabalhadores. Foram 6,8 milhões de subocupados e quase 5 milhões de trabalhadores em situação de desalento. A informalidade também cresceu, atingindo 40 milhões de trabalhadores. O curioso é que esses dados não chamaram a atenção da sociedade e foram quase que completamente blindados pelas mídias tradicionais. O índice de Gini, que mede a desigualdade de renda no país, indica que a desigualdade voltou a crescer em 2017, atingindo o seu ápice em 2020. Se não fosse o esforço do Congresso para aprovar o Auxílio emergencial, em um valor superior ao valor proposto inicialmente pelo governo, a situação estaria muito pior.

Eu gostaria de chamar atenção  para as reformas (Trabalhistas e do Teto dos Gastos) aprovadas no governo Temer e para a Reforma da Previdência aprovada no atual governo. Essas reformas são extremamente nocivas, porque elas limitam os direitos, sobretudo, os direitos sociais, escolas, postos de saúde, merenda, cirurgias, remédios, universidades para a grande maioria da população.Grande parte das famílias brasileiras ganha até três salários  mínimos mensais, ou seja, a redução das políticas públicas significa, muitas vezes, deixar morrer. Elas retiram direitos fundamentais, atingindo em cheio a capacidade de reprodução das famílias mais empobrecidas, além de diminuir significativamente as receitas do Estado para investimento na área social.
A outra questão diz respeito à forma como os governos de orientação ultraneoliberal enfrentam a crise econômica e social, aprofundando as desigualdades e mercantilizando os direitos. Isso é o fim de qualquer possibilidade de bem-estar e de construirmos uma sociedade mais cidadã. O município, embora goze de uma situação orçamentária privilegiada, também foi impactado com o desemprego e a redução salarial. Os trabalhadores brasileiros já perderam até 25% da sua renda durante a pandemia, que, por má gestão, está demorando mais do que se previa. Isso impacta também a renda do município, o que exige que as autoridades locais revejam as prioridades. A questão é que as necessidades do conjunto dos trabalhadores mais pobres não têm expressão na esfera pública e muito menos nos espaços institucionais e na agenda governamental. O que indica uma orientação política antipopular. Fechar restaurante popular, acabar com o programa de transferência de renda, de mais de 20 anos, duplicar o preço da passagem urbana e não dar a prioridade necessária ao programas de moradia popular e aluguel social é trabalhar com outras prioridades, com outros interesses e agenda que certamente não é a da maioria da população.

Moradia precária na Estrada do Jacu, no Parque Aldeia, em Guarus

A desigualdade social brasileira é histórica.

Não dá para pensarmos a desigualdade regional e de Campos sem problematizarmos a herança da monocultura da cana e o seu vínculo com a escravidão. Uma economia altamente concentradora de renda, tanto da renda do trabalho, quanto de recursos federais e altamente predatória do ponto de vista ambiental. Os usineiros se beneficiaram fartamente dos recursos públicos federais e municipais,com o Fundecana. A cana ainda é um setor produtivo importante, mas precisa contribuir mais com o município, no que se refere às condições e relações de trabalho. Se a cana produziu opulência e luxo, de um lado, produziu muita miséria, adoecimento e morte por exaustão, do outro. No início deste século, nós assistimos um conjunto de manifestações de trabalhadores ligados às Usinas em processo de falência, sem receberem os seus salários e os seus direitos, na extrema pobreza. Hoje em dia, são poucos os que veem a cana como uma possível ocupação; a nova geração quer estudar e concorrer a melhores postos de trabalhos. A cana é a última opção. Campos precisa investir na diversificação das atividades econômicas, priorizando aquelas mais redistributivas, solidárias, ambientalmente sustentáveis e que incluam os adultos e jovens com menor escolaridade. O Brasil tem uma politica fiscal regressiva, onde os pobres e trabalhadores pagam mais, proporcionalmente à sua renda, do que os mais ricos. Isso precisa ser revertido, mas não sei se teremos forças políticas para tal.

As ações de governos e setores privados como Ong’s e associações religiosas demonstram insuficiência no enfrentamento da pobreza e da fome, apesar de iniciativas. Como avalia essas práticas?

Historicamente, a benemerência e a filantropia sempre tiveram esse compromisso com os mais pobres, sobretudo quando o país não contava com as políticas públicas de enfrentamento à pobreza. Pessoalmente, eu não tenho nada contra a filantropia e a caridade, muito pelo contrário, e essa solidariedade individual é muito bem-vinda nas situações de desastres e de pandemias, como a que estamos passando. Todavia, a caridade não pode e nem deve ser o modo de se enfrentar a pobreza em uma sociedade.Essa solidariedade pessoal deve ceder lugar a uma solidariedade social na construção da democratização dos recursos e dos bens comuns, da justiça social, da equidade e da cidadania, como uma nova modalidade de relação social mediada pelos Direitos.Daí, a necessidade da reforma fiscal mais justa e progressiva. Nas sociedades modernas, as soluções que tiveram um pouco mais de sucesso no enfrentamento da pobreza foram aquelas que investiram na criação de emprego,acompanhado dos direitos e de uma proteção social ampla. Isso se constrói com políticas fiscais progressivas, ou seja, onde os mais ricos pagam mais. Uma sociedade cidadã não está assentada na filantropia, embora ela possa existir e deva existir.

O que pode ser feito no combate à fome e à pobreza extrema no município e no País?

A pandemia e a necessidade do auxílio emergencial colocaram na agenda a necessidade da sociedade fazer um debate público sobre a renda de cidadania, ou renda básica. Não há milagres, sobretudo no capitalismo periférico. É preciso uma agenda de prioridades e elas são muitas. A geração de empregos é uma questão central, mas não podemos nos contentar com empregos temporários, mal remunerados e sem proteção social. Isso é uma enganação. Você resolve o desemprego e aumenta a precarização do trabalhador, da sua família e do seu território, expondo todos à precarização dos serviços e da vida de modo em geral. Isso não é solução, do ponto de vista das necessidades de bem-estar dos cidadãos, e nós vamos repetir o passado do qual nós estávamos tentando nos livrar – o da desigualdade extrema e do racismo estrutural. Digo racismo estrutural, porque são exatamente as famílias negras, os jovens negros, os mais atingidos com essas políticas neoliberais. A outra questão, já citada, é a construção de um programa constitucional de transferência de renda ou de renda básica. Os trabalhadores não podem ser culpabilizados e tampouco penalizados pelas consequências de pandemia ou de outros desastres. Desde o governo Temer, além das reformas que retiraram direitos da maioria dos trabalhadores, os recursos nas áreas sociais como Educação, Saúde e Assistência Social, vêm caindo drasticamente, mesmo com o crescimento do desemprego. Isso é um paradoxo, do ponto de vista da equidade. Temos que reconstruir nossos vínculos e laços sociais em defesa dos nossos bens comuns.

Por lidar com projetos com recicladores de lixo e resíduos, como observa a inclusão dessas pessoas no mercado de trabalho?

Há 10 anos venho acompanhando o movimento dos catadores do antigo lixão de Campos. Mesmo antes do fechamento do mesmo, os catadores se organizaram para construir alternativas de inclusão socioeconômica de mais de 400 catadores que trabalhavam no aterro diariamente, alguns de dia e à noite. Esse grupo, durante mais de duas décadas, tirou seu sustento e criou seus filhos com os recursos do lixão, dinheiro oriundo da comercialização de recicláveis e de outros materiais que eles encontravam. Desesperados diante da situação de desocupação, eles aceitaram esse lugar de modo subalterno e resignado, como uma última possibilidade de criar seus filhos. O fechamento do lixão não era simplesmente transferir os resíduos para o aterro, ele implicava em eliminar a fonte de trabalho e renda de centenas de catadores e dezenas de pequenos compradores. O impacto econômico e social para este grupo foi imenso. Só não foi pior porque eles se organizaram coletivamente e publicizaram as suas demandas, exigindo que o governo local reconhecesse suas necessidades e seus direitos. A PNRS (Política Nacional de Resíduos Sólidos) acabava de ser sancionada, em 2010, e ela é clara quanto ao papel dos catadores organizados em cooperativas na política de coleta seletiva. Mas, o governo insiste em não reconhecer o potencial econômico e social desse setor e que as cooperativas de trabalho de catadores possam se transformar em um local de trabalho e renda. Além disso, falta o governo reconhecer como a política de resíduos pode contribuir do ponto de vista ambiental e na criação de uma economia circular. Hoje são 80 catadores, em 4 cooperativas, em situação de muita precarização.