×
Copyright 2024 - Desenvolvido por Hesea Tecnologia e Sistemas

Presidente da OAB afirma que Bolsonaro cometeu calúnia contra seu pai

Fernando Santa Cruz morreu após ser preso pelo DOI-CODI e teria tido corpo queimado na Usina Cambaíba, em Campos

Política
Por Redação
31 de julho de 2019 - 13h55

Felipe Santa Cruz, presidente da OAB. (Foto: Divulgação)

O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, anunciou que vai protocolar na Justiça, nesta quarta-feira (31), um pedido de explicações ao presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL). Cruz defenderá que o chefe do Executivo cometeu calúnia contra a memória do seu pai, Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, que teria morrido após ser preso por agentes do DOI-CODI em 1974 e tido o corpo incinerado na Usina Cambaíba, em Campos, segundo o ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) Cláudio Guerra.

Estudante de direito nascido em Recife (PE), Fernando Augusto era integrante do grupo Ação Popular (AP), organização contrária ao regime militar, e desapareceu após ter sido detido, junto de um colega, em Copacabana, no Rio de Janeiro, no dia 22 de fevereiro daquele ano. Ele foi citado por Bolsonaro no último dia 29, ao comentar a repórteres o desfecho do processo judicial que considerou Adélio Bispo, autor da facada que o presidente sofreu em Juiz de Fora (MG) durante a campanha eleitoral, inimputável.

Bolsonaro começou criticando a atuação da OAB no caso. Segundo o presidente, a entidade teria impedido acesso da Polícia Federal ao telefone de um dos advogados de Bispo. Em seguida, falou sobre o pai do presidente da ordem. “Um dia se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele”, disse.

A OAB repudiou a fala de Bolsonaro, considerada como “frivolidade”. “Apresentamos nossa solidariedade a todas as famílias daqueles que foram mortos, torturados ou desaparecidos, ao longo de nossa história, especialmente durante o Golpe Militar de 1964, inclusive a família de Fernando Santa Cruz, pai de Felipe Santa Cruz, atingidos por manifestações excessivas e de frivolidade extrema do Senhor Presidente da República”, afirmou a entidade, em nota.

Presidente Jair Bolsonaro. (Foto: Reprodução)

Mais tarde, no mesmo dia, durante uma transmissão ao vivo pelo Facebook, o presidente voltou a falar sobre o caso e afirmou que Fernando Augusto teria sido morto por guerrilheiros.

“O pai do Santa Cruz integrava a Ação Popular do Recife, era o grupo terrorista mais sanguinário que tinha. E esse pessoal tinha algumas ramificações pelo Brasil, tinha uma grande no Rio de Janeiro. O pai dele, bastante jovem ainda, veio para o Rio de Janeiro. (…) O pessoal da AP no Rio de Janeiro ficou, primeiro, estupefato: ‘como é que pode esse cara vir do Recife se encontrar conosco aqui?’ O contato não seria com ele, seria com a cúpula da Ação Popular de Recife. E eles resolveram sumir com o pai do Santa Cruz. Essa é a informação que eu tive na época sobre esse episódio. Por que, qual é a tendência? ‘Se ele sabe, nós não podemos ser descobertos’. Existia essa guerra naquele momento. Isso que aconteceu, não foram militares que mataram ele não. É muito fácil culpar os militares por tudo o que acontece”, afirmou.

O Estadão Verifica, porém, recuperou um depoimento de um dos irmãos de Fernando Augusto. À Agência Brasil, João Artur afirmou que ele não era ligado à luta armada. Outros membros de destaque da AP incluem o ativista Herbert de Souza, o Betinho, e o ex-senador José Serra.

Fernando Augusto de Santa Cruz. (Foto: CEPE/Divulgação)

Documentos

A versão apresentada pelo presidente, porém, contraria documentos emitidos por seu próprio governo e relatórios das forças armadas. Na semana passada, a Comissão de Mortos e Desaparecidos do Ministério dos Direitos Humanos emitiu um atestado de óbito para Fernando Augusto.

Segundo o documento, ele “faleceu provavelmente no dia 23 de fevereiro de 1974, no Rio de Janeiro/RJ, em razão de morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistemática e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985”.

Um documento do Ministério da Aeronáutica datado de 8 de setembro de 1978 confirma a prisão de Fernando Augusto Souza Cruz em 22 de fevereiro de 1974. Na época, o relatório foi classificado como secreto, mas, hoje, integra o acervo do Arquivo Nacional e está disponível para consulta pública.

Já um relatório do antigo Ministério da Marinha também registra a prisão de Fernando Augusto em fevereiro de 1974. O documento foi elaborado em 1993, após pedido da Câmara dos Deputados de informações sobre desaparecidos durante a ditadura, e está disponível nos arquivos da Comissão Nacional da Verdade (CNV).

Quando Fernando Augusto desapareceu, o presidente da OAB Felipe Santa Cruz tinha apenas dois anos de idade.

(Foto: Comissão Nacional da Verdade/Divulgação)

Cambaíba

O relatório final da CNV traz depoimento do ex-delegado do DOPS Claudio Guerra, que afirmou, em depoimento prestado em 2014, que o corpo de Fernando Augusto foi incinerado em um dos fornos da Usina Cambaíba, em Campos.

A informação também consta do livro “Memórias de uma guerra suja”. Escrito por Rogério Medeiros e Marcelo Netto, a obra foi publicada em 2012 e conta com depoimentos de Guerra, que hoje é pastor da Assembleia de Deus.

Além do ex-delegado do Dops, o ex-sargento do Exército Marival Chaves Dias do Canto também relatou à CNV a existência de um esquema de transferência de presos entre estados, que envolvia o encaminhamento dos presos para locais clandestinos de repressão, como a Casa da Morte: centro clandestino de tortura e assassinatos mantido pelos órgãos de repressão da ditadura em Petrópolis. Segundo ele, Fernando Augusto teriam sido uma das vítimas dessa operação.

Nesta terça-feira, Bolsonaro colocou em dúvida a legitimidade da CNV e chamou de “balela” a documentação da comissão que demonstram mortes durante a ditadura. “Nós queremos desvendar crimes. A questão de 64, existem documentos de matou, não matou, isso aí é balela”, afirmou o presidente.