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Mulheres em Campos ainda à espera do CEAM

Apesar do trabalho realizado pela Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, vítimas carecem de apoio

Campos
Por Redação
8 de março de 2020 - 0h01

Patrícia Santana relata que em 2018, após um desentendimento, o ex-companheiro a agrediu cuspindo em seu rosto, e depois com tapas e empurrões (Fotos: Carlos Grevi)

Por CÍNTIA BARRETO e ULLI MARQUES

Sororidade. Por definição, trata-se do afeto, companheirismo entre mulheres. Um vocábulo originado do latim “sóror” que significa “irmãs” e expressa a prática do apoio mútuo entre aquelas que partilham a mesma posição social. Juntas, tornamo-nos mais fortes: o conceito pressupõe que uma rede formada por iguais tem mais resistência perante os golpes da vida, sobretudo quando esse golpe é literal. Dizer que mulheres vítimas de violência precisam de acolhimento e suporte parece óbvio, mas, neste domingo (8 de março), Dia Internacional da Mulher, faz-se necessário reiterar, uma vez que o município de Campos, apesar dos diversos casos de ameaça, agressão e feminicídio que aqui ocorrem, ainda não possui um Centro Especializado em Atendimento à Mulher (CEAM) — órgão público pressuposto na Lei 11.340 de 07/08/2006 (Lei Maria da Penha) que deveria cumprir o papel de amparar e confortar aquelas que precisam desse abraço.

O CEAM é de extrema importância para a região — principalmente para um município que possui mais de 500 mil habitantes como Campos — pois é uma instituição que garante não só um atendimento humanizado, mas também faz o acompanhamento completo para as mulheres que foram vítimas de violência ao disponibilizar um suporte social, psicológico e jurídico em um momento tão difícil como este em que a mulher sente-se fragilizada, sozinha e perdida.

Na falta desse Centro e a necessidade de haver um grupo de apoio e luta em prol dos direitos das mulheres, foi criado pela formanda em Direito, Rafaelly Galossi, em 2018, o Coletivo Nós por Nós, uma organização não governamental que começou com apenas cinco mulheres voluntárias no WhastApp. “Eu ouvia diversos relatos de diferentes mulheres com quase sempre as mesmas demandas e angústias, como medo de sofrerem algum tipo de violência, relacionamentos abusivos, entre outros. Com isso, percebi que poderíamos unir nossas demandas e lutar por nossos direitos, além de compartilharmos experiências e sermos um grupo de apoio umas às outras. Assim nasceu o Coletivo, e o nome não poderia ser mais representativo que este: somos Nós Por Nós, em uma sociedade e com um governo que insistem em nos silenciar e marginalizar”, contou Rafaelly.

O Coletivo ganhou força e hoje conta com 135 integrantes, sendo que 35 são advogadas, psicólogas e assistentes sociais voluntárias. O grupo faz o trabalho de um CEAM: acompanha as vítimas desde o registro de ocorrência até às ações judiciais posteriores, também oferecem o apoio que essas mulheres e seus filhos precisam. Além disso, o Coletivo Nós por Nós também realiza com frequência rodas de conversa e palestras em instituições públicas e privadas, com o intuito de informar e conscientizar a população.

Patrícia Cardoso, 26 anos, é uma das mulheres atendidas pelo Coletivo. Ela foi agredida no final de 2018 pelo companheiro na época. Segundo Patrícia, as primeiras agressões foram as verbais aliadas à pressão psicológica. “Eu estava errada em todas as brigas. Ele me humilhava e fazia com que eu me sentisse culpada, mexia muito com o meu psicológico. Até que um dia, depois de uma discussão, ele deu um tapa no meu rosto. Eu fiquei indignada com a situação e fui atrás dele. Ele me empurrou e eu bati com a cabeça na parede, fiquei desacordada. Depois, só sabia chorar e ele, ainda com muita raiva, deu um soco na minha direção, mas atingiu a parede e quebrou o dedo.”

Em outra briga, Patrícia relatou que o ex-companheiro cuspiu nela. “As nossas discussões sempre acabavam com ele me humilhando. Certo dia, após um desentendimento, ele começou a cuspir no meu rosto, depois no cabelo, no corpo todo. Eu não sei de onde saia tanta saliva para me cuspir tanto. Eu nunca fui tão humilhada na vida, perdi toda minha dignidade naquele dia. Tenho marcas profundas disso em mim, o que me segurou foi o apoio do coletivo”, confessou Patrícia, abalada.

A necessidade da criação de um Centro Especializado de Atendimento à Mulher em Campos vem sendo discutida há anos e, até hoje, parece ficar apenas no papel. A Prefeitura de Campos informou, em nota, que “não existe recusa ou negativa por parte do município para a implantação do CEAM”. O poder público municipal acrescentou que “está em diálogo com o Estado, buscando caminhos para a efetiva implementação do Centro Especializado, o que deve acontecer assim que todos os trâmites burocráticos forem cumpridos”.

Embora não haja um CEAM na cidade, a prefeitura diz que oferece todos os serviços que competem a esse órgão, entre eles o atendimento jurídico, que é prestado por meio da Superintendência de Justiça e Assistência Judiciária. Além disso, ainda de acordo com a nota, também é garantido atendimento especializado nos Centros de Referência Especializado de Assistência Social, os CREAS. A prefeitura complementa que o município dispõe, ainda, da Casa Benta Pereira, que oferece serviço de acolhimento às mulheres vítimas de violência e com medida protetiva, “resguardando sua integridade física e prestando apoio psicológico e social à vítima”. A unidade possui, entre outros serviços, parcerias para reinserção dessas mulheres no mercado de trabalho.

Entretanto, segundo o Coletivo Nós por Nós, os tipos de serviços disponibilizados pela prefeitura estão longe de ser suficientes para atender às mulheres vítimas de violência de forma adequada. “Além de não ofertar um atendimento específico para elas, não há um acompanhamento contínuo como prevê a Lei Maria da Penha. Além disso, ainda causa uma sobrecarga nos CREAS, pois são centros que atendem toda a população com diversas necessidades”, frisou Rafaelly. Ela salienta que há uma sentença expedida em 10 de dezembro de 2018, pela 1ª Vara Cível de Campos, exigindo que Município e Estado, em conjunto, implementassem um CEAM até dezembro de 2019, mas ambas as partes ainda não cumpriram a determinação.

Críticas ao atendimento policial

Sabe-se que o primeiro passo a ser dado em casos de violência é a denúncia. É imprescindível que seja feito um registro de ocorrência em uma delegacia para que o processo judicial seja iniciado e o autor da agressão seja autuado e, posteriormente, preso. Em relação à violência contra a mulher, essa denúncia deve ser feita, preferencialmente, em uma delegacia especializada, a DEAM. Em Campos, esse órgão da Polícia Civil existe desde 2014 e, após prestar atendimento a milhares de vítimas na cidade, em 2019, a qualidade desse serviço público foi o tema da pesquisa acadêmica desenvolvida pela coordenadora do Coletivo Nós por Nós, Rafaelly Galossi.

Um ano após o Coletivo ser instituído na cidade, Rafaelly, decidiu servir-se dos depoimentos de vítimas de violência de gênero para construir sua pesquisa final do curso superior em Direito. Com o título “Violência contra a mulher e a co-culpabilidade do Estado: a percepção das vítimas acerca do atendimento realizado na DEAM de Campos”, tal pesquisa se baseia nas histórias contadas por 80 mulheres agredidas que procuraram ou não o serviço policial.

Dentre as entrevistadas no trabalho acadêmico que buscaram o atendimento, 84,7% afirmaram não se sentirem seguras para denunciar a violência que sofreram na DEAM-Campos; 80,6% disseram que não receberam informações claras e satisfatórias na delegacia sobre o que fazer e como agir em casos de agressão; e 38,8% declararam que não conseguiram registrar suas ocorrências por recusa dos inspetores sob a alegação de falta de provas.

Segundo Rafaelly, esses números explicam o alto índice de mulheres que não registram a ocorrência. “Diversas mulheres relataram assédio, coação, humilhação e até mesmo questionamento de suas vestimentas e comportamentos pelos inspetores dentro da delegacia e muitas ainda tiveram seus relatos questionados e relativizados. Segundo o estudo, essas denúncias demonstrariam negligência estatal frente à realidade vivida pelas mulheres de Campos. Meu objetivo com a pesquisa não foi criticar por criticar e o Coletivo, ao buscar respostas, não quer desmotivar as mulheres a procurarem a delegacia, mas pressionar o poder público porque entendemos que somente assim melhorias acontecem”, pontuou a pesquisadora e coordenadora do Coletivo.

Delegada Ana Paula Carvalho, responsável pelo DEAM-Campos

Resposta da Delegada — A fim de buscar um posicionamento a respeito desses números e dos depoimentos apresentados na referida pesquisa, a equipe de reportagem do Jornal Terceira Via conversou com a delegada titular da DEAM-Campos, Ana Paula Carvalho, que garantiu que medidas já foram implementadas para mudar esse cenário. Desde o ano passado, após a visita da diretora da coordenadoria geral das DEAMs, Juliana Emerick, que veio ao município após pressão do próprio Coletivo Nós por Nós, treinamentos e reuniões bimestrais vêm sendo realizadas junto aos inspetores para uniformizar a abordagem às vítimas, mas, ainda de acordo com a delegada de Campos, “não há serviço público que funcione com 100% de excelência”.

Ana Paula afirmou que casos específicos já estão sendo investigados pelo Ministério Público, mas também esclareceu que a DEAM é um órgão policial que objetiva ouvir a vítima, registrar a ocorrência, buscar provas e encaminhar os autos para o sistema judiciário. “Temos plena consciência da responsabilidade do nosso trabalho, sabemos a dificuldade que essas mulheres enfrentam para subir essa escada, mas é importante lembrar que nós não somos um órgão de assistência. E, muitas vezes, precisamos explicar minuciosamente como o processo ocorre porque as mulheres chegam aqui sem saber o que vieram fazer e algumas perguntas feitas pelos inspetores têm o objetivo de compreender os pormenores e obter as provas necessárias para validar o processo. Muitas vezes elas acreditam que sairão da delegacia com uma medida protetiva, outras vezes querem registrar uma agressão física, mas não querem que os seus parceiros sejam presos. Todos os detalhes precisam ser elucidados, esse é o nosso papel no momento do registro da ocorrência”, declarou.

A delegada ainda pontuou o risco acerca dessa postura que ela chamou de “contrária à DEAM”: “Sei que temos nossas limitações, mas tenho certeza que não somos a pior delegacia do mundo. Eu, que estou aqui todos os dias, sei o quanto nos esforçamos para dar conta de todos os casos que acontecem na cidade de Campos e cumprirmos o nosso papel da maneira mais eficaz e eficiente possível. Mas quando o Coletivo divulga na imprensa que o atendimento não funciona, as mulheres se perguntam: ‘Vou na delegacia para quê? Para ser maltratada?’, e essa postura é extremamente danosa porque, sem o registro da ocorrência, o agressor permanecerá impune”.

E acrescenta: “Muitos casos, quando vão para o Judiciário, acabam sendo relativizados e até mesmo esquecidos, porque as pessoas só lembram da ação policial. No entanto, as decisões judiciais são o cerne de uma condenação. Alguns criminosos permanecem soltos, não por descaso dos inspetores e da delegada, mas porque o juiz não leu o processo, porque a audiência não foi marcada. Antes de criticar o trabalho policial, é preciso compreender que somos apenas uma peça de um grande e complexo processo”, explicou.

A delegada disse ainda que, até o final de 2019, as mulheres vítimas de violência em Campos sequer eram acompanhadas por um defensor público nas audiências com os autores do crime. Somente o agressor tinha esse direito garantido. “Sobre isso, ninguém comenta”. Ana Paula também elucidou que, ao contrário do que muitos pensam, autores de crimes de violência de gênero têm, sim, direito à fiança. “Somente em caso de violação da medida protetiva, ele não pode ser liberado da sede policial. No entanto, quando o acusado vai para a audiência de instrução, ele sai de lá sem, sequer, pagar por isso. Essa é uma das inúmeras brechas da lei que dificultam o trabalho policial”.

Números — Em todo o ano de 2019, a DEAM-Campos efetuou 1.612 registros de ocorrência, sendo cumpridos 150 autos de prisão e 48 mandados. Já em 2020, somente até o dia 5 de março foram realizados 250 registros policiais, uma média de 3,8 por dia no município.

De acordo com dados mais recentes do Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro, mais de 21 mil mulheres foram vítimas de agressões físicas no primeiro semestre de 2019, aproximadamente 4 mulheres por dia.

Patrulha Maria da Penha – Guardiões da Vida (Foto: Divulgação)

Patrulha Maria da Penha – Guardiões da Vida

A Polícia Militar possui desde agosto de 2019 uma viatura exclusiva para acompanhar e monitorar mulheres que possuem medidas protetivas de urgência deferidas pelo judiciário. É composta por quatro policiais, sendo dois homens e duas mulheres, que se revezam na escala. Todos esses profissionais fizeram um treinamento específico para atuarem nessa função.

Desde quando foi criada, a Patrulha Maria da Penha já realizou 212 atendimentos no total em Campos e região e atualmente assiste 147 mulheres. Além desse trabalho, a equipe também desenvolve atividades de prevenção em parceria com outros órgãos públicos e entidades privadas.

Vale ressaltar que esse trabalho não substitui a atuação emergencial dos Setores de Radiopatrulha através do serviço 190, mas poderá atuar em apoio a estes. A Patrulha Maria da Penha – Guardiões da Vida funciona de 08 às 18h, de segunda a sábado.

Medidas Protetivas e Botão do Pânico

Dados divulgados pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) em fevereiro de 2020 mostram que, nos últimos dois anos, o número de mulheres que buscam na Justiça uma proteção contra um agressor aumentou 42%. Em 2018, foram 26.767 medidas expedidas; em 2017, 22.034. Em 2019, foram proferidas 31.341 medidas protetivas de urgência, o que representa uma média de 85 ordens por dia.

Nove dessas mulheres vítimas de violência no Estado do Rio de Janeiro que buscaram uma medida protetiva na Justiça receberam, no segundo semestre de 2019, um dispositivo chamado “botão do pânico” que alerta caso os agressores se aproximem além do permitido pelas medidas e aciona a central de monitoramento. A ferramenta é conectada a uma tornozeleira eletrônica que é usada pelo agressor. De acordo com o Tribunal de Justiça, qualquer vítima de violência doméstica com processo aberto pode entrar com um pedido, que é analisado segundo critérios não divulgados.