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Mudança da foz retrata problemas enfrentados pelo Paraíba há décadas

Encontro do rio com o mar deixou de ser em Atafona e desde outubro de 2019 acontece em Gargaú

Meio Ambiente
Por Thiago Gomes
12 de janeiro de 2020 - 0h01

(Foto: Paulo Sérgio Pinheiro)

O Rio Paraíba do Sul agoniza e não é de hoje. Mas, recentemente, uma alteração que reflete bem os problemas enfrentados pelo rio ao longo das últimas décadas chamou a atenção de quem acompanha de perto o correr das águas barrentas do principal manancial da região. Desde outubro de 2019, a foz da Paraíba não é mais em Atafona, no município de São João da Barra. Agora, o ponto de encontro entre o Paraíba e o Oceano Atlântico é a praia de Gargaú, na cidade de São Francisco de Itabapoana. A mudança também alterou a paisagem regional, já que a Ilha da Convivência, em Atafona, deixou de ser uma ilha. As causas apontadas pelos especialistas ouvidos pelo Jornal Terceira Via são várias, mas em um ponto eles concordam: tem a mão do homem nisso.

Trinta de outubro de 2019. Esta é a data da migração da foz apontada pelo Comitê de Bacia Hidrográfica do Baixo Paraíba do Sul e Itabapoana. O Comitê é um órgão colegiado responsável por promover a gestão descentralizada e participativa dos recursos hídricos na região e, por isso, monitora diariamente o trecho do Paraíba que vai da Barragem de Santa Cecília, em Barra do Piraí, até Atafona. Esse monitoramento também inclui os afluentes do rio.

Para o diretor-presidente do Comitê, João Siqueira, essa mudança é resultado da ação do homem, agravada pela maior crise hídrica enfrentada pela Bacia do Paraíba, que, segundo o órgão, aconteceu entre 2014 e 2019. Siqueira pontua que este foi o pior período de seca do rio, que teve seu ápice justamente em outubro do ano passado.

“Acredito que essa mudança na foz aconteceria um dia, mas as intervenções humanas sofridas pelo rio, como transposição e construção de barragens, sem dúvida acelerou o processo. Isso é um sinal claro de que o Paraíba está sofrendo. A retirada de água foi aumentando ao longo dos anos de tal modo que, atualmente, apenas um terço do rio chega à foz. Os outros dois terços ficaram pelo caminho”, analisou.

O ambientalista e historiador Aristides Soffiati lembra que há registros do século XVIII relatando dificuldade que embarcações da época tinham em sair do mar e entrar no Paraíba pela foz, e vice-versa, por conta da pouca profundidade no local. Ou seja, o problema sempre existiu e foi piorando gradativamente até o fechamento da foz. Além da retirada excessiva de água apontada por Siqueira, Soffiati elenca outras ações do homem que acabaram influenciando na mudança a foz: o desmatamento, que provocou o assoreamento do rio; e o aquecimento global, que tem causado mudanças climáticas.

Com a baixa vazão do rio e o avanço do mar, Paraíba se desloca para o município de SFI, e deságua em Gargaú. (Foto: Marco Antônio Ribeiro)

“É uma série de fatores que, juntos, causaram essa situação. Não temos mais florestas na região e esse desmatamento desenfreado impactou, por exemplo, na alteração do regime hídrico. Sem falar que o derretimento das geleiras tem elevado o nível dos oceanos. Então, temos um rio cada vez mais enfraquecido pela ação do homem e um oceano cada vez mais fortalecido também pela ação do homem”, esclareceu Soffiati.

Na avaliação de João Siqueira, um período prolongado de muita chuva pode reabrir a foz. Já para Aristides Soffiati, há uma tendência de piora na situação do Paraíba. Por isso, mesmo que a foz retorne para Atafona, possivelmente será fechada novamente em períodos de crise do rio.

Enfraquecido

Por conta da quantidade de barragens e por causa da transposição, a vazão do Rio Paraíba que chega à foz é a mínima, de 250m³ por segundo. Mas já chegou a níveis ainda mais baixos (180m³ em outubro do ano passado). De acordo com o Comitê, o ideal seria uma vazão de 500m³ a 800m³ por segundo. O presidente do Comitê lembra que essa baixa vazão já tem prejudicado a captação de água de São João da Barra e São Fidelis.

“Em São João da Barra a questão é mais grave, já que a captação de água precisa ser interrompida duas vezes por dia por causa da intrusão salina, que é a entrada da água do mar no rio. Ele chega com uma vazão muito baixa até a cidade e nos períodos de maré cheia a água fica muito salina”, informou João Siqueira.

Rio e mar que não estão para peixe

Segundo o presidente da Colônia de Pescadores Z-2 de Atafona, Elialdo Bastos Meireles, o fechamento da foz do Rio Paraíba deixou a categoria ainda mais dependente das marés cheias, já que este é o período em que os barcos conseguem sair para o alto mar. Atualmente, a colônia conta com 530 pescadores cadastrados.

“Os pescadores têm reclamado muito da nova situação, mas não tem nada que a gente possa fazer, pois não há como ir contra a vontade da natureza. Antes, os barcos conseguiam sair para o mar a qualquer hora. Agora isso mudou, é preciso esperar a maré cheia. O problema é ainda maior para os barcos de grande porte. Alguns têm atracado em outras cidades para descarregar, como Cabo Frio e Macaé, o que tem impactado a nossa economia de forma negativa”, explicou o presidente da Colônia Z-2.

João de Siqueira, presidente do Comitê do Baixo Paraíba. (Foto: Silvana Rust)

Consequências

O fechamento da barra principal do rio Paraíba do Sul tem consequências para a sua própria sobrevivência e das populações a que atende, na região do Baixo Paraíba do Sul.

Os efeitos levantados pelo Comitê de Bacia Hidrográfica do Baixo Paraíba do Sul e Itabapoana são muitos: o aumento de salinidade na Baixada Campista, que é alimentada pelo rio; a redução do lençol freático de toda ela; a redução do potencial agrícola de toda a região pela menor capacidade de produção de alimentos; prejuízos devido à redução da capacidade de garantir água para matar a sede de animais; a elevação da salinidade do lençol freático; aumento da concentração de diversos sais pela alta evaporação com a menor renovação das águas nos canais e lagoas; além da eutrofização acentuada de toda a rede de canais da baixada, que também é alimentada pelo Paraíba.

Eutrofização é o termo técnico que define o crescimento excessivo de plantas aquáticas, para níveis que afetem a utilização normal da água.

Rio que mata a sede de tanta gente

E tem sido grande o esforço do Paraíba para dar conta de matar a sede de tanta gente, conforme destaca o diretor-presidente do Comitê de Bacia Hidrográfica do Baixo Paraíba do Sul e Itabapoana. Segundo dados Comitê, são 184 municípios que utilizam a água do Paraíba, o que representa 14 milhões de pessoas em três estados (Rio, São Paulo e Minas), sendo 9 milhões apenas na Região Metropolitana do Rio. “Das bacias hidrográficas de nosso país, nenhuma sofre tanta pressão populacional quanto a do Paraíba do Sul”, pontuou João Siqueira.

O Paraíba do Sul resulta da confluência dos rios Paraibuna e Paraitinga, que nascem no estado de São Paulo. No leito do rio, que tem 1.137 km de extensão, estão localizados importantes reservatórios de usinas hidrelétricas, como Paraibuna, Santa Branca e Funil.

Testemunhas da agonia do Paraíba

Amilton Rosa e Cláudio Souza são amigos que costumam pescar nos fins de semana no Pontal de Atafona. Eles viram durante anos as alterações nas margens e no curso do Rio Paraíba do Sul, no local onde havia o encontro com o mar. Atualmente, o rio se transformou em filetes de água e em uma lagoa. A paisagem do delta histórico perdeu uma das saídas do Paraíba para o Atlântico. A Ilha da Convivência encolheu nas últimas décadas e agora não é mais ilha. É possível chegar a pé caminhando pela praia, já que parte da foz deixou de existir.

“Disseram que foi represamento da água do Paraíba lá em São Paulo que provocou esse desvio do Rio. Com o avanço do mar, ele perdeu muita força. A água do rio está salinizada lá pelos lados de Barcelos. É triste ver o Paraíba morrendo. A gente quase não encontra peixe. Sem falar na poluição. Muita gente se aventura a tomar banho aqui, mas não sei se deveria”, especula Amilton.

Apesar de não ter conhecimento técnico sobre o que está acontecendo no Rio Paraíba, Cláudio avalia a situação de seu ponto de vista. “Sobrou apenas a saída para barcos e para o Rio do lado de Gargaú. Mesmo assim, muito raso. Há perigo de barcos encalharem como estava acontecendo aqui no Pontal de Atafona, antes da foz secar”, comenta.

Histórias da Ilha da Convivência

A paisagem mudou. Com o fechamento da foz, a Ilha da Convivência deixou de existir, mas as histórias do local permanecem. Um dos relatos mais famosos diz respeito à maneira como os casamentos eram realizados na Ilha da Convivência. Como o lugar não possuía cartório ou igreja, diz-se por lá que os casamentos eram consumados com os noivos raptando as noivas.

O lugar também foi eternizado nas telas do cinema. Entre o Pontal e a Ilha da Convivência foi filmado em 1978 o longa-metragem “Na Boca do Mundo”, baseado no romance de mesmo nome escrito pelo cineasta Cacá Dieguez. A produção, dirigida e estrelada por Antônio Pitanga, teve ainda no elenco nomes de peso como Norma Bengell e Milton Gonçalves. A trilha sonora ficou por conta de Caetano Veloso e Jorge Ben Jor. O cartaz é obra do chargista Ziraldo.

O filme conta a história de uma rica socialite que rompe com o marido no Rio de Janeiro e decide voltar para a praia onde passou a infância, Atafona. A curiosidade está registrada no livro “São João da Barra – do Porto ao Pontal”, do jornalista Aloysio Balbi.

Resposta da ANA

Agência Nacional de Águas (ANA) é o órgão regulador criado em 2000 para fazer cumprir os objetivos e diretrizes da Lei das Águas do Brasil. Isso significa que grandes intervenções no Rio Paraíba, como instalação de barragens e transposição, são realizadas com autorização da ANA.

Em nota, o órgão informou que “de acordo com a Política Nacional de Recursos Hídricos, a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas, ser descentralizada, participativa e sempre contemplar a bacia hidrográfica de forma sistêmica. Nesse contexto, a definição de condições de operação de reservatórios realizada pela ANA tem a função precípua de garantir a continuidade no atendimento dos usos múltiplos dos recursos hídricos, com foco na segurança hídrica da bacia hidrográfica. Desde que justificadas, como, por exemplo, na ocorrência de eventos hidrológicos críticos, tais condições de operação podem ser modificadas para que não seja comprometido o atendimento aos usos múltiplos”.