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Médico Nélio Artiles diz que hospital de campanha não deixa legado para a rede

Infectologista fala sobre lockdown, adverte que estimativa de mortes é especulativa e diz não saber o porquê de novos espaços quando existe estrutura

Guilherme Belido Escreve
Por Guilherme Belido
17 de maio de 2020 - 0h01

Médico infectologista Nélio Artiles durante entrevista (Foto: Divulgação)

Em janeiro de 2018, a febre amarela apresentou grande incidência nas regiões de matas e rios do Brasil. Contudo, quando a doença atingiu o estado de São Paulo, houve temor da população que se viu, então, ‘perdida’ ante os anúncios oficiais de que existia vacina de sobra, ao mesmo tempo que filas enormes se formavam defronte aos postos de saúde.

As autoridades repetiam que não havia surto em centros urbanos e que o alerta se restringia às áreas florestais. Diziam, ainda, que os casos relatados eram de pessoas que estiveram em áreas endêmicas e foram picadas por mosquitos.

Assim, a recomendação era para que moradores das áreas atingidas fossem vacinados, sem maior preocupação para com as populações urbanas.

Foi em meio a esse cenário, onde os noticiários se perdem num país continental e a febre amarela era observada pontualmente – e só agora chego ao alvo desta matéria – que entrevistei o médico Nélio Artiles o qual, não obstante reconhecesse que Campos não passava por nenhum surto de febre amarela, antecipou-se afirmando que todos deveriam, sim, “fazer a vacina contra a doença, porque havia risco de aparecimento na área urbana”.

Bem, o que o infectologista campista adiantou foi simplesmente o que o Brasil uniformizou como protocolo duas semanas depois, quando deixou de cuidar a questão de forma pontual, mas abrangente.

Agora, num cenário mais sombrio, a página ouve, em entrevista dividida em duas partes (a segunda irá sair no domingo, 24) o renomado médico, que faz um apanhado geral sobre as várias faces da pandemia, consequências imediatas e expectativas.

Avalanche de informações

Além das ‘fakes’, a enxurrada de notícias contraditórias, ditas na rapidez dos telejornais e de forma muito técnica, ajuda a confundir a população.

Quem não se lembra do vídeo do médico Dráuzio Varela, minimizando os efeitos da Covid-19, que ele mesmo precisou corrigir. Mas, até que o fizesse, muita gente seguiu sua orientação.

O próprio ex-ministro Mandetta repetiu diversas vezes que só os profissionais que estavam na linha de frente contra a doença deveriam usar máscara. Depois, realinhou, recomendando o uso de máscaras em aglomerações. Agora, todos estão obrigados a usá-las.

Também foi dito que o pico da pandemia seria abril. Depois maio. Agora ninguém sabe. Na Europa, já se fala em dois anos. E o lockdown, antes descartado, passou a ser considerado, com Campos adotando a medida a partir de segunda-feira, dia 18.

Assim, diante de tantas controvérsias e ajustes, vamos ao que é possível analisar, considerando que nada é seguro diante do desconhecido.

Hospital de Campanha X Leitos Existentes 

Antes de ingressar nos aspectos preventivos da doença, existe uma questão operacional aparentemente conflitante: aguardados com grande expectativa, os hospitais de campanha surgem como o melhor dos mundos para evitar o colapso no sistema hospitalar. Em Campos, o que está projetado para funcionar na área da antiga Vasa, deveria ter sido entregue no final de abril. Enquanto isso, a Santa Casa tem centenas de leitos desativados. Pergunta-se: não seria mais fácil, rápido e barato equipar esses leitos ao invés de se partir do zero num terreno baldio?

Vivemos uma pandemia de dimensão inimaginável e há que se avaliar a rede de saúde como um todo. Não podemos considerar que existam leitos de sobra visto que, paralelo à Covid, temos a demanda cotidiana. A escassez de leitos é uma realidade nacional e com a sobrecarga da pandemia, os hospitais de campanha precisam ser criados porque as outras doenças continuam existindo. Contudo, concordo que temos espaços ociosos, não só em Campos, mas em diversas cidades. Infelizmente, os hospitais passaram a viver com grandes dificuldades, e fecharam… fecharam alas, enfermarias e até mesmo CTIs. Penso que, a despeito dos problemas de adaptação, a rede poderia estar recebendo investimentos de estrutura, até para deixar um legado. Então, a gente não entende essas prioridades, até porque quando terminar a epidemia, vão desmontar ali e levar embora, quando poderia ser colocado nos hospitais e reestruturar a rede pública. Agora, eu não tenho como responder o porquê de não se dar aproveitamento à rede existente ao invés de construir novos espaços.

LOCKDOWN

Rio e São Paulo colocaram o lockdown em pauta. (É possível, até, que no momento em que esta matéria está sendo construída, a medida tenha entrado em vigor). A despeito da complexidade, no seu entender o lockdown seria prematuro, deve ser visto de forma pontual, ou cabe ser adotado com urgência?

É uma questão complexa que envolve diferentes ângulos, particularmente o que diz respeito à consequência danosa para a economia do lugar, associada à sobrecarga hospitalar. Então, se você tem 80% a 85% dos leitos ocupados e a situação econômico-político-social permite, deve-se fazer o lockdown, que tem como finalidade principal reduzir a propagação do vírus. São Paulo e Rio vivem situações caóticas. O Rio tem filas de mais de mil pessoas esperando leitos. A contenção precisa ser mais rígida. Não basta ter o CTI, tem que ser um CTI com boa qualidade, com equipes adequadas, que vão fazer os procedimentos no momento certo, iniciar o suporte de oxigênio na dose certa, iniciar o anticoagulante na hora certa, as medicações, etc. Isso é um diferencial no índice de mortalidade.

LOCKDOWN/CAMPOS

O espalhamento do vírus no interior fluminense cresceu sobremaneira nas duas últimas semanas. Em Campos, a taxa de isolamento caiu sobremodo e o número de óbitos aumentou bastante, fazendo com que o executivo adotasse o lockdown já para o dia 18. O governo justificou que 100% dos leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Centro de Controle e Combate ao Coronavírus estão ocupados. Qual o seu comentário?

Bem, estamos tendo a notícia no meio da entrevista. Na região, o crescimento é exponencial sim e aqui em Campos os números é que devem determinam as ações. É preciso lembrar que não é só a rede pública, mas a privada também. Enfim, o governo deve ter considerado a taxa de ocupação. Essa taxa de ocupação é mandatória. Eu penso que a Secretaria de Saúde estava atenta a isso e avaliou o lockdown como necessário.

Ao adotar o fechamento total – cujo preço é alto e aumenta o sacrifício econômico – como relacionar isso com cidades vizinhas que sequer cobram rigor ao isolamento? Não existe o risco do resultado ser comprometido face ao deslocamento frequente entre pessoas daqui e de municípios próximos?

Isso infelizmente acontece. O nosso município sempre abraçou as cidades de seu entorno. Os hospitais daqui passaram a ser referência e atendemos pacientes de toda região. Agora, quanto ao isolamento, se aqui a gente adota um tipo de procedimento e outros não fazem, isso traz repercussões negativas. O ideal é que fosse combinado com a região. O fechamento é uma questão difícil, tendo em vista os danos econômicos. Enfim, é uma atitude racional de cada qual, de bom senso e de observar a relação possibilidade x necessidade, porque as pessoas precisam trabalhar e a fome também mata.

UM MILHÃO DE MORTES?

Estimativas relacionadas à Covid-19 têm sido divulgadas com frequência. Recentemente, estudo levantado por um desses grupos especializados em cálculos admite que 1% da população brasileira venha a ser contaminada e, desse percentual, 50% iria a óbito. Estaríamos, então, a falar de algo nas fronteiras de 1 milhão de mortes no Brasil. O sr. avalia que possamos ter números tão drásticos? (No início de março, o The NY Times publicou matéria com a mesma projeção em relação aos EUA).

Essa matemática de estimativa é sempre muito especulativa. A realidade de países da Europa é bem diferente da nossa. Considerando, por exemplo, Itália, França, Espanha…, veremos que a pirâmide populacional é distinta da nossa. Lá vemos um predomínio de pessoas idosas, enquanto o Brasil é um país mais jovem. Aqui, a faixa etária mais acometida gira em torno de 30/60 anos –, que ainda não é a pessoa mais idosa, e justamente os idosos é que acabam morrendo mais, infelizmente. Em qualquer epidemia, para que a curva chegue ao ápice, precisa alcançar 40% a 60% da população, configurando-se, aí, o que se chama ‘imunidade de rebanho’. Então, se dessa fatia de 40% a 60%, você considerar que 80% não sente nada ou tem um quadro muito simples, que 15% vá precisar de cuidado hospitalar, e os restantes 5% evoluam para uma forma mais grave, precisando de CTI, – verifica-se que é muito difícil fazer uma projeção. Numa avaliação genérica, o que se pode estimar é uma mortalidade, no pior cenário, de 3% (não da população, mas de 40% da população – mas eu acredito que seja menos). Então, vamos lá: em cima de uma população comprometida (40%), poderíamos ter 3% de óbitos – uma projeção caótica, complicada e que remete a um quantitativo enorme que viria a óbito. Mas temos que levar em conta o tamanho do Brasil, que faz com que a realidade do momento de uma região possa ser bem diferente de outra. Enfim, tudo é muito novo… não dá para assegurar nada.

GRIPE ESPANHOLA

De acordo com especialistas, há cerca de 100 anos a Gripe Espanhola infectou 500 milhões de indivíduos em todos os continentes (27% da população mundial) podendo ter matado entre 1% e 6% de pessoas no planeta. No Brasil, cuja população era de 30 milhões, morreram 35 mil, o que corresponde a 0,1.1% da população da época: cerca de 10% de 1% –para explicar melhor. Só que o mesmo percentual, trazido para hoje, daria algo em torno de 220/230 mil óbitos. Sobre essa ótica, não estaríamos a constatar que a ciência involuiu? Ou, então, que as doenças estão cada vez mais difíceis de combater? Não soa como paradoxo para um século 21 altamente tecnológico?

Veja bem: enquanto a Gripe Espanhola (1918) perdurou por alguns anos, matando muita gente, agora, em relação à Covid – uma doença nova – de 4 a 5 meses de existência, já foi possível fazer pesquisa de diagnóstico, colocar em desenvolvimento estudos de medicamentos bastante promissores e, principalmente, a vacina, com perspectiva ainda para este ano – o que seria um recorde absurdo se isso realmente acontecer –, talvez dezembro. Isso faz um diferencial enorme. Vale lembrar que este vírus morre com sabão. Então ele é bem frágil fora do corpo, só que usa uma inteligência biológica impressionante. O vírus é um conjunto de proteínas que precisa de uma célula para viver. Ele depende de um ser humano para se multiplicar, passando para outro ser humano. Então, se você consegue uma dificuldade para essa transmissão, ele não vai adiante. Por outro lado, quando o indivíduo fala, espirra, tosse – principalmente a pessoa gripada – ele se aproveita disso para sobreviver, inclusive desafiando o aparato tecnológico que o homem usa para combatê-lo. Enfim, é um inimigo para se respeitar, que vem se beneficiando, ainda, de interferências políticas inapropriadas. Nossa parte é promover o isolamento de forma técnica, correta, e o setor público abrandar o prejuízo econômico. Temos que entender que a abertura, que o retorno das atividades, precisa de regras. O vírus se transmite por gotículas, ele não fica no ar muito tempo. Ele não se multiplica no ar. Inclusive a evidência mais concreta é que se transmite pela ponta do dedo e pela respiração muito próxima. No mais, usar máscara e lavar a mão a todo momento. A gente precisa parar de ouvir fake-news, parar de inventar medicamento ou tratamento e nos basear nas evidências.

(*A segunda parte da matéria com Nélio Artiles vai ser publicada no próximo domingo, focalizando, entre os assuntos, o SUS, as projeções da Fiocruz, a troca de ministros, os recordes de mortes, as políticas públicas desencontradas, as estimativas de pico, o medo e o futuro pós-pandemia).