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Campista na luta por remédio de R$ 160 mil/mês

Gylsa Pessanha sofre de síndrome rara que afeta os rins e aguarda recurso judicial para conseguir medicamento pelo SUS que garanta sobrevida

Campos
Por Redação
21 de julho de 2019 - 0h01

(Foto: Carlos Grevi)

Mãe de um bebê que completará um ano no próximo dia 1º de agosto, a farmacêutica Gylsa Pessanha Machado de Souza, curiosa e tragicamente, depende de um medicamento para sobreviver. Medicamento esse que acaba no dia em que seu filho, Arthur Benjamin, comemora o seu primeiro aniversário. Ela foi diagnosticada com uma doença de cunho genético e raríssima — a Síndrome Hemolítica Urêmica Atípica (SHUa) — e esse remédio, único tratamento capaz de estabilizar os sintomas, é um dos mais caros do mundo: os custos dos oito frascos utilizados em apenas um mês totalizam aproximadamente R$ 160 mil. Diante da impossibilidade de arcar com essa despesa, ela e a irmã, Ana Luíza, fazem um abaixo-assinado na internet a fim de sensibilizar o Tribunal Regional Federal do Rio de Janeiro (TRF-2) a deferir a autorização para a obtenção desse medicamento por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).

A luta, agora, é contra o tempo: após enfrentar uma via crucis para conseguir, por meio de doação de outra paciente em Brasília e da Universidade Federal do Estado de São Paulo (UNIFESP), as doses que lhe asseguraram nos últimos três meses, não há sequer previsão de obter mais um frasco do medicamento. Sem ele, restará à Gylsa medidas paliativas, como transfusões constantes de sangue e hemodiálise que, apesar do desgaste, não são suficientes para mantê-la estável, havendo ainda o risco de óbito por falência múltipla dos órgãos.

A história começou em julho de 2018. Gylsa, que tinha então 26 anos, era uma jovem grávida saudável, sem qualquer complicação de saúde. A pouco mais de dois meses para o nascimento de seu filho, ela teve uma alta na pressão sanguínea e, no hospital, após passar por uma bateria de exames, foi orientada a fazer uma cesariana de emergência uma vez que seu quadro, segundo os médicos, era grave. O bebê nasceu prematuro, mas bem. A mãe, no entanto, precisou ficar 44 dias internada no hospital, com duas passagens pela Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

Com as funções renais alteradas, queda brusca nas taxas de plaquetas e hemoglobina, Gylsa passou por transfusões de 15 bolsas de sangue e muitas sessões de hemodiálise até que, após um teste genético analisado nos Estados Unidos da América, recebeu o diagnóstico dessa doença, a SHUa, que atinge, em todo o Brasil, apenas 400 pessoas, segundo dado do Ministério da Saúde.

Por se tratar de uma síndrome raríssima, somente um laboratório nos EUA fabrica a medicação utilizada no tratamento, o Eculizumab, conhecido comercialmente como Soliris. É um medicamento líquido injetável através de uma bomba de infusão. Cada frasco contém 30ml e Gylsa precisa tomar 240ml por mês divididos em duas doses. Isso significa que ela necessita de, ao menos, oito frascos mensalmente, sendo que cada um deles pode custar até R$ 20 mil reais.

Esses brasileiros diagnosticados com a doença recebem o remédio gratuitamente por meio da União, mediante ação na Justiça. Caminho também seguido por Gylsa e a família que entraram com um pedido na Justiça Federal de Campos dos Goytacazes em setembro de 2018. Devido à urgência, o processo foi célere. Além da perícia, ainda foram solicitados laudos médicos, prontuários e resultados de exames encaminhados por especialistas de hospitais de Campos e Rio de Janeiro e, em janeiro de 2019, o juiz de Campos deferiu uma tutela antecipada que obrigava o Mistério da Saúde, por intermédio do SUS, a fornecer o medicamento para Gylsa.

(Foto: Carlos Grevi)

Contudo, a Procuradoria Geral da União recorreu à decisão junto ao Tribunal Regional Federal do Rio de Janeiro (TRF-2) que suspendeu a tutela. Diante disso, a família precisou entrar com um recurso a ser avaliado pelo desembargador Marcelo Pereira da Silva, o mesmo que teria dado razão à União. Acontece que o processo está parado desde o dia 21 de maio e, mesmo com insistência diária por parte dos familiares de Gylsa, nada acontece. O próximo passo seria, de acordo com os advogados, retornar o processo à pauta a ser avaliada por um colegiado formado por três desembargadores que devem avaliar os documentos e laudos e, assim, efetivar a sentença.

“A decisão monocrática desse desembargador foi de negar o medicamento, mas temos esperança de que os outros dois possam fazer uma avaliação positiva. Suplicamos constantemente para que o processo volte a ser avaliado, mas sempre nos pedem para esperar, mas essa é uma situação de vida ou morte; eles precisam entender”, explicou a irmã de Gylsa, Ana Luiza, à equipe de reportagem do Jornal Terceira Via.

Foi por esse motivo que a família decidiu fazer um abaixo-assinado a fim de que o caso ganhe repercussão pública.

“Embora somente a minha irmã tenha sentido na pele os efeitos dessa Síndrome, a dor é coletiva. Gylsa não é a única… Quantas pessoas sofrem com doenças raras cujos medicamentos para o tratamento são demasiadamente caros e que só podem ser fornecidos via União?”, disse Ana Luíza.

Esse abaixo-assinado online foi criado no site change.org e, até o fechamento dessa matéria, mais de 5 mil pessoas de todo o Brasil já tinham assinado. Gylsa clama por ajuda: “Preciso sobreviver para cuidar do meu filho, mas sem esse medicamento, temo que isso não seja possível”, declarou.

O Terceira Via entrou em contato com a assessoria de imprensa do Tribunal Regional Federal do Rio de Janeiro (TRF-2) e questionou sobre o caso da paciente campista, mas, até o fechamento dessa edição, ainda não havia obtido resposta.

Políticas públicas

O Brasil possui uma Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, estabelecida pelo Ministério da Saúde por meio Portaria nº 199 desde 2014, e, por meio dela, os pacientes que recebem esse diagnóstico podem ter acesso a uma rede de atendimento para tratamento e reabilitação.

Especificamente quanto à obtenção de fármacos, o Ministério da Saúde destaca que o número dessas patologias representa uma pequena fração do universo de doenças raras e, por esse motivo, os medicamentos disponibilizados não compreendem todas essas enfermidades.

O custeio dos procedimentos para fins de diagnósticos em doenças raras é efetuado por meio do Fundo de Ações Estratégicas e Compensação (FAEC) e é repassado aos Estados, Distrito Federal e Municípios a partir da publicação da portaria de habilitação dos Serviços e/ou Serviços e produção dos respectivos procedimentos no Sistema de Informação Ambulatorial (SIA/SUS). Assim como o Ministério da Saúde, os gestores estaduais e municipais podem empregar recursos próprios na oferta de assistência e cuidado.

 

Judicialização da Saúde

Em maio deste ano, Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os medicamentos de alto custo para o tratamento de doenças raras devem ser fornecidos pelo Estado, mas, em geral, isso é feito por meio de pedido na Justiça. Assim, para que o governo custeie os medicamentos, os pacientes, quase sempre, devem esperar até que a decisão seja favorável antes de dar prosseguimento ao tratamento.

Em reportagem publicada no site da revista Veja no dia 29 de maio de 2019, o ministro do STF, Alexandre Moraes, informou que houve um aumento dessa judicialização que “vem prejudicando a própria gestão das políticas públicas de saúde no Brasil”.

Ainda segundo ele, com dados da Advocacia-Geral da União, em 2011, os valores que não chegavam a 200 milhões de reais; já em 2018, alcançaram 1,316 bilhão de reais para atender 1.596 pacientes (custo médio de 759.000 reais por paciente). “Um crescimento exponencial de valores que são destinados a poucas pessoas e acabam fazendo falta a milhares de pessoas”, disse o ministro. O gasto com o “Soliris”, especificamente, foram R$ 400 milhões.

Também para a reportagem da Veja, o Ministério da Saúde informou ainda que os dez medicamentos mais caros para tratamento de doenças raras representaram 87% do total desses quase 1,4 bilhão de reais gastos com a “judicialização da Saúde” em 2018.

De acordo com a Agência Brasil, o custo dos remédios foi um dos motivos pelos quais onze governadores se reuniram com o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, para se queixar de que, ao garantir medicamentos caros a poucos, a Justiça pode acabar limitando o acesso de muitos a tratamentos básicos. Apesar disso, a Justiça se mostrou favorável à necessidade de atender todos os pacientes da rede pública.

Síndrome Hemolítico-Urêmica Atípica e o tratamento

A SHUa é uma doença rara, grave, sistêmica e pode acometer indivíduos de qualquer idade. Em geral, é caracterizada por anemia hemolítica microangiopática, insuficiência renal e trombocitopenia associados à microangiopatia trombótica (MAT) que resulta da formação de coágulos em pequenos vasos sanguíneos que podem levar a complicações em vários órgãos, sendo os rins os mais afetados.

A SHU é tradicionalmente dividida em SHU com presença de diarreia (típica) e sem a presença de diarreia (atípica), menos frequente e mediada pela ativação descontrolada do sistema complemento, um componente do sistema imunológico.

O diagnóstico de SHU atípica é feito por exclusão de outras causas de MAT, por esse motivo é tão complexo. O processo de análise é baseado na apresentação clínica dos resultados clássicos da tríade de anemia hemolítica, mas a triagem de mutações não está amplamente disponível.

O tratamento com Eculizumabe (Soliris), um anticorpo monoclonal para C5, bloqueia a cascata do complemento terminal e, assim, diminui o dano endotelial e a trombose, além das lesões renais.

Outro caso

A história de Gylsa é mais um dos casos de pessoas com doenças raras em Campos. Talvez o mais popular tenha sido o do pequeno Pedro Lorenzo, diagnosticado como AME (Amiatrofia Muscular Espinhal do Tipo 2), um doença genética, rara e hereditária e a segunda que mais mata crianças no mundo. Ela evolui de maneira rápida e vai atrofiando os movimentos musculares e interrompendo a mobilidade, podendo ocasionais a perda da habilidade de falar e respirar. Em 2017, quando tinha apenas 5 anos, a família do menino iniciou uma campanha intitulada “Ame o Pedro” que tinha o objetivo de angariar R$ 3 milhões para o tratamento.

Esse tratamento é feito por uma medicação denominada Nusinersena (Spinraza), que estagna a doença e o paciente pode alcançar marcos como sentar, ter capacidade de chutar, ou até mesmo andar. Na ocasião, para primeiro ano de tratamento, Pedro precisaria de seis doses, totalizando os R$ 3 milhões. A campanha, então, ganhou bastante repercussão nas redes sociais e na imprensa e diversos eventos foram realizados na cidade com o intuito de conseguir essa quantia.

Assim como Gylsa, a família de Pedro também entrou com ação judicial, mas o juiz, em 2017, suspendeu o processo e a única maneira Pedro submeter ao tratamento era comprando a medicação. O tratamento do menino só começou em outubro do ano passado, após os pais, enfim, conseguirem decisão judicial obrigando a concessão.

Recentemente, o Ministério da Saúde anunciou que disponibilizará o medicamento Nusinersena (Spinraza) pelo SUS para portadores de Atrofia Muscular Espinhal Tipo 1, sem que haja a necessidade de os pacientes entrarem com o pedido na Justiça. No entanto, Pedro Lorenzo, que tem o Tipo 2 da doença, não foi beneficiado por essa medida. A medicação para o Tipo 2 custa ao governo federal cerca de R$ 210 mil a dose e, de acordo com o Ministério, os demais subtipos da doença estão sendo analisados dentro de um novo modelo de oferta de medicamentos chamado compartilhamento de risco.