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Faltam peritos e legistas no IML

Demora na liberação de corpos para sepultamento revela falta de investimento do estado na Polícia Técnica

Campos
Por Redação
24 de agosto de 2020 - 0h01

Há apenas quatro peritos legistas no posto; número insuficiente para atender à demanda (Foto: Carlos Grevi)

Sepultar um ente querido é uma das situações mais tristes pelas quais uma família pode passar. Mas não conseguir sepultá-lo no tempo desejado por questões burocráticas e pela carência de profissionais em postos de polícia técnica pode ser ainda mais desolador. O caso do adolescente decapitado em Campos, cuja cabeça, encontrada uma semana antes do corpo, teve de ser encaminhada ao Instituto Médico Legal (IML) de Santo Antônio de Pádua, a 130 km de distância, devido ao fato de que não havia médico legista no município chamou a atenção da equipe de reportagem do Jornal Terceira Via para o problema.

Há, na região Norte Fluminense, dois Postos Regionais de Polícia Técnica-Científica (PRPTC), também conhecidos como Institutos Médicos Legais (IML): um em Campos e outro em Macaé. Esses atendem aos demais municípios em seu entorno, dispondo de serviços de Medicina Legal, Perícia Criminal e Identificação (Papiloscopia). Entre os profissionais que atuam nesses postos estão os peritos legistas e peritos criminais, servidores concursados da Polícia Civil. Acontece que, devido à aposentadoria de alguns desses profissionais e da não realização de novos concursos públicos a fim de preencher as vagas deixadas por eles, a região carece desses serviços especializados e fundamentais na investigação e resolução de casos e liberação de corpos para o sepultamento.

De acordo com o Departamento Geral de Polícia Técnico-Científica (DGPTC), há quatro peritos legistas e oito peritos criminais lotados no PRPTC de Campos. Número que seria insuficiente para atender à demanda. O departamento declarou ainda que, diante dessa carência, esses profissionais trabalham em regime de escala, a depender da necessidade do posto. Vale lembrar que a perícia faz parte do procedimento pós-morte em situações de crime ou acidentes. Somente os médicos legistas, por exemplo, têm o aval para atestar coletar, analisar e interpretar vestígios e elaborar o laudo para contribuir nas investigações.

Jovem decapitado foi sepultado 10 dias depois do crime (Carlos Grevi)

Os casos

O caso da decapitação do adolescente Guilherme Gomes Bravo, de 17 anos, jogou luz para o problema: a cabeça do rapaz, encontrada no dia 8 de agosto, foi levada para um posto da região Noroeste Fluminense, em Pádua, porque não havia legistas nos postos da região Norte. Quando o corpo foi localizado, no dia 15 deste mês, a cabeça estava a 130km de distância. Foram emitidos, então, dois atestados de óbito – um para o corpo e outro para a cabeça – o que, burocraticamente, impediria a realização do sepultamento.

Segundo o advogado da família, foi preciso entrar com um pedido na Defensoria Pública para que essa via crucis chegasse ao fim por meio da justiça. “A defensoria conseguiu uma declaração de que as duas partes do corpo eram do mesmo jovem e o juiz, pautado nesse documento excepcional, concedeu a permissão para que o sepultamento acontecesse. Isso só foi possível devido ao inusitado da situação”, explicou o advogado. Após a família ter de se deslocar até Santo Antônio de Pádua, a cabeça do adolescente foi trazida para Campos pelo Corpo de Bombeiros no dia 17 e o corpo foi, finalmente, sepultado no dia 18.

Em março deste ano, outro caso de burocracia no momento do adeus já havia ocorrido. A jovem Camilla Reis da Silva, de 26 anos, foi encontrada morta por parentes dentro de casa, em Baixa Grande, na Baixada Campista, às 13h de uma segunda-feira. No entanto, o corpo só foi removido da residência às 21h30 da terça-feira, 32 horas depois. O motivo foi justamente a falta de médicos com competência para liberar o laudo e atestar o óbito da moça.

Na ocasião, dois médicos chegaram a emitir pré-laudos, mas não informaram que a causa da morte havia sido “natural”. A delegada da 134ª Delegacia Policial, Juliana Calife, explicou que houve uma divergência de informação. “A Polícia Civil só pede remoção para o IML quando há suspeita de morte violenta e o pré-laudo não chegou com informação de que haveria esse indício. Como a vítima era muito jovem, a médica achou prudente não atestar a causa natural e sim levar para o IML investigar”, disse a delegada. Somente após muita angústia e espera, o dono de uma funerária se sensibilizou e disponibilizou um médico que liberou, enfim, o laudo com a informação correta. Camilla havia falecido em decorrência de um edema pulmonar.

A resposta

O Coordenador Regional do Norte e Noroeste Fluminense dos Postos de Polícia Técnica, Carlos Frederico Ozorio Nunes, explicou que não há concursos públicos para peritos legistas e criminais há mais de oito anos. Além disso, nos últimos cinco anos, três peritos se aposentaram e um foi exonerado. “Tínhamos somente três peritos, então foi feita uma transferência de um perito de Itaperuna para Campos no fim do ano passado para que não ficássemos tão desfalcados. Este mês, o posto de Itaperuna está com apenas um médico e Pádua com dois. Precisamos de reposição urgente, mas o Regime de Recuperação Fiscal não permite concursos neste ano. Ainda mais com a pandemia… Estamos em um momento de crise”, disse. Tal concurso público estava, inclusive, previsto para 2020.

Carlos Frederico acrescenta que vem sendo feito um mutirão para dar conta de toda a região Norte e Noroeste Fluminense. “O cobertor é curto. Os peritos de Campos estão atendendo a Pádua e Itaperuna há sete meses. Esse rodízio de atendimento foi publicado em Boletim Informativo da Polícia Civil”, explicou. Lembrando que Campos faz uma média de 700 necropsias por ano.

Ele esclareceu ainda que “em nenhum momento os atendimentos foram suspensos” e que “a Administração Superior está efetuando todos os esforços para resolver este problema”.

Sobre esse assunto, o diretor do Departamento de Polícia de Área (6ª DPA), delegado Geraldo Rangel, disse apenas que “aguarda na medida do possível, a realização de concursos para suprir as carências”.

O serviço

A fim de compreender se esse problema ocorre há tempos, a reportagem do Terceira Via entrou em contato com um médico legista do PRPTC de Campos aposentado. Francisco Armando Lacerda trabalhou por 35 anos nessa função e, segundo ele, no seu tempo, havia profissionais em quantidade suficiente para atender a todos os municípios da região. “Éramos um perito por dia e fazíamos rodízio somente aos finais de semana”, disse. No entanto, apesar disso, Lacerda declara que, desde sempre, “a nossa polícia é arcaica e medieval em termos de investigação”. “A criminologia deve ser baseada em prova técnica, mas o serviço dos peritos não é priorizado. Nunca foi. E as consequências disso são graves. Pessoas inocentes acabam presas porque não há uma preocupação em buscar provas, por exemplo. A Polícia Militar atua na repressão, mas a Polícia Civil investiga pouco e não tem apoio da Polícia Técnica, que deveria ser a peça fundamental”, pontuou ele.