×
Copyright 2024 - Desenvolvido por Hesea Tecnologia e Sistemas

Entrevista: O senhor de muitas histórias

Autor de dois livros, artigos e peças teatrais, professor da UFF-Campos reflete sobre realidade e ficção

Entrevista
Por Ocinei Trindade
22 de julho de 2019 - 0h01

Carlos Eugênio Soares de Lemos nasceu em Campos no período da ditadura militar. Diz ter entre 40 e 70 anos de idade. Graduado em História e em Letras, é especialista em História do Brasil e Psicanálise, mestre em Comunicação e Cultura e doutor em Ciências Humanas- Sociologia (IFCS/UFRJ). Escreveu dois livros e um terceiro está sendo elaborado. Autor de cinco peças, de diversos artigos e capítulos de livros acadêmicos, é membro do Laboratório de História Regional e Patrimônio (UFF-Campos) e do Laboratório de História Regional do Espírito Santo e Conexões Atlânticas.

Você se considera um homem de histórias?
A história é uma paixão de todos os dias. Por mais que eu atue em áreas distintas (História Regional, Sociologia do envelhecimento, Linguística, Ficção), eu sempre o faço com a perspectiva de que nada na vida dura para sempre. O trabalho com as fontes históricas me dá ainda mais clareza de que a passagem do tempo é um tsunami da qual nenhum homem e sociedade escapam. Uma das primeiras lições que temos no curso de História é de que as perguntas que lançamos ao passado dizem muito sobre as angústias do nosso presente. São perguntas que os pósteros também farão sobre nós, como na poesia de Afonso Romano de Santana: “Assim, entraremos para a história deles como outros para a nossa entraram; não como o que somos, mas como reflexo de uma reflexão”.

Como começou essa trajetória?
Começou na vila de operários em que cresci, numa família grande, comandada por minha avó que trabalhou vinte nove anos numa fábrica de tecidos. Ela tinha uma memória rica desse seu passado de tecelã e fazia questão de dividir as suas lembranças de trabalho e familiares. Eu sempre ouvia com muita atenção aquelas histórias cheias de reviravoltas e lições de superações. Na realidade, a minha ilusão biográfica também começou no Liceu de Humanidades de Campos, colégio repleto de excelentes professores que me despertaram para a História como Aristides Soffiati, Denise, Marluce Guimarães, Heloísa Manhães, entre outros. Passou pelos grupos jovens de igreja católica, pelo teatro, pelo IFF, pelas FAFIC, UFF e UFRJ. Nestas últimas, eu me encontrei com pessoas que foram fundamentais em minha profissão, devo tanto a esses professores e pesquisadores. Eles me levaram para um outro mundo. Foi incrível estar no mesmo lugar de sempre e descobrir que era possível olhar a realidade por ângulos que só a História poderia me permitir.

Você antes de se graduar já fazia teatro como ator e autor, não é?
É sim. Eu iniciei no grupo teatral do IFF, sob a coordenação de Artur Gomes (figura talentosa demais que já era bem vanguarda, enquanto a maioria de nós apenas engatinhava) , e, em seguida, participei ativamente do grupo “Gente é para brilhar e não morrer de fome”, dirigido por Fernando Rossi. Na realidade, o meu primeiro contato com o teatro começou nas festas juninas da minha vila que, além da quadrilha, tinham esquetes teatrais. Depois, no CEFET e na João Barcelos Martins, fui incentivado a escrever pelas maravilhosas professoras Edinalda Maria e Arlete Sendra. Escrevi muita porcaria e besteirol nos anos noventa. Eu amava aquelas histórias malucas, non sense, idiotas. Depois, fiquei mais grave, passei a me dedicar a tragicomédias e tive a honra de ser encenado por todos aqueles que eu admirava e admiro no teatro local, como Kapi, Maria Helena Gomes, Rodrigo Espinosa, Fernando Rossi, Sisneiro, Rosangela Queiroz, Alexandre Ferram e tantos outros que eu poderia levar horas listando.

Depois de alguns anos, você retornou ao teatro em Campos com a peça “As pessoas na sala de jantar” que aborda um período da ditadura militar. Comente a experiência.
Essa peça segue um pouco a linha do que faziam o Naum Alves de Souza e Mauro Rasi, uma mistura de ilusão biográfica e história. Eu amo esses dois autores. Foi muito bacana fazer o estudo de mesa com Rosângela Queiroz, Liana Velasco e Luciana Rossi . De fato, ao observá-las na construção das personagens, aprendi muito sobre o texto que havia escrito e a importância que aquela história poderia ter no contexto. Eu não acompanhei a maior parte do processo de criação porque a minha vida acadêmica me absorve por inteiro. Sei que teve altos e baixos, principalmente porque a história mexia muito com nossas próprias lembranças e expectativas futuras. O fato é que quando fui assistir fiquei impressionado.

Você viveu o período final do regime militar até 1985 ainda adolescente. Que impressões tem daquela época e que comparação faria com a situação política brasileira em 2019?
Nesse período final da ditadura, eu tinha terminado de entrar na adolescência. Assim, o impacto das transformações ocorridas na cabeça e no corpo consumiam muito das minhas preocupações. Eu vivia pensando em como me livrar das espinhas, dos medos, das repressões sexuais e religiosas – e tudo isso se misturava com a torcida pela abertura política e pelas eleições diretas. Creio que os desafios vividos hoje já estavam colocados lá sem que os víssemos com maior nitidez, pois estavam diluídos nas fantasias que nutríamos sobre quem supostamente éramos, um povo alegre, pacífico, cordial, ou seja, alguém bem diferente das pessoas com quem tivemos de dividir a mesa de Natal depois das últimas eleições.

Você como artista sempre foi engajado politicamente e como professor da UFF também. Como analisa historicamente esse processo pelo qual atravessa o país desde a redemocratização?
Penso que a redemocratização abriu as portas para que diversas questões latentes se manifestassem. Existem diferentes modos de se analisar esse processo. Um deles é acompanhar as mudanças enfrentadas pelo postulado patriarcal no Brasil que, durante muito tempo,veio tentando enquadrar num único padrão a pluralidade do nosso modo de estar no mundo. Exame de DNA, poder de família, prisão por não pagamento de pensão alimentícia, lei Maria da Penha, estatuto do menor, as reivindicações LGBTs, movimento feminista, entre outros, são acontecimentos que trouxeram para cena política as vozes daqueles que, durante muito tempo, estiveram (e muitos ainda estão) impedidos de falar. Também podemos analisar o período utilizando outros eixos como a das relações raciais (o colapso da fantasia de democracia racial), o dos conflitos de classe (a hipertrofia da sociedade do consumo diante da precariedade da cidadania), o das relações geracionais ( como nos debates sobre a transferência de apoio na reforma da previdência, a dificuldade dos jovens no mercado de trabalho e a política institucional dominada por uma gerontocracia de homens “brancos”, velhos e ricos), o da relação entre política e religião que culminou numa lógica de que a Bíblia deve ser a base do nosso contrato social e não a Constituição – uma verdadeira aberração teocrática popularesca que se alimenta do que há de mais podre e vil nas redes sociais do mundo virtual.

Desde 2014, o Brasil se dividiu bem mais no aspecto político. Porém, esse fenômeno de polarização e ascensão da direita também ocorre na Europa, Estados Unidos e América Latina. Como observa esse ciclo de disputa entre os movimentos populares de esquerda e extremistas de direita como os bolsonaristas?
Como é de praxe, a partir do século XIX, a ideologia nacionalista veio senso construída e reconstruída na tentativa de forjar a unidade numa sociedade marcada pelas desigualdades. Em outros momentos da História do Brasil, vivemos essa polarização que acabou resultando em tristes Golpes de Estado. Nesses casos, não raro, a ameaça comunista foi utilizada para justificar o ataque à democracia e as liberdades individuais. No entanto, hoje, o argumento da ameaça comunista soa, no mínimo, fora do lugar – anacrônico. Eu não sou comunista e conheço pouquíssimos comunistas. Nunca tive problema nas universidades por não ser um professor comunista. O fato de não ser socialista ou comunista nunca me impediu de analisar criticamente a realidade. Eu não sei de onde vem essa ideia de que ler Marx, reconhecer o valor de sua teoria, torna todo mundo comunista ou contaminado por um suposto marxismo cultural etc. Os alunos na Universidade estudam Weber, Durkheim, Simmel, Elias, Goffman e tantos outros autores. E, para mim, o problema não é o aluno ou professor ser de direita ou de esquerda, mas, sim, ser mal fundamentado, não ter a menor base teórica e de vida sobre aquilo que ele diz ser. Nada mais parecido com um extremista de direita do que um extremista de esquerda, ambos odeiam os estudos, a liberdade e a diversidade Nós rimos muito quando ouvimos que os alunos são doutrinados pelos professores. Se meus alunos fossem doutrináveis, estudariam o Brasil Império, Análise do discurso e amariam Norbert Elias – mas nada disso acontece. Falando pela minha sala de aula, só quem não conhece a realidade de uma Universidade é capaz de dizer uma bobagem dessa, pois nós mal conseguimos fazer com que os alunos leiam os textos e os livros que constam em nossos programas.

Você também é autor de livros de História. Comente sobre sua última obra “Vivendo em tempos de tirania”.
A primeira parte do livro é destinado ao professor da educação básica. Nela, eu apresento de modo sintético algumas características da vida na Vila de São Salvador, na primeira metade do século XIX. Em seguida, discorro sobre como os “homens bons” do local empreenderam um movimento para desmembrar a vila da província do Espírito Santo e anexá-la ao Rio de Janeiro, tendo em vista transformar o seu potencial eleitoral em capital político na corte e reproduzir a escravidão. E isso se dá num momento de expansão do capitalismo e no contexto de emancipação da América portuguesa, numa realidade em que a política local era dominada por um grupo de famílias tradicionais. Esse foi um movimento em direção ao sonho de a cidade de Campos ser a capital de uma nova província na nova configuração política administrativa e territorial do Império brasileiro.

A História do Brasil, dramaturgicamente falando, é mais tragédia ou comédia no seu ponto de vista?
Tragicomédia, drama e pastelão, dependendo sempre de uma análise da época, do enredo do momento e dos personagens.

O noticiário te influencia de algum modo para escrever ficção?
Sou mais influenciado pelas histórias que pressinto nos documentos. Por conta da análise do discurso, eu tendo a ter uma relação muito analítica com o noticiário de qualquer época. Na realidade, tudo que penso de ficção vem atrelado a um contexto histórico. O livro “A visita do Imperador” nasceu de um documento que estava lendo sobre a passagem de Pedro II por Campos aos 21 anos de idade. Não me interessava falar do jovem imperador, mas sim da sociedade que o recebeu. Na ocasião, decidi que a narrativa ficcional seria o melhor caminho para detalhar essa estadia, visto que queria experimentar o exercício de transformar personagens históricos em ficcionais e tipos sociais ficcionais em históricos.

Nestes 519 anos históricos do Brasil, o que mais te causa espanto, incômodo ou orgulho?
Creio que a hipocrisia merecia um estudo sobre a sua importância em nossa formação social. No entanto, o que mais me causa espanto é a permanência do autoritarismo em nossas relações sociais e como insistimos em escravizar a natureza. É assustadora a destruição que promovemos no planeta. Fico preocupado também ao perceber como a tirania de certos credos religiosos tem feito carreira na vida política, ao ponto de querer estabelecer uma pauta para a sociedade segundo os preceitos do velho testamento, desconsiderando, completamente, a prevalência da Constituição e das garantias individuais.

Para concluir, arrisca um palpite sobre os rumos do país em um futuro próximo?
Como na História não temos um ponto de chegada, deixo a previsão para os economistas.