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“Diadorim, o ser em labirinto” estreia no Teatro de Bolso, em Campos

Baseada na obra de Guimarães Rosa, peça escrita por Arlete Sendra traz a atriz Adriana Medeiros como protagonista

Cultura
Por Ocinei Trindade
17 de setembro de 2019 - 18h19

Adriana Medeiros vive “Diadorim, um ser em labirinto” (Fotos: Patricia Bueno)

No dia 20 de setembro, às 20h, quem for ao Teatro de Bolso Procópio Ferreira, em Campos, vai encontrar o universo de “Grande Sertão: veredas”, de Guimarães Rosa, reescrito pela dramaturga Arlete Sendra que criou “Diadorim, o ser em labirinto”. A peça é dirigida por Fernando Rossi e traz Adriana Medeiros no papel-título. O espetáculo encerra uma trilogia da autora chamada “O Avesso da Mulher” que recriou “Macabéa”, de Clarice Lispector, e “Capitu”, de Machado de Assis em duas montagens de sucesso no teatro campista.

O diretor Fernando Rossi diz que tem as melhores expectativas para repetir a qualidade das montagens “Eu fui Macabéa”, inspirada em “A hora da estrela”, de Lispector; e “Traídas e traidoras, somos todas Capitus”, inspirada em “Dom Casmurro”, de Machado.

“Fechamos a trilogia com a certeza de que estamos levando ao público o melhor da nossa arte. Nesta nova montagem inspirada em Guimarães Rosa, os personagens Riobaldo e Diadorim vivem um estranho jogo de amor, de mostrar e esconder sem que ousem transgredir os rígidos códigos dos jagunços. Diadorim é um ser andrógino que vive em redemoinhos a experiência do absurdo. Dentro desta estranha experiência, conhece a morte”, resume.

No ensaio fotográfico, a personagem terá projeções em tela no palco

A atriz Adriana Medeiros apresenta no palco Maria Deodorina, uma faceta de Diadorim jamais revelada. “São preenchimentos de lacunas que a Dona Arlete faz. O narrador do romance é Riobaldo que conta sua saga com diversas perguntas sobre a vida e a morte, Deus e o Demônio, o certo e o errado. Um dia, ele encontra um homem que pensa igual a ele, Reinaldo/Diadorim, se apaixona, e tem que esquecer. Por que ele se apaixona por Reinaldo que não sabe se tratar de uma mulher”, questiona.

A preparação da personagem, segundo Adriana, veio da observação de filmes antigos, de ver a minissérie na televisão, de ler o livro novamente e perceber as nuances do sertão, do regional, da vida de jagunço, da fala. Em 1965, o livro de Guimarães Rosa foi adaptado para o cinema pelas mãos do diretor Geraldo Santos Pereira que fez “Grande Sertão”. Coube a atriz Sonia Clara interpretar Diadorim na telona. “Trata-se de uma personagem atemporal”, diz a atriz. Já em 1985, “Grande Sertão: veredas” virou minissérie na TV Globo, dirigida por Walter Avancini, e trouxe Tony Ramos no papel de Riobaldo, e Bruna Lombardi como Reinaldo/Diadorim. Trata-se também de um marco da teledramaturgia brasileira com várias adaptações de romances consagrados da literatura nacional.

A personagem andrógina de Guimarães Rosa foi recriada por Arlete Sendra

“Fiz ioga para preparar o corpo. O sertanejo fica muito de cócoras. Aprendi a manusear armas. Preparei a voz, pois faço também o Riobaldo, o Hermógenes, o Joca Ramiro e outros personagens da saga. Procurei fazer o melhor para mim. Sou um pouco egoísta, pois se eu considero me satisfazer e me atingir, creio que poderei oferecer esse melhor ao público. Em tantos anos de teatro, é o personagem mais difícil que encarei até agora”, diz Adriana.

Para a intérprete de “Diadorim, o ser em labirinto”, trata-se de uma narrativa com carpintaria dramatúrgica que passa pelo corpo, pela voz, pelo olhar da direção, pela iluminação em cena.  “Não é fácil estar sozinha em cena. Esse fazer solitário é um modo de refletir com o público sobre gêneros masculino e feminino. A personagem Maria Deodorina foi imposta a virar Reinaldo que criou Diadorim. Em 1956, o Guimarães Rosa nos deixou um legado para discutir sexualidade, afetos e muitas outras questões ainda no século 21”, reflete Adriana Medeiros.

A peça fica em cartaz durante dois fins de semana, de 20 a 29 de setembro, às 20h, no Teatro de Bolso Procópio Ferreira, em Campos dos Goytacazes.

Sonia Clara como Diadorim no cinema

Diadorim no cinema

A personagem Diadorim foi interpretada pela primeira vez no cinema, em 1965, pela atriz Sonia Clara. Ela conta que era muito jovem na época para compreender Diadorim. “Eu tenho muita humildade para dar este depoimento porque a obra do Guimarães Rosa é um universo muito particular, com uma complexidade imensa. No meu modesto entender, Diadorim tem uma ambiguidade e um permanente subtexto. O Riobaldo não tinha nenhuma racionalidade. Diadorim tinha uma delicadeza que ele, aos poucos, fica impressionado em função dessa ambiguidade”.

Para Sonia Clara, foi um privilégio fazer Diadorim. Ela diz que gostaria de ter a maturidade de hoje para poder fazer uma melhor leitura quando era jovem, e para compreender os labirintos da personagem.

“Eu também tive o privilégio de conhecer o Guimarães Rosa que, à época, trabalhava como embaixador no Itamaraty. Ele disse para mim: “faça”. E eu fiz com minha intuição, sem muita racionalidade. Na ocasião, filmamos em Patos de Minas, mas a locação era em Lagoa Formosa, uma pequena cidade por causa dos buritizais que o Guimarães Rosa assinalou muito que fazia questão. Foi um filme artesanal e o primeiro grande enfrentamento na minha profissão. Diadorim é uma grande aliada hoje em dia porque ela já sabia de muitas coisas. Ela me ensina muito ainda. O mundo de Guimarães Rosa é extraordinário. A gente lê e relê cada página, é quase surreal. Ele é um impressionista. Fico feliz por uma nova atriz defender Diadorim e desejo sucesso a todos na montagem teatral”.

Arlete Sendra aborda o drama de Diadorim em sua peça (Foto:Antônio Cruz)

Entrevista com Arlete Sendra

A trilogia “O Avesso da Mulher” com os textos “Eu fui Macabea”, “Traídas e Traidoras, somos todas Capitus” e “Diadorim, o ser em labirinto”, escrita pela professora e doutora em Literatura, e agora dramaturga Arlete Sendra, foi criada inicialmente para ser publicada em livro. A autora, antes da publicação, decidiu transformar os textos e adaptá-los para o teatro. Esta experiência tem ajudado a promover a literatura, mas também o feminismo, pois as personagens dos textos originais ganharam voz e autonomia para darem suas versões de seus dramas e insatisfações, contrapondo os narradores masculinos das obras de Lispector, Machado e Rosa.

Qual é a sua relação com “Grande Sertão: veredas” e seu autor Guimarães Rosa?

Minha relação com Guimarães Rosa é muito antiga. Na verdade, eu já o lia bastante quando fui fazer o meu Mestrado, onde meu trabalho final foi “Por mares helênicos, por sertões brasileiros: tudo é travessia”. Trouxe “Ulisses” de Homero para os nossos sertões brasileiros, e levei Riobaldo e Guimarães Rosa para as terras helênicas. O trabalho foi bastante discutido e aplaudido, o que me deixou muito feliz. Depois, quando fui fazer o Doutorado, voltei a Guimarães Rosa e prossegui nosso diálogo, só que um pouco mais extenso. Trouxe “Iracema” de José de Alencar, e “Macunaíma”, de Mário de Andrade, para conversarem com ele. Ou seja, três brasileiros discutindo sobre a brasilidade. Gostei muito de ter feito este trabalho acadêmico.

Por que quis escrever um texto para Diadorim que não é protagonista da obra?

Eu nunca li antes um trabalho sobre Guimarães Rosa em que Diadorim fosse a matéria vertente. Sempre é Riobaldo que faz a narrativa e sua voz é ouvida. No trecho do livro “Grande Sertão: veredas” onde, diante do corpo morto de Diadorim, suas vestes rasgadas, sua intimidade exposta diante dos jagunços, ao Deus dará da pobrezinha; naquele momento, em que Riobaldo vê que Diadorim era uma mulher, realmente é um momento de muito impacto, de muita emoção. Não sei se para todos, mas, na verdade, quando se lê e se é despertado pelo texto vestimos as emoções. As coisas não são fáceis, nem tão simples.

O que Diadorim tem a dizer?

Eu quis fazer com ela o que fiz com Macabéa em “A hora da estrela”, de Clarice Lispector; e Capitu em “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, dando vozes a elas para que contassem suas histórias que são fáceis de ser encontradas, pois estão nas entrelinhas que os autores normalmente escamoteiam. É nas entrelinhas que está o cerne do texto, da questão. O sofrimento de Diadorim é algo indescritível. É um sofrimento de uma interioridade, um sofrimento que não se pode desvelar, um sofrimento que tem que segurar, pois não se pode desconstruir uma imagem que veio paternalmente sendo construída. Há uma perversidade paterna nesse momento, considerando os elementos culturais que faziam com que o homem que não gerasse um filho homem, isto negava sua macheza.  Ora, e como negar macheza no sertão brasileiro entre tantas violências?

O que se pode destacar em “Diadorim,o ser em labirinto”?

O que me assusta é ver o sofrimento de Diadorim ouvindo Riobaldo dizer que “era homem por mulheres”. Diadorim, apesar de ser mulher,  não podia se mostrar, pois se apresentava como homem, era ele e não ela, a companheira ideal para Riobaldo. O texto é muito bonito. Eu falo da perversidade da cultura que está presente até hoje. Há história de uma macheza que a gente não sabe até onde vai, pois isto não é válido, não pode ser, não deve ser. Entretanto, na literatura, o grande Guimarães Rosa entrou na vertente cultural e compôs esse texto incrível que é “Grande Sertão: veredas” dentro do olhar cultural daquele momento. Ele que superou tanto, que foi tão maior do que a cultura, que foi buscar dos nossos primórdios no interior,  trazendo-os para nos mostrar de onde estamos vindo. O texto é muito bonito e eu acho que vale a pena a gente visitá-lo e revisitá-lo.