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“Sala de estar” em praça pública

Moradores em situação de rua rejeitam abrigo municipal e causam transtornos em ambientes sociais

Campos
Por Redação
27 de abril de 2020 - 6h00

Praça da igreja São Benedito | Uma das áreas preferidas pelos moradores está no Centro da cidade, onde acumulam lixo e reúnem móveis de vários tipos para se abrigarem sob as árvores. (Foto: Carlos Grevi)

POR GIRLANE RODRIGUES E BERNARDO RUST

Morar na rua é um direito garantido pela Constituição Federal. Mas essa opção de aproximadamente 200 pessoas, em Campos, tem lotado ruas e praças. Esse público não tem teto ou paredes, mas tem objetos que fazem essa função e, mais do que a ocupação do espaço físico com esses apetrechos, um choque de direitos, deveres e preferências é travado com outros representantes da sociedade.

Aparentemente sem fim, essa problemática passa pela Justiça, Governos e assistencialismos sociais de instituições religiosas ou pessoais. Cada um acredita fazer a sua função. No entanto, o problema não está resolvido. Parte desses moradores ocupa o entorno da Igreja São Benedito, no Centro de Campos e fazem das paredes externas do templo, suas verdadeiras casas. A diferença é que eles criam regras próprias, mesmo utilizando as paredes privadas.

Rotina

O padre Walas Maciel – responsável pela igreja São Benedito – convive com problemas graves e já conversou com os moradores em situação de rua que se abrigam na praça, no entorno da paróquia.

“Eles criaram um espaço ali como se fosse um acampamento, onde armam tendas a noite, junto as paredes da igreja. Eles dormem ali e ficam durante o dia. E, nesses espaço, se alimentam e fazem suas necessidades. Eles costumam levar móveis velhos, acumulam lixos e a comunidade reclama muito pois a praça foi criada para ser um ambiente agradável e não é isso que encontramos”, afirma o padre.

Moradores de prédios residenciais no local já flagraram cenas de sexo entre essa população, prostituição e uso de drogas.

No mundo da rua | Onde cada um vive cada dia, um dia de cada vez. (Foto: Carlos Grevi)

O padre diz que já conversou com eles. “Quando eu converso, eles retiram os pertences e se afastam das paredes da igreja, mas depois retornam. Quero reforçar que não sou contra os moradores de rua, mas sou contra eles fazerem dali um espaço privado deles”, disse.

De acordo com o padre Walas, ano passado, um desses moradores entrou armado no templo ameaçando atirar em funcionários. Isso aconteceu porque mandei fechar uma área da igreja que dava acesso ao banheiro e bebedouro, que eles costumavam usar e manter sujo. “Tive que me impor com eles. Sou padre, mas também sou homem, não recuei meu posicionamento, não me rendi às ameaças e eles passaram a respeitar”, falou.

O medo existe, segundo o padre. “Temo pela minha vida sim, mas diante da realidade, recuar só ajudaria a aumentar a agressividade e o desrespeito deles em relação à igreja. Pregamos respeito ao próximo, mas também precisamos ser respeitados e fazer valer nossos direitos”, concluiu Padre Walas.

Praça pública?

A praça no entorno da igreja São Benedito pertence à paróquia. Porém, a igreja perdeu o documento de posse. “Estamos fazendo buscas em arquivos municipais e da câmara para achar esses documentos e, com eles, fazer valer o direito da propriedade. Daí, vamos cercar a praça. Hoje ela é aberta, mas não é pública”, finaliza.

Supostas irregularidades em abrigo criado pela Prefeitura.

A população em situação de rua ocupa também outras áreas da cidade. A principal delas é a praça São Salvador, mais precisamente o passeio público, em frente ao prédio dos Correios e edifícios Cidade de Campos e Ninho das Águias.
O espaço é visitado diariamente por representantes de instituições religiosas que fazem doações de comida para os moradores. Apesar disso, a Prefeitura de Campos, mobiliou e ofereceu o espaço do Hospital de Apoio Manoel Cartucho aos moradores de rua, no dia 28 de março de 2020.

Pryscila Marins | Secretária diz que muitos recusam os benefícios. (Foto: Divulgação/Prefeitura de Campos dos Goytacazes)

A equipe do Jornal Terceira Via foi até o local. Porém, não teve acesso ao interior do abrigo. Do lado de fora, foi possível constatar que moradores têm liberdade para entrar e sair, o que aumenta o risco de contágio pelo coronavírus.

Somente no período em que a equipe permaneceu no local (aproximadamente 15 minutos), dois moradores de rua saíram e um entrou com uma sacola de pão e uma garrafa d’água.

As supostas irregularidades foram identificadas no local por membros de um comitê popular que visitou o abrigo, elaborou um documento e encaminhou ao Ministério Público, a Defensoria Pública e a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social, com os problemas encontrados.

“Fizemos fotos da vistoria e identificamos pessoas dormindo próximas umas das outras, algumas com doenças. Se é para tirar da rua e aglutinar pessoas com problemas, a Prefeitura de Campos acaba expondo ainda mais as pessoas”, comentou Bruna Machel, que é presidente do Conselho Municipal de Assistência Social. Ela pretende voltar ao local esta semana e verificar se as mudanças foram implementadas pela Prefeitura.

Direitos e deveres

O vice-presidente do Conselho Intersetorial de Pessoas em Situação de Rua e psicólogo Ederton Quemel Rossini já esteve a frente de políticas públicas para essa população e, atualmente, trabalha como representante da sociedade civil.
Ele explica que quando o morador em situação de rua quer permanecer nas ruas, esse direito só pode ser violado – até mesmo pelo poder público – mediante decisão judicial e/ou médica.

No entanto, o Poder Público não pode virar as costas para essa população. Segundo Ederton, é papel do Poder Público executar políticas para garantir os direitos dessas pessoas com saúde, educação, trabalho e renda, assistência social, entre outros. Com isso, alimentação, higiene pessoal e até trabalho podem ser ofertados.

Além disso, segundo Ederton, é dever do poder público acompanhar a rotina deles e garantir medidas que mudem a trajetória de vida, caso os moradores queiram.

“Este é um problema social antigo e não é uma característica só de país subdesenvolvido. Nova York, por exemplo, tem mais de 60 mil moradores de rua. Em uma pesquisa feita em Campos, concluímos que os conflitos familiares, desemprego e dependência química são os três motivos que levam a situação de rua. Fazendo uma análise mais profunda, identificamos que esses três motivos estão intimamente ligados e em sintonia com o censo nacional e de outros municípios”, disse Ederton.
Ainda na pesquisa, Ederton identificou que em 2019, havia 192 pessoas em situação de rua. Ele acredita que, atualmente, esse número aumentou devido a situação socioeconômica do país.

Doações e esmolas

A população, de um modo geral, costuma dar esmolas e ajudar de alguma forma aos moradores em situação de rua. Segundo Ederton, essa postura deve ser analisada individualmente de pessoa por pessoa. ‘Mas entendo que é importante diferenciar o que é política pública e caridade. Uma não afasta a possibilidade da outra”, disse.

Sobre os deveres da população em situação de rua, Ederton afirma que não há diferença entre as pessoas. “Se alguém pratica crimes, está passível a punição, como qualquer cidadão. Mas, em um âmbito mais técnico, é importante analisar o contexto e a condição de vida da pessoa. Praticar furto é a forma que o morador de rua tem para sobreviver. A dependência química pode ser estratégia de sobrevivência dele diante da dor da existência. A prática de sexo em via pública, é a única forma de acontecer para essas pessoas. Todos estão passíveis de responsabilidades, mas diante do contexto de sobrevivência, cabe uma reflexão mais crítica”, finaliza.

Posição da Prefeitura

A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social oferta serviços socioassistenciais seguindo as orientações da Política Nacional de Assistência Social, que apresenta as diretrizes para efetivação desses serviços e norteia o trabalho do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Trata-se de uma política de oferta de serviços e não de imposição de serviços. Ou seja, nenhum cidadão pode ser obrigado a aceitar ajuda, acolhimento em abrigos ou encaminhamento para as unidades de referência. Além disso, a Constituição Federal declara que todo cidadão tem direito de ir e vir.
As abordagens sociais acontecem de forma ininterrupta, todos os dias, inclusive em finais de semana e feriados; e são registradas de forma documental e catalogadas no Centro de Referência Especializado para a População em Situação de Rua (Centro Pop). O serviço dispõe de rotas fixas, porém, também recebe informações pelo telefone (22) 981751427.

O município dispõe de 04 acolhimentos que ofertam 111 vagas para pessoas em situação de rua. Os acolhidos são livres para saírem se não desejarem permanecer nos abrigos, porém, a equipe de abordagem social continua, de forma constante, aconselhando a população em situação de rua e fazendo o trabalho diário de convencimento com apoio de psicólogos e assistentes sociais.