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Imprudentes, barulhentos e perigosos

Pandemia traz à tona motoqueiros que não respeitam às leis e põem vidas em risco

Cidade
Por Redação
5 de julho de 2020 - 0h01

Frota de motos | Pandemia evidencia quantidade de motos em circulação

Por Girlane Rodrigues, Mariane Pessanha e Ulli Marques

Elas estão por toda a parte, geralmente em alta velocidade e emitindo sinais sonoros em decibéis além do permitido por lei e, por esse mesmo motivo, são fáceis de serem identificadas. Mas não é só isso: seus condutores passam entre carros sem manter a distância mínima obrigatória, transitam na contramão, avançam sinal vermelho, retiram as placas de identificação, colocam a própria vida e a de outros em perigo. São as motocicletas, o veículo mais usado em Campos durante a pandemia da Covid-19, quando o número de entregas de mercadoria por delivery aumentou, uma vez que o distanciamento social mantém as pessoas em casa.

Se por um lado os motoqueiros são considerados “heróis” por estarem na linha de frente da batalha contra o coronavírus, ajudando aqueles que podem respeitar a quarentena, por outro, eles também cometem crimes, infringem leis regidas pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB) e comprometem a saúde alheia, além de aumentar o risco de acidentes.

Flagrante | motoboy empina moto e descumpre todas as leis de trânsito

A médica otorrinolaringologista, Andrea de Menezes, chama a atenção para a perda irreversível da audição em casos de exposição a ruídos acima do suportado. “Esse barulho provocado por motoqueiros é exorbitante, chega a ultrapassar a 100 decibéis e induz à perda auditiva tanto do piloto quanto de quem está próximo. O normal que o ouvido humano aguenta é, normalmente, até 40 decibéis”, afirma. Como não há tratamento, a médica defende a prevenção para garantir a saúde dos ouvidos e evitar irritações.

A psicóloga Luciane Mina explica que o barulho é um fator estressante na vida em sociedade, que faz gerar reação no indivíduo. “O som distorce a harmonia do sujeito e ao receber esse estímulo de decibéis maior que o normal, nosso corpo reage, seja para lutar, seja para fugir. É como se a pessoa estivesse recebendo um empurrão e isso explica o fato de muitas pessoas xingarem, se aborrecerem, ficarem agressivos ou, por outro lado, negar o barulho, se encolhendo, se fechando ou se defendendo de alguma forma”, conta.

Já os motivos que, segundo Luciane, levam os motoqueiros a praticarem tais irregularidades podem ser diversos. “Quem faz isso é porque tem a intenção de ser notado, de tirar o próximo do mundo dele e trazer para o seu. Ou seja, quem está lendo, por exemplo, e recebe esse estímulo de um ronco exagerado de moto, é obrigado, por não ter direito de escolha, a reconhecer e se atentar ao autor da manobra. Os motivos de quem quer provocar essa reação, pode ser para inferiorizar o próximo ou uma gama de outros motivos”, explica a psicóloga.

Escapamento alterado | Infração faz aumentar barulho pela cidade

No mês de junho de 2020, esse assunto ganhou destaque nas redes sociais dos campistas. Uma troca de farpas entre o empresário Sandro Moura e motoqueiros – por divergirem sobre o assunto – terminou em ameaça de morte. Tudo começou quando o empresário – que possui uma academia de musculação em Campos – gravou um vídeo condenando o excesso de barulho pela cidade causado por motos. Um representante dos motoqueiros rebateu o vídeo e convocou outros pilotos a fazerem ainda mais barulho, principalmente ao passarem em frente à academia e ao prédio onde o empresário mora, no Centro.

Um motoboy, que não quis se identificar, contou que o uso do torbal nas motos ajuda os motoqueiros porque chama a atenção dos motoristas e pedestres desatentos, evitando acidentes. “Se a gente faz barulho o pessoal reclama. Se fica em silêncio jogam a gente para o alto, pede desculpas e fala que não viu. E as pessoas são cismadas com motoboy, se tem um playboy com uma moto de alta cilindrada, com escapamento livre, a população não reclama”, diz.

O motoboy explicou ainda que, como trabalhou em oficinas, ele mesmo faz as modificações no escapamento das motos. “Faço desde que comprei a primeira. Agora, não uso mais o torbal mas um outro tipo de descarga, sem ser a original, que deixa o barulho mais suave, porém, continua chamando a atenção”, finaliza.

Síndica de um condomínio, Tatiana Gomes Ramos proibiu a entrada dos motoboys com as motos barulhentas. Ela explicou que a medida foi necessária diante das reclamações dos moradores. “Eles se queixavam do barulho ser muito alto e, muitas vezes, à noite, quando o fluxo de entregas é maior. As empresas entenderam a situação, mas alguns motoboys acharam ruim no início. Depois se acostumaram. Alguns se negavam a entrar a pé e o morador buscava a encomenda na portaria”, finaliza.

Perturbação ao sossego é crime

Alessandra é mãe de Nelson que tem autismo e é afetado por ruídos fortes

Essas irregularidades praticadas por motoqueiros afetam também a rotina em hospitais e nos lares. A professora Marcelly Lessa, de 31 anos, deu à luz uma menina no mês de junho de 2020. Luiza, apesar de muito pequena já tem sofrido com o desrespeito dos motoqueiros. “O barulho causado por motos com canos de descarga alterados estão causando grandes transtornos, principalmente agora, que temos uma recém-nascida em casa. Mesmo morando em prédio, o som dessas motos acorda e assusta nossa bebê. Moramos próximo à avenida Pelinca e depois das 18h, o tráfego de motoboys com esse tipo de moto é bem intenso. Além de atrapalhar o sono da nossa filha, atrapalha o nosso descanso”, lamenta Marcelly.

O problema do barulho afeta de forma ainda mais intensa aqueles que possuem sensibilidade auditiva. É o caso de pessoas com Transtorno do Espectro Autista que apresentam disfunções sensoriais. Sons demasiadamente altos, como é o caso do escape das motocicletas, agridem essas pessoas de modo bastante intenso.

Alessandra Santos da Silva é mãe do Nelson, de 9 anos, que tem autismo. Segundo a mãe, quando motocicletas “arrancam o motor” próximo de sua casa, o menino tem crises de choro, sua frio e fica bastante agitado. “Quando isso acontece, eu tenho que parar tudo o que estou fazendo para ficar em volta dele, tentando acalmá-lo. Às vezes ele não quer que eu chegue perto para lhe dar um abraço porque a sensibilidade sensorial dele é muito forte e o toque pode até piorar a situação. Sei de casos de outras pessoas com autismo que chegam a se debater, correr pela casa e correm o risco de se machucar”, contou Alessandra.

Questionada se já fez alguma denúncia a respeito do caso, ela disse que “não adianta”. “Quando infringem a lei do silêncio e decidimos denunciar, a Polícia Militar diz que temos de acompanhar o agente até o local. Essa prática nos coíbe e nos impede de fazer valer nossos direitos. A Polícia deveria nos proteger, mas a verdade é que isso não acontece. Nessa situação de infração por parte dos motociclistas, então, nos sentimos ainda mais impotentes”, comentou.

Em tese, de acordo com o Código Penal Brasileiro, perturbação ao sossego alheio é crime previsto no artigo 42 do Decreto-Lei Nº 3.688/41. Quem cometer tal infração, está passível de prisão simples, de 15 dias a três meses, ou multa.

Em nota, a Assessoria de Imprensa da Secretaria de Estado de Polícia Militar informou que o 8º BPM, em Campos faz patrulhamento na região, sempre com o objetivo de coibir práticas criminosas. “A ação é realizada com viaturas, motocicletas e a pé, além de apoio de policiais do Regime Adicional de Serviço. A PM informa ainda que quando flagra qualquer tipo de ação criminosa, faz a abordagem e encaminha os infratores para a Delegacia”, conclui a nota.

Infrações de Trânsito

Iuri Guerra, da Polícia Rodoviária Federal (Fotos: Carlos Grevi)

Além do crime previsto no código penal, os motoqueiros também infringem leis de trânsito. O assessor de comunicação social da Polícia Rodoviária Federal, Iuri Guerra, explica que há três tipos de infrações. A primeira é por alteração de características da motocicleta. “Quando, por exemplo, adulteram o escapamento do veículo sem as certificações exigidas pelo Inmetro, com o único objetivo de emitir som”, disse.

A segunda irregularidade é circular com o veículo com a descarga livre. “Ou seja, quando o cano da moto está fora dos padrões, seja por defeito ou por iniciativa proposital. Sabemos que alguns motoqueiros mudam o escapamento do veículo para um padrão esportivo, mas não possuem certificações necessárias. Apenas uma minoria está dentro da regulamentação”, afirma, acrescentando que são infrações consideradas graves, que geral multa de quase R$ 200.

A terceira infração cometida, segundo Guerra, é produzir ruídos acima do permitido por lei, que são 60 decibéis. “Nesse caso específico, temos dificuldade em intervir, porque não temos o equipamento para fazer essa medição. Fora isso, a Polícia Rodoviária Federal não tem medido esforços para fazer cumprir a lei. Já é nossa rotina atuar nesse sentido em rodovias federais e nossa atuação resulta na aplicação de cerca de 10 multas e motos retidas por dia. A lei não permite apreensão das motos e, por isso, o que fazemos, é conduzir ao pátio, aplicar multa e liberar o motoqueiro. Mas ele tem que se comprometer a retornar à nossa delegacia em um prazo de cinco dias com a situação regularizada. Caso contrário, ele é multado novamente por desobediência”, garante.

Para Iuri Guerra, nada justifica esses maus comportamentos de motoqueiros pelas cidades. “Eles alegam que fazem barulhos e certas manobras para serem vistos e ouvidos por motoristas de veículos maiores. Mas ao afirmarem isso, acabam confessando a prática conhecida como ‘costurar entre os veículos em trânsito’ e isso é errado. O correto é guardar distância do veículo da frente e distância de até 1,5 metro do veículo do lado. Sem contar que é proibido parar sobre a faixa de pedestres e desrespeitar sinal de trânsito. O fato deles darem essa justificativa de quererem ser vistos e ouvidos, acabam confessando as práticas irregulares, o que, com certeza, torna-se um risco de vida muito maior para eles”, alerta Iuri.

De acordo com Iuri, só em 2020, a PRF aplicou 107 multas a motoqueiros por alteração de características ou descarga livre nas motos. Em 2019, foram 124 punições.

Comércio de escapamentos

A gerente de uma loja de motos, que preferiu não se identificar, disse que os veículos, normalmente, vêm de fábrica com escapamento modelo original, chamado também de silencioso. Para fazer a modificação, os motoqueiros compram os escapamentos modelo turbo e tiram o miolo desse escapamento, ou cortam, o que produz o barulho e incomoda a todos. Esses equipamentos podem ser vendidos normalmente e o mais barato custa cerca de R$ 100. “O que acontece é que muitas vezes os escapamentos são autorizados com um controle de decibéis e com a mudança no escapamento esse som se torna muito maior”, explica.

Vice-presidente da Associação dos Motoboys de Campos, Jefferson Silva diz que há 98 associados na entidade e assim que esses profissionais chegam são informados sobre as leis de trânsito, os equipamentos de segurança e também sobre a necessidade de evitar motos com torbal. “A gente informa, esclarece, mas a fiscalização deve ser feita pelos órgãos públicos. É necessário ainda que os proprietários de estabelecimentos comerciais não contratem os motoboys que têm esse tipo de modificação nas motos”, esclarece. No Rio, uma associação de motoboys iniciou uma na qual pede às pessoas para não comprarem em locais onde os entregadores usam motos com torbal.

Fiscalizações da Prefeitura de Campos

Algumas “bandalhas” dos motociclistas são também fiscalizadas por órgãos municipais. Segundo a Prefeitura de Campos, operações para ordenamento no trânsito de modo geral são rotineiras e envolvem a Guarda Civil Municipal e o Instituto Municipal de Trânsito e Transporte (IMTT), além de órgãos de outras esferas. Contudo, em relação ao excesso de barulho causado pelas motocicletas na cidade, a coibição dessa prática não seria uma atribuição do Governo Municipal.

A alteração de características do veículo, como no escapamento, por exemplo, que geram essas alterações no ruído, a prefeitura esclarece que a fiscalização é de competência do Estado, conforme o Artigo 230 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB). O que o município busca é, por meio da secretaria de Segurança Pública, homologar convênio para que possa atuar de forma complementar nesta fiscalização.

Quanto à Superintendência de Postura, esta atua somente na fiscalização de carros de som com finalidades comerciais, como os veículos de propaganda que circulam pela cidade, mas não em relação ao barulho de escapamento de motocicletas.

Diante disso, para denunciar esses casos, a população tem duas opções: a Polícia Militar, órgão estadual, ou a Guarda Civil, que pode atuar sobre a perturbação do sossego público nas vidas, em casos específicos, de acordo com a lei municipal nº 8061/2008. O telefone para denúncia é o 98175-0785 ou 153.

Vale lembrar que somente nos últimos cinco meses, a GCM já atendeu a 14 solicitações feitas diretamente ao órgão e enquadradas como “alteração de características do veículo”.

Motoqueiro x Motociclista

Você sabe qual a diferença entre “motoqueiro” e “motociclista”? Os dicionários de língua portuguesa não distinguem os dois vocábulos, no entanto, na década de 1980 essa distinção passou a ganhar popularidade devido aos frequentes casos de infrações cometidas por condutores de motocicletas.

Segundo o Portal do Trânsito, nessa época, uma revista especializada iniciou uma campanha para separar aqueles condutores que tinham mau comportamento dos outros, que respeitavam as leis. Os primeiros eram chamados de “motoqueiros”, e os segundos, “motociclistas”.

Há também a distinção por ocupação: aqueles que utilizam motocicletas para passeios, são “motociclistas”; os profissionais, que trabalham utilizando esse veículo e que, na ânsia de chegar mais rápido ao destino, comumente infringem as leis do trânsito, seriam “motoqueiros”.

Contudo, essa nomenclatura é informal e não constitui regra. Há motoqueiros, integrantes de clubes de motocicletas e que exercem essa função também como forma de trabalho que respeitam o CTB.