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Elis: a voz que era um “instrumento musical” calou-se em janeiro/82

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Guilherme Belido Escreve
Por Guilherme Belido
19 de janeiro de 2020 - 0h01

Elis: a voz que era um “instrumento musical” calou-se há 38 anos

Era 19 de janeiro de 1982. Ela estava sozinha no apartamento do Jardim Paulistano, em São Paulo. Fizera umas ligações estranhas, entre elas para o namorado Samuel MacDowell que, suspeitando que algo não estava bem, foi correndo para lá.
Ninguém atendeu a campainha. Precisou arrombar a porta. Depois, a do quarto, também trancada. Elis estava desacordada. Foi levada ao hospital às pressas, mas já chegou sem vida.
A mistura de álcool, remédios para dormir e alguma outra droga, resultou numa overdose acidental e pôs fim à vida e à carreira da maior intérprete brasileira, então com 36 anos.

Nas últimas três décadas, inúmeros documentários, Especiais, shows, livros, filme, musicais e até uma minissérie homenageiam e tentam contar a história de Elis Regina Carvalho Costa; ou Elis Regina; ou simplesmente Elis. Ela não precisava de sobrenome, nem do segundo nome para ser reconhecida: sendo única, bastava o ‘Elis’.
Todos sabiam tratar-se dela, “uma das melhores cantoras do mundo”, como disse Bob Dylan, nos anos 60, em seu prestigiado programa “Theme Time Rádio Hour”. Na mesma década, Elis chegaria à consagração precoce ao se tornar, até então, a única artista do mundo a se apresentar duas vezes num mesmo ano no Olympia de Paris, nada menos que o teatro musical mais antigo e famoso do planeta. Por lá passaram nomes como Edith Piaf, Louis Armstrong, Beatles, Pavarotti, Ray Charles, Rolling Stones, Tina Tuner, Madonna, a ‘nossa’ Maysa, Céline Dion e outros. Mas ninguém duas vezes na mesma temporada.
Nos anos 70, outra façanha: depois de se apresentar no Festival de Jazz de Montreux, na Suíça, foi considerada pela crítica e pelo público como “a nova Ella Fitzgerald”. Só isso!
Alguns críticos a consideram a melhor cantora brasileira a partir dos anos 60. Para outros, Elis é a melhor de todos os tempos. É complicado avaliar. Mas quer na comparação com as de sua geração, quer com as que a antecederam antes da Bossa Nova e da MPB, – como Ângela Maria, Maysa, Dolores Duran e Dalva de Oliveira (que quase ninguém sabe sequer que existiram, principalmente os fãs, com todo respeito, de Anita e Joelma – com ou sem Chimbinha –) ou, ainda, com as que surgiram nos últimos anos, há, invariavelmente, algo que a coloca em prateleira um pouco acima.
É por isso que no domingo (19), 38 anos depois de sua morte, no Brasil e no exterior diferentes eventos registram a data. Alguns começaram antes, como o lançamento do livro ‘Elis e Eu’, em novembro de 2019, de autoria de seu filho, João Marcello Bôscoli, que revive o período em que conviveu com a mãe até o dia de sua morte, quando com 11 anos presenciou a tragédia que abalou o Brasil.
Festivais, Bossa Nova, engajamento político e vida pessoal
Gaúcha de Porto Alegre, miúda (1,53 m), era um furacão quando se tratava de defender o que acreditava ou quando lhe pisavam os calos. Agitada – por vezes contraditória – não por acaso ganhou o apelido de “Pimentinha”. Parecia sempre faltar algo; uma busca incessante pelo diferente.
Começou a cantar em sua terra natal, ainda criança, mas foi nos anos 1960 que encontrou a Bossa Nova e decolou. Curioso, pouco se identificava com o gênero criado por João Gilberto. Achava – e com razão – que a música ‘parava’ bem antes de onde sua voz chegava.
Então, é simples: Elis conseguiu juntar a afinação da Bossa Nova com seu ‘vozerão’ a perder ‘de ouvidos’.
Festivais – Com ‘Arrastão’, venceu o 1º Festival da MPB e aí não parou mais. O estrondoso sucesso internacional que viria a seguir – como já mencionado – facilmente teria viabilizado uma carreira internacional. Mas não quis. Desejava cantar o Brasil, viver no Brasil, lutar pelo Brasil e aqui criar seus filhos.
Política – Em 1968, após declarar em entrevista no exterior que o Brasil era governado “por gorilas”, ao retornar precisou ‘se explicar’, em interrogatório de 4 horas cercada por pessoas hostis, sem saber se voltaria para casa ou se seria jogada em algum porão. Intimidada, ficou “marcada” pelo regime dos generais e se comprometeu a cantar o Hino Nacional nas Olimpíadas do Exército.
Mas a esquerda (a mesma esquerda que tanto defendeu) e que, de acordo com as circunstâncias, pode ser tão cruel quanto os piores regimes de direita, passou a fazer um patrulhamento insano, só muitos anos depois reparado.
Hino da Anistia – Por ironia, bem como para desespero e arrependimento daqueles que a perseguiram, a música ‘O Bêbado e a Equilibrista’, de João Bosco e Aldir Blanc, magistralmente interpretada por Elis, virou o ‘Hino da Anistia’, em 1979. Curiosamente, um dos versos pedia “a volta do irmão do Henfil” – o mesmo Henfil que tanto a criticou por apenas ter cantado nas Olimpíadas.
Elis, como ela só – No palco, como na vida, irriquieta e serena – temperamental sempre. Sorriso e lágrimas na mesma interpretação; só que na vida pessoal conturbada, mais lágrimas. A voz Mezzo-Soprano, de registro vocal único e afinação que só alguns poucos, no mundo, podiam exibir, foi a primeira pessoa a inscrever a voz como se fosse um instrumento. E o fez oficialmente na Ordem dos Músicos do Brasil.
A música “Aos Nosso Filhos”, um grito contra a ditadura que Ivan Lins compôs e gravou, passou à memorável depois de interpretada por Elis. Aliás, alguns compositores ficavam receosos de gravar suas próprias canções após Elis Regina as ter interpretado. Durante um show, Gilberto Gil, após vê-la interpretar “Se eu quiser falar com Deus”, se perguntou: como é que eu vou cantar essa música agora?”.
Elis Regina elevou o padrão da Música Popular Brasileira. E no ar, sem resposta, permanece a pergunta: como foi possível deixar tamanho legado tendo morrido aos 36 anos?
Enfim, o furacão genioso se apagou naquela overdose de janeiro de 1982. Mas o brilho da estrela segue reluzente.