×
Copyright 2024 - Desenvolvido por Hesea Tecnologia e Sistemas

No Centro de Campos, o triste vazio nas primeiras horas da noite

.

Guilherme Belido Escreve
Por Guilherme Belido
31 de maio de 2020 - 0h01

E ainda: médico faz últimas considerações da longa entrevista que concedeu

Em resposta a uma última pergunta da longa entrevista dividida em duas partes, em que o médico Nélio Artiles discorreu desde medidas preventivas contra a Covid, passando pelo sistema hospitalar, projeções, frisando que pessoas do grupo de risco devem fazer o possível para ficar em casa; com alertas, ainda, de que governantes que não tratam o isolamento com rigor (desde a Idade Média, único procedimento eficaz de contenção de pandemias) correm o risco de levar para suas cidades o cenário da Lombardia  –  o infectologista tratou do papel do Estado, do flagelo alheio, dos maus tratos ao planeta e da transformação que espera fiquem como legado. Confira abaixo o que disse o infectologista:

 A pandemia vai passar e imagino que nós não sairemos dessa da mesma forma que entramos. Acredito que todo sofrimento traz um poder transformador muito grande. Trata-se de um desafio… de uma provação que estamos passando.

Penso que teremos mudanças de comportamento da sociedade como um todo. Poderes políticos, econômicos e sociais – principalmente aqueles que presunçosamente se colocam acima de outros – estão percebendo que todos somos frágeis… todos podemos adoecer e morrer ante um inimigo invisível – invencível até agora – que da noite para dia virou o mundo de ponta cabeça.

Além da tragédia representada pela perda de vidas, temos o dano econômico em proporção mais que recessiva, diria na faixa da depressão.

E, muito pior, o flagelo imposto aos carentes e vulneráveis, desassistidos pelo poder público os quais – desculpe a franqueza – entregues à própria sorte pelo Estado brasileiro que tem, sim, obrigação de cuidar dessas pessoas que, para vergonha de todos nós, estão abaixo da linha da pobreza. Uma gente de vida tão sofrida e penalizada antes da Covid-19, imagine em tempos de pandemia.

Os informais precisam decidir entre pegar Covid ou morrer de fome

A grosso modo, temos uma sociedade que não enxergava, ou não queria enxergar, ou não costumava enxergar, que a fragilidade estava tão próxima. Eu penso – e espero não estar sendo ingênuo – que essa doença vai deixar o legado da solidariedade.

Hoje, quando ouvimos o poder público dizer ‘fique em casa’, ‘não saia’, ‘fecha tudo’, temos que entender o outro lado da moeda, que são os informais, os trabalhadores que vão buscar o ganha-pão a cada dia e que neste momento de extrema dificuldade têm que decidir entre pegar Covid ou morrer de fome.

Salta aos olhos, portanto, cada um de nós – e não apenas o aparato público – deve assumir sua responsabilidade social e ajudar a quem precisa. Evidente que o auxílio emergencial não é suficiente… não tem como. Isso, se chegasse a todos que necessitam, o que não é o caso.

O Brasil tem uma minoria cada vez mais rica e uma imensa maioria cada vez mais pobre

A classe política e as autoridades precisam reconhecer que o Brasil carece de uma política social séria, desburocratizada, eficiente e muito mais abrangente do que é. Cabe ao Congresso promover as mudanças na legislação para interromper a curva ascendente da desigualdade no Brasil – diria mesmo infame –, que vem desde o Império, de ser um país formado por uma minoria cada vez mais rica, em detrimento de uma imensa maioria cada vez mais pobre.

Agora mesmo, neste período de pandemia, vemos categorias privilegiadas – nossas ‘velhas conhecidas’ – aquelas dos altos salários e dos ‘penduricalhos’, que ao menos durante essa doença poderiam ser limitados e dirigidos aos carentes.

Precisamos de uma visão solidária e altruísta, infelizmente tão mitigada entre nós. Precisamos dar atenção. Fazendo minhas as palavras sábias da Madre Tereza de Calcutá, falta mais atenção do que pão.

Do milho duro à pipoca macia (Rubem Alves) 

Lanço mão, ainda, do simbolismo do escritor e grande pedagogo brasileiro, Rubem Alves – falecido em 2014, aos 80 anos – que nos deixou como ensinamento do milho: é duro, sem graça, não tem aparência bonita nem gosto. Mas quando colocado na panela, e sofre o estresse, a pressão e o calor do fogo, ele se transforma numa linda, macia e saborosa pipoca.

É isso que nós somos. Somos milho e precisamos nos transformar em pipoca. Essa metanoia… essa grande transformação precisa acontecer com o ser humano. Não apenas de gente para gente, ajudando uns aos outros, mas visando também o planeta. Temos que parar de maltratar o planeta que estamos destruindo por dinheiro, principalmente. Tenho fé e acredito que a gente vá, sim, vencer essa situação e chegar lá na frente melhor do que entramos.