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Entrevista: o menino de rua que virou PM

A incrível história daquele que tinha tudo para dar errado e acabou sendo um exemplo

Entrevista
Por Aloysio Balbi
2 de março de 2020 - 0h14

Essa é a história de vida e de sobrevivência de João Alfredo Louzada Rocha, nascido em Duque de Caxias e que o destino, ou a falta dele, o trouxe para Campos onde passou parte da infância e da juventude como morador de rua, tendo como teto a marquise da agência do Banco do Brasil, na Praça Quatro Jornadas. Ele nasceu prematuro e o avô disse para o seu pai que este não sabia fazer filhos. “Nasci assim e meu avô disse que eu não vingaria. É duro nascer sob uma palavra desta”. Os pais se traindo mutuamente, João acabou abandonado assim como o irmão.

Nunca cometeu um delito, pois seu sonho era um dia ser Policial Militar. João se matriculou em duas escolas em Campos, confessa ele, não para estudar, mas para comer a merenda. Depois, seu pai, já casado com outra mulher, o resgatou. Ele fez os supletivos de primeiro e segundo graus. E a partir daí fez cinco concursos para a PM do Rio. Passou no quinto e hoje é Cabo da PM, pai da Mariana e marido da Tereza Cristina, que luta contra um câncer de mama. Nosso PM é evangélico e sua entrevista tem um tom de testemunho. Fala da capoeira que o ajudou dar a volta por cima e neste momento se prepara para entrar, aos 39 anos, no curso de Direito. Quer ser oficial da PM e realizar seu sonho de uma polícia de alto nível.

 

Sua história começou na Baixada Fluminense e nestas quatro décadas de vida, a pior parte dela você passou em Campos. Como foi?

Quando eu nasci, meu avô me pegou na palma da mão, porque eu era prematuro. E disse para meu pai que ele não sabia fazer filho e que eu não vingaria. Nasci sob uma palavra dessa. Eu, na verdade, era filho de boêmios, quase que ciganos, pulando de cidade em cidade. Viemos parar em Campos. Meus pais se traíam mutuamente e depois se separaram. Na separação, eu e meus irmãos fomos os mais prejudicados. Ficamos abandonados.

Sua única opção era morar na rua?

A história é a seguinte: eu fiquei um tempo ainda com minha mãe, mesmo com ela estando sempre viajando, fazendo a vida e vivendo para ela. Minha mãe tinha o costume de alugar imóvel para morar e não pagar. E assim íamos pulando de casa em casa e muitas noites eu decidia dormir na rua e achava, no começo, até divertido porque era criança ainda. Dormia sob a marquise da agência do Banco do Brasil na Praça das Quatro Jornadas, no Centro.

Mas quando você foi morador de rua em tempo integral?

De 16 a 17 anos eu passei morando na rua porque não tinha mais onde ir mesmo. Sempre sob a marquise do Banco do Brasil. Não passava pela minha mente fazer nada de errado. Então as mazelas das ruas não me seduziam, porque tinha convicção de que seria Policial Militar como o meu pai, e para isso tinha que manter minha ficha limpa, senão transformaria meu sonho em um outro pesadelo.

Porém para entrar para a PM você precisava estudar. Como foi isso?

Consegui ser matriculado na Escola Estadual General Dutra e na escola CSU de Guarus. O intuito, na verdade, era instinto. Era mais para poder comer, me alimentar, do que propriamente estudar. Fato era que eu precisava comer. Por isso, duas escolas, que me garantiam duas refeições diárias. Dona Magana, que Deus a tenha, diretora do General Dutra na época, percebeu minha situação e me deu um passe livre para frequentar a escola em dois turnos . Ela também me incentivou a estudar. E foi frequentando aulas aleatoriamente que fui aprendendo um pouco de cada coisa, até que fiz os exames supletivos de primeiro e segundo graus. Fiz os exames em Angra dos Reis e passei.

Mas tinha uma matéria que não está na grade escolar da maioria das escolas, que teve uma grande influência na sua vida, e as pernadas parece que você conseguiu dar uma meia lua no seu destino. A capoeira foi sua grande escola?

Sem dúvida. No CSU de Guarus tinha o projeto Mayomb- Resgate a Liberdade- que depois virou “Meninos do Amanhã”. Foi um momento importante da minha vida. Nosso mestre era o guarda municipal Cleber Nagô. Ele identificou algum potencial em mim, e também percebeu os meus problemas. Cleber passou a ser meu pai. Devo muito a ele: dinheiro, saúde e obrigação. Você dançou capoeira no gabinete do então prefeito Garotinho no lançamento da campanha dele a governador do Estado. Como foi isso? Foi verdade. Eu tocava birimbau. O futuro governador Garotinho também viu alguma coisa em mim e eu agradeci pelo projeto que ele apoiava. Depois, já fardado como PM, fui agradecer pelo projeto social que ele apoiou e que deu frutos e eu sou deles. Ele me abraçou.

A capoeira continua fazendo parte da sua vida?

Sim. Eu sou um corda roxa do Centro Cultura Senzala de Capoeira. É um grupo que existe em muitas cidades do Brasil e do mundo. Chegar a ser professor em uma instituição deste porte é uma honra para quem um dia morou na rua. E acho que eu tenho por obrigação de devolver tudo aquilo que recebi. E faço isso principalmente ensinando capoeira nas comunidades carentes de Campos.

E o exame para entrar na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro?

Quando eu tinha 18 anos, meu pai era casado com uma mulher que não nos aceitava. Ele casou com outra mulher, dona Eliacir. Ela obrigou ele vir me buscar para morar com ele. Foi quando fiz o supletivo. Marava com meu pai e tentei a prova da PM por cinco vezes. Passei na quinta. Tive uma boa colocação na prova, com mais de 60 mil participantes e 20 mil passaram. Aí fui convocado, e tive uma surpresa no ato da matrícula.

Que surpresa foi essa?

Meu nome simplesmente não estava na lista dos aprovados. Fui até o centro de formação CFRP, e consegui reparar o erro e foi quando entrei para a corporação no dia 13 de outubro de 2011.

Qual é sua patente hoje?

Sou cabo lotado atualmente na Policlínica da PM em Campos. Antes em prestei serviços das UPPs do Rio – Cidade de Deus, Mangueira e Vila Cruzeiro – e no 33ª Batalhão, Angra dos Reis, no Sul do Estado.

Você já recebeu alguma missão que te feria de forma direta ou indireta na repressão a moradores rua?

Felizmente não. Confesso que não saberia lidar com isso. Senão for para estender a mão para dar água e pão, não saberia fazer. Até porque minha primeira bicicleta foi dada por um morador de rua. Repito que não saberia lidar com isso.

Você é evangélico. Cresce o número de evangélicos na PM, pelas provações que muitos enfrentam?

Significativamente, até por verem os milagres que acontecem em nossa rotina. Eu já vi muitos milagres e além de ver tenho a humildade de dizer que sou fruto de muitos outros milagres nesta minha vida.

Você agora é o pai da Mariana e marido da Tereza Cristina. Sua mulher tem câncer e você passa as horas de folga cuidando dela. É mais uma provação e um desafio na sua vida?

Com toda certeza e será vencida. O câncer dela apareceu em 2017 e depois voltou em 2019 devido ao estado emocional que ela se encontrava, por conta da minha atividade de policial. Ela tinha medo de eu morrer em um confronto. Mas ela foi tratada no Hospital HCPM no Rio. Deus é o grande operador de uma cura que vai se confirmar.

Você agora quer ser advogado e acaba de fazer vestibular. Teremos um advogado dos bons?

Na verdade a sociedade terá um oficial da PM dos bons, pelo menos vou tentar. O objetivo de cursar direito é me tornar oficial da PM, que é de tenente para cima. Vou me esforçar para chegar o mais longe possível nesta carreira.

Você já esteve no fundo do poço e ainda bem criança. Que conselho você dá as pessoas que estão onde você já esteve?

Você me quebrou agora com essa pergunta. Lembrei de um louvor que define tudo. Difícil responder porque você só escuta quando mora na rua que não vai dar certo, que você não vai chegar a lugar nenhum. A gente se pega falando para si mesmo que a gente não vai conseguir. No meu caso, eu vejo que o Deus criador do céu e da terra, disse sim para mim. A rua é um lugar onde seus moradores só ouvem a palavra não. O abandono é algo terrível e o sim de Deus, algo maravilhoso. Fechem o ouvido para o “não” das ruas e os abra para o “sim de Deus”.