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Os campos de uma mulher que escreve

Premiada nacionalmente, autora campista reflete o Brasil, a literatura, os afetos

Entrevista
Por Ocinei Trindade
10 de fevereiro de 2020 - 0h01

Vilma Arêas nasceu em Campos em 1936 (Foto: Folhapress/Reprodução)

Vilma Arêas é precisa nas palavras que registra e pronuncia. A escritora e ensaísta nasceu em Campos, em 1936. Partiu para cursar a universidade de Letras, e, raramente volta à terra natal. O destino e o trabalho a levaram para São Paulo e Campinas. Por décadas, ela atua na Unicamp. Vilma recebeu vários prêmios importantes como escritora. Na estante, guarda três troféus Jabuti, o mais relevante da indústria literária brasileira atual.

A escritora Vilma Arêas é autora de Canção dos neurônios (1972); Partidas (1976); Na tapera de Santa Cruz: uma leitura de Martins Pena (1987); A terceira perna (1992); Aos trancos e relâmpagos (1998); Iniciação à comédia (1990); Clarice Lispector: com a ponta dos dedos (2005); Vento sul: ficções (2011). Com o mais recente, Um beijo por mês (2018), levou o Prêmio Jabuti em 2019 na categoria “contos”.

A senhora ganhou o terceiro Prêmio Jabuti recentemente com seu livro de contos “Um beijo por mês” (Luna Parque, 2018). Como sente com esse reconhecimento?

Na verdade eu não esperava ganhar, mas minha editora da Luna Parque, Marília Garcia, uma  poeta inspirada, estava confiante. Ganhar é sempre ótimo.

O que significam prêmios e os leitores para o escritor?

São uma espécie de combustível e é muito estimulante encontrar novos leitores.

Em sua participação em evento na Academia Campista de Letras, a senhora mencionou sobre não se preocupar com tempo e pressões para escrever livros. Qual o significado do tempo e como é seu processo de escrita?

Escrevo todos os dias, mas publico pouco. Escrever é reescrever, assim como ler é reler. João Cabral ensinava que devíamos escrever como as lavadeiras lavam roupas à beira do rio: ensaboar várias vezes com intervalos; enxaguar com muita água e deixar as roupas secando ao sol. Literatura não é comunicação pura e simples. Posso dizer: estou com frio. Mas o poeta cria uma estrutura (abstrata como a própria língua) para nos passar a sensação de frio. Não é simples. Claro, me refiro aos textos curtos e poemas, que são a minha preferência pela concisão. Romances e novelas exigem outra estrutura.

Em tempos digitais, a leitura ganhou dinamismo na Internet; as pessoas leem mais, segundo pesquisas. Mas, os livros ainda não figuram entre os hábitos mais frequentes. O que acha disto?

As máquinas são rápidas, mas a literatura é lenta, exige concentração. A máquina engana a dificuldade com a velocidade, o que é uma rima, mas não é uma solução. Acho que o livro nunca desaparecerá.

Seu livro mais recente venceu o Jabuti/2019 na categoria contos (Folhapress)

A senhora tem experiências com conto, literatura infantil e romance, além de ensaio. Tem preferência por estilos?

Não acredito em “literatura infantil” (leia  “Uma entrevista” em Um beijo por mês). Literatura ou é ou não é. Se um adulto não se interessar por um livro infantil, ele não é bom. “Alice no país das maravilhas” até hoje encanta crianças e adultos. Temos bons autores nesse gênero, mas não são muitos. Não escrevi Aos Trancos e Relâmpagos pensando o livro como sendo “juvenil”, batismo da editora. Aliás, sendo uma novela, ele é fragmentado como tudo o que escrevo. Os núcleos são: a descoberta da morte, do amor e da literatura. Uma garota entre 10 e 12 anos quebra a cabeça para entender esse triângulo.

A senhora escreveu um ensaio sobre Clarice Lispector. O que representa essa autora em sua vida e para a literatura brasileira?

Clarice Lispector virou santa e isso é um problema, porque só leem seus livros para adorar e isso não é leitura. Ela é uma escritora genial, mas irregular.  E só chegamos a seus acertos pelos seus fracassos, como ela mesmo dizia. Machado de Assis afirmou que, se queremos destruir um livro, basta o abandonarmos ao entusiasmo cego, que acabará por matá-lo.

Voltando ao seu recente livro de contos “Um beijo por mês”, o que inspirou essa obra?

Cada livro passa pelo corpo de quem o escreveu, orientados pela invenção do que vivemos.

A senhora nasceu em Campos dos Goytacazes, mas se mudou há anos para São Paulo, onde atua na Universidade Estadual de Campinas como professora na área de Letras. De Campos a Campinas, como é sua relação com a terra natal e a terra residente?

“Há sempre um copo de mar/ para um homem navegar’, disse Jorge de Lima. Aprendemos muito quando viajamos, mas a base está fincada em nosso torrão, não acha?

Aos 83 anos, sua jovialidade e lucidez, além do senso de humor, impressionam Se tivesse que dar uma receita para isto, o que sugeriria?

A receita é: sem receita. Mas acho que o interesse pelo mundo, pela sociedade e pelas pessoas é fundamental. Sem esquecer a leitura dos que vieram antes.

Se pudesse eleger apenas um livro que o brasileiro necessariamente devesse ler, qual obra apontaria e por quê?

É impossível responder à pergunta com objetividade, em tão pequeno espaço.

A senhora testemunhou vários períodos da História do Brasil, como as Eras Vargas e JK, além da Ditadura Militar e a redemocratização. Como encara o Brasil neste período atual tão polarizado?

Pode ser que esteja polarizado, mas a regressão do Brasil desde 2016 é vergonhosa. O nosso atraso brilha à tona, baseado principalmente na ausência de igualdade de nossa sociedade. A perseguição da cultura do país impede que haja uma boa escola para o povo. Ora, esta desigualdade, uma das maiores do mundo, não é um problema no Brasil, é um projeto. São palavras de Darcy Ribeiro, que fundou a UENF e foi expulso do país. Paulo Freire, respeitado e estudado nos USA e na Europa, como observei in loco, aqui foi preso.  Anísio Teixeira, fundador da Universidade do Distrito Federal (RJ), melhor que a USP, no dizer de Antonio Candido, aqui foi morto sob tortura, em 1971. Bastam esses três exemplos funestos para completar nossa vergonha. Vejam o documentário de nossa Petra Costa, candidato ao Oscar. Está na Netflix. Raras vezes fiquei tão deprimida.

Vilma Arêas venceu por três vezes o Prêmio Jabuti (Foto: Reprodução)

A senhora está escrevendo atualmente? Pretende publicar ou segue sem pressões editoriais?

Estou com dois livros engatilhados: Bar dois Irmãos, ensaios de literatura brasileira e portuguesa, e Una furtiva lacrima, que encantou Macabéa no último livro da Clarice. Talvez daqui a 2  ou 3 anos esses meus livros apareçam, já estão quase prontos.

Escreveria sua autobiografia?

Para que falar de mim? Sou igual a todo o mundo, com qualidades e defeitos misturados.

Para a senhora o que é mais importante na vida?

A própria vida.

Aos seus leitores de Campos dos Goytacazes deixaria uma mensagem?

Tenham coragem e lutem pela igualdade de formação e oportunidades a todos os brasileiros. Sem isso seremos para sempre um país de segunda categoria, vendido e governado pela chusma de ignorantes, como agora.