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A difícil tarefa das assistentes sociais em meio à pandemia

Profissionais que atuam nos hospitais têm o importante papel de lidar com a dor do outro nos bastidores da linha de frente

Saúde
Por Redação
26 de julho de 2020 - 0h01

Assistentes sociais oferecem suporte emocional a familiares de vítimas de Covid-19 e orientações gerais (Fotos: Carlos Grevi)

A pandemia do coronavírus evidenciou a importância de muitos profissionais que passaram a ser considerados “heróis” por estarem na linha de frente, prestando serviços essenciais à população. São médicos, enfermeiros, caminhoneiros, entregadores, atendentes de farmácia etc. que ganharam destaque e foram convidados a contar suas experiências na imprensa. Mas uma categoria, tão fundamental quanto, ainda não foi devidamente reconhecida. Esses são os assistentes sociais, responsáveis por prestarem um trabalho desafiador, sensível e, muitas vezes, despercebido: acolher os familiares das vítimas da Covid-19.

Embora o vírus seja biológico, a pandemia é um fato social. Cabe, então, a esses profissionais que atuam em hospitais públicos e privados, garantir que o serviço de saúde seja realizado de forma humanizada, sobretudo nesse contexto.

Sensibilidade | Márcia Cristina relata os desafios do exercício da profissão

No Centro de Controle e Combate ao Coronavírus (CCCC) de Campos, as quinze assistentes sociais que lá atuam fizeram mais de mil atendimentos. Elas, que são o único elo entre os pacientes internados e seus familiares, executam aproximadamente 60 ligações por dia para informar mãe, pais e filhos sobre o estado de saúde de seus entes queridos. Algumas vezes, elas são emissárias de boas notícias, mas nem sempre. Até o fechamento desta reportagem, as profissionais do Centro comunicaram, acompanhadas dos médicos, mais de 100 óbitos.

“Em linhas gerais, nossa função é fazer a leitura diária do boletim médico de todos os pacientes internados na enfermaria do CCCC aos familiares, responsabilizamo-nos pelo apoio psicossocial pós-óbito e pela orientação quanto ao resgate de direitos sociais que podem ser adquiridos, mas nosso trabalho vai além disso”, explicou a coordenadora de Assistência Social da unidade, Márcia Cristina Ferreira Silva Amaral.

Essas práticas de informar a respeito do quadro do paciente e comunicar o óbito não são uma atribuição do Serviço Social, de acordo com a Orientação Normativa n. 3/2020 do Conselho Federal da categoria. Em tese, é a equipe técnica, formada por médicos e enfermeiros, quem deve se responsabilizar por esse trabalho. Contudo, em uma unidade pública, com intenso fluxo de pacientes, a garantia do direito à informação por parte das famílias é prioritária.

Laís Leal | presta serviço de acolhimento no Hospital Geral Dr. Beda

Em hospitais particulares, como é o caso do Hospital Dr. Beda, no entanto, as assistentes sociais não exercem essa função de comunicação de boletim médico, mas também atuam como mediadoras e garantidoras da participação da família nesse processo tão difícil.

“Nas unidades do Beda, a informação quanto ao quadro do paciente é feita pelo próprio médico, em horários específicos e a partir do contato efetuado pela própria família. Mas, de qualquer forma, a pandemia exigiu uma reconfiguração das demandas do hospital e nossa função ainda é cooperar para que o atendimento, de modo geral, seja feito de forma humanizada. Também somos nós que fazemos a mediação de conflitos, que orientamos a respeito dos protocolos de Saúde, que buscamos compreender a particularidade de cada família e que dialogamos com todos os setores do hospital a fim de trazer conforto para os envolvidos”, explicou Laís, que acrescenta: “Somos, independente da instituição em que atuamos, a ponte entre os pacientes e suas famílias”.

A família

Superação | Maria (sentada) ficou internada no CCCC e família recebia notícias por meio do Serviço SociaL

Patrícia Ritter foi uma das pessoas que recebeu a triste notícia de que sua irmã havia falecido por intermédio das assistentes sociais do CCCC. “Esse é um trabalho que exige coragem. Desde o primeiro dia de internação, as assistentes sociais foram atenciosas e quando tiveram de me informar sobre o falecimento da minha irmã, tiveram cuidado. Esse é momento muito difícil e somente pessoas com empatia conseguem prestar esse acolhimento”, afirmou.

A tia-avó de Grazielle Gonçalves ficou internada por duas semanas no Centro de Controle e, ao longo de todos esses dias, foi comunicada sobre o estado de saúde dela, que tem 65 anos e comorbidades. Segundo Grazielle, o trabalho das assistentes sociais é nobre: “Elas são o nosso único contato. A quem mais podemos recorrer? Ter um parente doente é sempre difícil, mas quando podemos acompanhar de perto, o processo se torna mais brando. A Covid-19, no entanto, é uma doença muito ingrata, afasta as pessoas. Contamos somente com o trabalho das assistentes. Chego a ficar emocionada quando me recordo. Esse serviço de amparo, resolução de problemas e acolhimento não tem preço. Foi um bálsamo para os nossos corações. Não tenho palavras para agradecer”, recordou.

Após 39 dias internado, o comerciante Amaro Antônio Alvarenga Nogueira, de 52 anos, foi recebido com festa no Farol de São Thomé, onde mora. Ele, mesmo sem ser do grupo de risco, passou pela enfermaria e pela UTI, e quem recebeu notícias sobre o seu quadro foi sua irmã. Amaro contou à reportagem do Jornal Terceira Via que foi por intermédio das assistentes sociais que ele pode estar, de alguma forma, próximo da família. “Fui muito bem atendido pelos médicos e pelas enfermeiras. E minha família, do outro lado, pelas assistentes sociais. Fomos, todos, acolhidos e bem cuidados. Minha irmã não queria sair do hospital e me deixar só e foram elas quem a orientaram e lhe disseram que o contato seria frequente e que ela não precisaria ficar ali. E, graça a deus e a toda a equipe, no final, deu tudo certo”, declarou.

 Uma missão

Diante de uma pandemia, as assistentes sociais exercem um trabalho de subjetividade, delicado, árduo e contínuo. Um trabalho que, a princípio, assustou aquelas que estavam acostumadas a lidar com outras questões dentro da profissão. “Quando montamos a equipe, havia o medo do desconhecido. Mas, hoje, quando oferecemos a opção de substitui-las, nenhuma delas aceita. Todas alegam que têm uma missão a cumprir ali”, comentou a coordenadora que destacou ainda o amadurecimento promovido por essa função.

Com mais de 20 anos de exercício da profissão, Carla Rufino foi a primeira assistente social a fazer o plantão no Centro de Controle e Combate ao Coronavírus, no dia 9 de abril de 2020.

“Quando recebi a notícia de que iria atuar em um centro especializado durante uma pandemia, foi um baque, fiquei assustada. Afinal, era tudo muito novo. E encarar esse desafio, confesso, não é fácil. As famílias estão fragilizadas, não podem ter contato com seus entes queridos devido ao alto contágio da doença e dependem somente de nós, que repassamos o boletim médico por telefone. Somos a ponte entre pessoas que se amam”, destacou ela.

A assistente explicou que, além do boletim, elas ainda prestam orientações sobre o protocolo da Covid. “Muitas vezes, esses familiares que estão em casa também vulneráveis ao vírus, estão contaminados e sintomáticos. E é nesse sentido que a visão do serviço social é global”, apontou.

Também são as assistentes sociais que se responsabilizam por orientar quanto às ações posteriores ao óbito. “Somos nós quem damos a notícia de que não poderá haver velório, de que o caixão deverá permanecer lacrado, de que eles não mais verão seus familiares. Daí a importância do acolhimento. Esses familiares precisam ter alguém em quem eles confiem dentro do hospital; esse alguém somos nós”, disse.

Coordenadora do Serviço Social do CCC e assistente social em atividade

Carla lembrou ainda os frequentes descontroles emocionais por parte dessas pessoas e pontuou a necessidade de que uma postura cuidadosa diante desses casos. “Ouvimos muitos desabafos e também somos, por vezes, vítimas de algumas grosserias. Então temos de estar bem direcionadas e calmas para nos colocarmos no lugar dessas pessoas e entendê-las”, pontuou a assistente social que disse não ser mais a mesma após esses plantões. “Compadeço da dor de cada familiar e, por isso, estou ressignificando a minha vida, meus valores”.

A coordenadora do núcleo reiterou: “Podemos ver de perto a equidade, a solidariedade e o amor de todos os profissionais que estão ali, dedicados a salvar vidas; testemunhamos a tristeza quando um paciente se vai e a alegria quando outro vence. Esse mix de sentimentos, essas experiências… Não imaginaríamos viver tudo isso em tão pouco tempo. Por tudo isso, dedicamo-nos a melhorar a cada dia mais a nossa intervenção para cumprirmos essa difícil missão”, concluiu Márcia Cristina.

É Lei

No dia 3 de julho, o prefeito de Campos sancionou a Lei nº 8.987 que dispõe sobre a obrigatoriedade dos hospitais e clínicas médicas públicas e particulares da cidade a estabelecerem “mecanismos eficientes” para manter as famílias dos pacientes internados com suspeita ou confirmação da Covid19 bem informados sobre o estado de saúde deles. Essa Lei foi sancionada a partir do Projeto de Lei nº 044/2020, encaminhado ao Executivo pela vereadora Joílza Rangel, após esta ouvir reclamações de familiares de pacientes que não teriam tido acesso aos boletins médicos.

O trabalho dos assistentes sociais, segundo a Lei, deve ser feito todos os dias da semana, em horário comercial. Também consta no documento a necessidade de que os profissionais recebam treinamento específico, que tenham acesso a todos os departamentos das unidades de atendimento médico e de que também sejam acessíveis às famílias, estando disponíveis para “responder as solicitações de forma rápida”.

De acordo com a Lei, as unidades de Saúde que descumprirem o estabelecido serão notificadas em primeira infração e, caso haja reincidência, estarão sujeitas à aplicação de multas.

Histórias que comovem

Em meio a esse cenário pandêmico, marcado às vezes pelo desespero, às vezes pela gratidão, a equipe de assistência social do CCCC acaba por fazer parte do enredo da vida de muitas pessoas. Não somente por prestarem esse papel de informante ao noticiarem que um familiar está a salvo ou que não teve condições de vencer a batalha contra o vírus; a responsabilidade que envolve essa função pode ser ainda mais significativa.

“Quando algum paciente teve seus laços rompidos pelas circunstâncias na vida, ainda temos a incumbência de reatá-los ou pensar em estratégias para firmar novos por meio de buscas ativas, visitas domiciliares, entre outras ações”, pontuou a coordenadora.

A assistente social relata vários casos emocionantes durante a pandemia

Alguns episódios ficam guardados na memória desses profissionais. Márcia Cristina lembrou, por exemplo, a história de Paulo Roberto Silva, que deu entrada no hospital sozinho, foi levado para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI), mas, passaram-se os dias e ninguém procurava por ele. A assistente social verificou o endereço informado no momento da internação e foi, por conta própria, até Guarus, bateu de porta em porta até encontrar alguém que o reconhecesse.

“Uma senhora disse que seu Paulo Roberto vivia em situação de rua, que lhe doava um prato de comida vez ou outra, mas que não assumiria responsabilidades. Tive, então, a ideia de publicar uma foto dele no meu Facebook e pedi para que as pessoas compartilhassem na esperança de encontrar um familiar. Algum tempo depois, dois amigos dele, que não o viam há mais de 10 anos, entraram em contato comigo e aceitaram o papel de referência. Eu já havia reservado uma vaga para ele no abrigo provisório da Prefeitura de Campos, porém, para nossa surpresa, um desses amigos se prontificou a levá-lo para casa”, lembrou, emocionada. Após 50 dias de internação, “seu” Paulo Roberto tinha um lugar para ir e alguém para lhe acolher.

Mas, dentre essas histórias emocionantes, há também aquelas que deixam uma lembrança amarga, como quando duas filhas imploraram as assistentes sociais para que pudessem ver o corpo da mãe, embora o protocolo do Ministério da Saúde determine que, em caso de morte por Covid-19, as vítimas devem ser imediatamente ensacadas e levadas para a funerária. “Elas insistiam porque não conseguiam entender que não poderiam vestir a mãe com sua roupa favorita e lhe dar o último abraço…”.

Márcia Cristina rememorou outros momentos, como o episódio em que uma senhora, a caminho da UTI, segurou o braço da enfermeira e disse que estava com muito dinheiro na carteira, mas que a família não poderia saber, porque eles tomariam dela essa quantia. “Coube, então, a nós a tarefa de guardar o dinheiro em um cofre e buscar familiares mais distantes a fim de averiguar se essa idosa sofria algum tipo de violência”. Ou a história de um homem que possuía duas famílias e ambas reivindicavam o direito legítimo de serem informadas sobre o estado de saúde dele. “Lidamos diariamente com questões familiares e é necessário que tenhamos presença de espírito para contornar situações como essas”, afirmou.