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Traficantes evangélicos

"Neste artigo, Paulo Cassiano Jr. discute a intolerância religiosa."

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Por Paulo Cassiano Júnior
21 de julho de 2019 - 14h15
  • “Taca fogo em tudo! Quebra tudo! Quebra tudo! ‘Paga a vela, pelo sangue de Jesus tem poder! Rebenta as guias toda! Todo mal tem que ser desfeito, em nome de Jesus!” Foi assim, em tom imperativo e português desacertado, que um traficante de uma favela carioca filmou as próprias ordens dadas a uma ialorixá, para romper guias, quebrar imagens e destruir objetos e utensílios de culto.

Nos últimos anos, a perseguição contra religiões afro-brasileiras tem crescido sobremaneira no país, especialmente em bairros periféricos, onde o poder do tráfico de drogas é dominante. Líderes e adeptos de umbanda e candomblé têm sido coagidos a deixar de usar vestes e de ostentar acessórios religiosos, bem como a praticar a fé sob restrições impostas por traficantes. Em casos extremos, cada vez mais comuns, o comando é para abandonar os terreiros, sob humilhações e ameaças de morte.

Intolerância religiosa existe desde que o ser humano passou a se relacionar com o divino de diferentes maneiras. Logo após a crucificação de Cristo, seus discípulos foram perseguidos pelos judeus. Durante a contrarreforma, as fogueiras da inquisição católica foram calcinadas para incinerar hereges protestantes. O século XX assistiu ao horror nazista em sua obsessão antissemita.

No Brasil, o fenômeno também não é recente. Em 1824, nossa primeira constituição consagrou o catolicismo como a religião oficial do Império. Como consequência dessa legitimação, o artigo 276 do Código Criminal de 1830 tipificou a celebração (privada ou pública) de cultos de outra religião, estabelecendo como sanções a aplicação de multa, a dispersão dos participantes e a demolição do templo. Apesar de editado dois anos após a abolição da escravatura, o Código Penal de 1890 criminalizou o espiritismo e o curandeirismo, diretamente associados às crenças de matriz africana.

Até a década de 1980, a relação de traficantes com as religiões de origem africana era amistosa. A partir do decênio seguinte, o crescimento das igrejas neopentecostais e o seu avanço no trabalho de evangelização, inclusive no sistema penitenciário, transformaram a realidade sociocultural de comunidades pobres. Vários delinquentes se converteram e abandonaram o crime. Muitos não mudaram de vida, porém passaram a frequentar cultos e a relacionar-se com pastores. Em busca de proteção espiritual para a “vida louca”, começaram a ouvir pregações e receber orações. Em contrapartida, tornaram-se contribuintes da “obra de Deus”. No ambiente das favelas, passagens bíblicas inspiraram inscrições em muros e nomes de pequenos comércios; nas rádios comunitárias, as canções mais tocadas são louvores cristãos.

Essa aproximação com igrejas evangélicas mudou o panorama da relação de traficantes com as religiões afro-brasileiras, as quais passaram a ser encaradas como corporificação do “mal”. A ênfase da doutrina neopentecostal na “guerra espiritual” tem encorajado os “donos do lugar” ao acirramento de ânimos e à prática de atos de intolerância, já que os “demônios” identificados nos templos, nos símbolos e nas divindades dessas religiões precisam ser “combatidos” e “expulsos” (em nome de Jesus!).

Jesus não pregou o ecumenismo nem uma verdade espiritual múltipla. Entretanto, a mensagem bíblica está ancorada no respeito ao próximo e na liberdade (inclusive para não se crer). Também por isso, a intolerância religiosa precisa ser denunciada e reprimida, pois não existe nada mais anticristão do que usar o nome de Jesus para impor o cristianismo.