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Fé sob ataque em Campos

Ataques violentos a centros de religiões afro-brasileiras e furtos às igrejas preocupam autoridades e chamam atenção pela ousadia

Campos
Por Thiago Gomes
4 de agosto de 2019 - 9h15

Gilberto Totinho do Fórum Municipal de Religiões Afro-brasileiras (Foto:Silvana Rust)

Além de questões que envolvem a fé, comuns às mais variadas crenças, as religiões têm-se visto obrigadas com maior frequência a encarar temas nada ligados à espiritualidade, como violência e intolerância. Nos últimos 30 dias, cinco igrejas da Diocese de Campos dos Goytacazes foram invadidas. Os atos têm sido tratados pelo bispo diocesano de Campos, Dom Roberto Francisco Ferrería Paz, como casos de vandalismo ou de sabotagem e fanatismo. Ainda no município, discriminação contra sacerdotes e praticantes de religiões de matriz africana também viraram atos comuns. Nos últimos dois anos, 36 casos considerados graves, como agressões e invasões de comunidades tradicionais de terreiros,foram registrados pelo Fórum Municipal de Religiões Afro-brasileiras de Campos (Frab), que trata os episódios como racismo religioso.

“Um traficante entrou aqui em casa com uma arma e a colocou no meu pescoço. Ele disse que se eu não parasse com essa ‘palhaçada’ iria me matar. Quebrou duas cadeiras, imagens, expulsou as pessoas que estavam aqui. Muitos não quiseram voltar mais com medo de que a invasão ocorresse novamente. Isso prejudicou minha saúde, passei até a tomar tranquilizante”. O relato é de um ministro religioso de matriz africana de Campos, que teve a comunidade tradicional de terreiro, que funciona em sua casa, invadida recentemente. O nome e o bairro onde a vítima mora foram preservados pela equipe de reportagem para a garantia de sua integridade física.

“As vítimas de racismo não se sentem seguras para procurar a polícia e denunciar”

O presidente do Frab, Gilberto Totinho, alerta para a gravidade da situação: pessoas em Campos têm sido expulsas de suas casas por serem praticantes de Candomblé ou da Umbanda, ambas religiões de matrizes africanas. Os traficantes invadem o local e põem os moradores para fora. Entre 2017 e 2019, o Frab mapeou 36 casos graves, sendo 11 comunidades tradicionais de terreiro fechadas pelo tráfico, outras 12 invadidas e que tiveram imposição de horário para funcionar e 13 episódios de ameaças diversas contra sacerdotes e praticantes. Totinho ressalta que o problema fica ainda maior porque as vítimas não se sentem seguras para procurar a polícia e denunciar.

“Em Campos, os episódios ficaram mais frequentes em 2018. Há, inclusive, dois homicídios de ministros religiosos, um ocorrido em 2017 e outro em 2018, ambos em Guarus. Temos casos de crianças que foram agredidas na escola”, relatou o presidente do Frab.

Totinho aponta que o racismo religioso parte de praticantes de religiões de matriz cristã e que, por isso, líderes religiosos como bispos, padres e pastores precisam se comprometer com o combate à discriminação. Ainda na análise de Totinho, o aumento dos ataques contra as religiões de matrizes africanas coincide com o crescimento do movimento neopentecostal no Brasil.

A assistente social Manuelli Ramos fica encarregada de prestar os primeiros atendimentos às vítimas que procuram o Frab. Ela explica que a origem de tais episódios têm um conceito ainda mais amplo do que a própria intolerância religiosa. Para Manuelli, o preconceito não está ligado à religião em si, mas no fato de ela ser de matriz africana, ou seja, discriminação com a ancestralidade negra. Daí o termo racismo religioso e não intolerância religiosa.

Igrejas católicas profanadas

Igreja Nossa Senhora da Penha, na localidade Conselheiro Josino (Foto:Carlos Grevi)

Nos últimos 30 dias, cinco igrejas da Diocese de Campos dos Goytacazes foram invadidas. A última, a capela de Nossa Senhora do Carmo, da localidade Ponto do Carmo, na Baixada Campista — que pertence à Paróquia São Gonçalo — foi violada em 26 de julho. Segundo a Diocese, os suspeitos quebraram o vidro da janela lateral, conseguiram abrir a porta, mas não levaram nenhum objeto. Na ação, eles quebraram um crucifixo e trocaram o sacrário de lugar.

“A frequência de arrombamento e furtos em Igrejas em Campos e Itaperuna merece uma análise séria e objetiva. Pode significar a ação de uma quadrilha que tenha como foco às Igrejas ou um ato de sabotagem e fanatismo. De qualquer modo, exige a intervenção policial e o esforço para dar segurança às comunidades eclesiais. Pois está em risco a liberdade religiosa e o direito constitucional de proteção às liturgias. Manifestamos uma vez mais nosso repúdio e nossa indignação, esperando encaminhamentos em ordem a impedir estes atentados contra as Igrejas e Templos de qualquer religião”, afirmou o bispo diocesano de Campos.

Zelador Antônio Carlos na Igreja Nossa Senhora da Penha em Conselheiro Josino

Outros quatro templos católicos foram invadidos em julho. No dia 19, foi a vez da Igreja Matriz de Cristo Ressuscitado e Nossa Senhora da Penha, no distrito de Conselheiro Josino. As coroas das imagens foram levadas e armários revirados.Na cidade de Itaperuna, no Noroeste Fluminense, a porta do salão paroquial da Igreja Matriz São José do Avahy foi arrombada e o sistema de segurança do templo foi destruído na madrugada do dia 17.

Em 9 de julho, um furto foi registrado no distrito de Tocos, em Campos. A Igreja Nossa Senhora da Penha teve as portas arrombadas e objetos foram jogados no chão. Uma pequena quantia da caixa de donativos foi levada, além de lâmpadas da capela mortuária. Já em São Francisco de Itabapoana, o crime aconteceu no dia no dia 6, quando a Capela de Santa Luzia, na localidade de Bom Jardim, foi furtada. Foram levados violão, lâmpadas e materiais litúrgicos, como o lavabo.

“Nós não podemos permitir que a intolerância religiosa, ou também furtos patrimoniais tomem conta, nos ameacem e nos intimidem. As nossas liturgias estão defendidas pela constituição, além do culto a Deus ser um direito d’Ele também. Sem templo, sem comunidades litúrgicas, nós não podemos oferecer a Deus um culto nobre e santo. Pensemos nisso, vamos nos empenhar para darmos uma solução. Podemos caminhar juntos e sermos uma comunidade cada vez mais justa, fraterna e unida”, concluiu Dom Roberto.

Bispo de Campos Dom Roberto Paz

Diocese emite nota de solidariedade com as religiões de matriz africana “Expressamos como Diocese de Campos nossa solidariedade fraterna e apoio para com os irmãos e irmãs pertencentes a religiões de matriz africana. Repudiamos e manifestamos nosso total desacordo e desconformidade com a perseguição religiosa, a intolerância e a violência que levou ao fechamento de vários Terreiros. O desrespeito à liberdade religiosa e à liberdade de consciência fere profundamente a Democracia, a convivência social e torna-se uma grave ameaça à paz. Nossa bênção de consolação e paz!”, diz a nota assinada por Dom Roberto Francisco Ferrería Paz.

 

 

 

 

Diferença de doutrinas

Pastor Antônio Carlos Mageschi recrimina ações de traficantes nas comunidades

O presidente da Ordem dos Pastores Batistas da Planície, Antônio Carlos Fernandes Mageschi, explica que a doutrina seguida pela Igreja Batista é diferente daquela seguida pelas religiões de matriz africana, assim como também há discordância com os dogmas da Igreja Católica. Contudo, segundo ele, isso não pode gerar intolerância ou qualquer outro tipo de violência. O pastor, que disse já ter sido hostilizado enquanto pregava em local público, reconheceu que há grupos de ‘evangélicos radicais’ que praticam a violência contra seguidores de Umbanda ou Candomblé, mas que tais atos jamais são incentivados pela Igreja Batista. “Estes são maus cristãos”, resumiu.

O pastor continua: “Essas pessoas que se intitulam ‘traficantes de Jesus’ não são verdadeiramente cristãos porque não seguem os ensinamentos de Deus. Eu afirmo que verdadeiramente Batistas eles não são”, disse Mageschi. O pastor esclareceu que fala apenas em nome da denominação Batista em Campos.

Intolerância, um problema histórico

O delegado da Polícia Federal e articulista do Jornal Terceira Via, Paulo Cassiano Júnior, destacou que, nos últimos anos, a perseguição contra religiões afro-brasileiras tem crescido sobremaneira no país, especialmente em bairros periféricos, onde o poder do tráfico de drogas é dominante. Mas ressaltou que o problema não é recente.

“Intolerância religiosa existe desde que o ser humano passou a se relacionar com o divino de diferentes maneiras. Logo após a crucificação de Cristo, seus discípulos foram perseguidos pelos judeus. Durante a contrarreforma, as fogueiras da inquisição católica foram calcinadas para incinerar hereges protestantes. O século XX assistiu ao horror nazista em sua obsessão antissemita”, lembrou.

Cassiano pontua que, no Brasil, o fenômeno também não é recente. “Em 1824, nossa primeira constituição consagrou o catolicismo como a religião oficial do Império. Como consequência dessa legitimação, o artigo 276 do Código Criminal de 1830 tipificou a celebração (privada ou pública) de cultos de outra religião, estabelecendo como sanções a aplicação de multa, a dispersão dos participantes e a demolição do templo. Apesar de editado dois anos após a abolição da escravatura, o Código Penal de 1890 criminalizou o espiritismo e o curandeirismo, diretamente associados às crenças de matriz africana”.

E conclui: “Jesus não pregou o ecumenismo nem uma verdade espiritual múltipla. Entretanto, a mensagem bíblica está ancorada no respeito ao próximo e na liberdade (inclusive para não se crer). Também por isso, a intolerância religiosa precisa ser denunciada e reprimida, pois não existe nada mais anticristão do que usar o nome de Jesus para impor o cristianismo”, disse o delegado em seu artigo.

Nota da Polícia Militar

Também em nota, a Secretaria de Estado de Polícia Militar informou que “segue, através do 8º Batalhão de Polícia Militar (Campos dos Goytacazes), intensificando o policiamento ostensivo em todo o perímetro do município. Se há alguma ação orquestrada no sentido de atentar contra as instituições religiosas, é necessária a abertura de um procedimento investigativo”. A equipe de reportagem fez contato com a assessoria da Polícia Civil, que não enviou resposta até o fechamento desta edição.

Censo religioso

De acordo com o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) — o mais recente sobre o assunto — há no país seguidores da fé católica, evangélica, espírita, do candomblecismo, umbandismo, judaísmo, islamismo, hinduísmo, budismo e tradições indígenas, entre outras.

Segundo o órgão, a religião com maior número de praticantes é a católica, 64,6% da população, enquanto os evangélicos vêm em segundo lugar, com 22,2%. Os adeptos do espiritismo são 2% da população, enquanto os da Umbanda e do Candomblé representam 0,3%. Cerca de 107 mil pessoas seguem o judaísmo; 65 mil tradições indígenas; 35 mil o islamismo; e 5 mil o hinduísmo.No entanto, números atualizados serão divulgados no próximo Censo, previsto para 2020.

Política Pública

Rogério Soares está à frente da Superintendência da Igualdade Racial em Campos

Um Grupo de Trabalho (GT) para atendimento às vítimas de intolerância religiosa foi recentemente criado pela Prefeitura de Campos e conta com representantes de órgãos como Superintendência da Igualdade Racial, Secretaria de Desenvolvimento Humano e Social (SMDHS) e Superintendência de Justiça. “O município repudia qualquer ato de racismo religioso ou intolerância religiosa. A partir dos relatos que a gente recebeu, resolvemos criar um GT para que pudesse fazer duas coisas: prestar o atendimento emergencial aos casos mais graves, e prestar assistência jurídica”, disse o superintendente da Igualdade Racial, Rogério Siqueira.

Liberdade assegurada em lei

Constituição Federal de 1988

Art. 5º — Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

VI – e inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

Declaração Universal dos Direitos Humanos

Art. 18º — Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.