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Coisa rara

Neste artigo, Paulo Cassiano Jr. discute o racismo no Brasil

Artigo
Por Paulo Cassiano Júnior
26 de maio de 2019 - 14h08

1978. Durante um exercício militar, um soldado do grupo de artilharia despenca da corda e cai na lagoa. Ao perceber que Celso “Negão” estava se afogando, um colega desfaz-se do coturno e mergulha para salvá-lo. O ato de bravura rendeu ao aspirante Jair Bolsonaro uma condecoração do Exército e uma convicção: “No Brasil, é coisa rara o racismo”. Para afastar a pecha de preconceituoso que muitas vezes teima em ser impingida ao presidente, a história foi contada em TV aberta, entre risos, à “notável” entrevistadora Luciana Gimenez.

Por aqui, as origens do racismo remontam aos primeiros séculos da nossa história, marcada pela colonização de viés exploratório, pelo genocídio dos povos indígenas e pela escravização de africanos. Tempos depois, o que já estava sedimentado nas relações sociais ganhou substrato teórico com a publicação de teses acadêmicas que tentavam provar, a partir de elementos biológicos e comportamentais, a supremacia da raça branca e a degenerescência como resultado da miscigenação étnica. “Não creio que viemos dos macacos, mas creio que vamos nessa direção”, teria dito Joseph Arthur de Gobineau, célebre filósofo francês.

A mestiçagem que tanto exasperava Gobineau não converteu o ser humano num primata, mas o “macaco” atravessou gerações como afiada flecha da injúria verbal dirigida contra um negro.

Entretanto, o racismo brasileiro nem sempre é expresso por algum ato direto e ostensivo de ódio ou violência, mas está cristalizado em nossa cultura. Ao longo do tempo, ele tem sido travestido e embalado em canções, piadas e expressões da oralidade popular. Dizer que um negro possui “alma branca” é elogio; já repreender alguém com “Não fale assim, que eu não sou tuas nêga!” é símbolo da altivez branca. O amor da mulata incensada pela marchinha de carnaval, cujo cabelo não lhe nega ser “mulata da cor”, só é desejado porque a “cor não pega”.

Mesmo numa sociedade em que a branquitude é hegemônica, ninguém nasce racista, embora rapidamente se aprenda a sê-lo. Um negro vestido de camisa social e gravata costuma ser profissionalmente associado a garçom ou motorista executivo; o mesmo traje em um branco faz pensar tratar-se de um médico ou advogado. A preferência policial pela abordagem a pessoas negras pode ser sintetizada pelo dito vulgar “negro parado é suspeito, correndo é ladrão”.

O mito de que somos uma nação hospitaleira, formada por um povo pacífico e cordial, facilitou a negação do racismo no país, o qual foi naturalizado velada e constantemente. De maneira furtiva, o racismo está embrenhado nas artes, que reservam aos negros a representação de papeis subalternos, assim como na publicidade, movida pelo padrão estético europeu. O “apartheid” nacional existe e é cotidiano, conquanto suas formas de apresentação não raras vezes sejam discretas e ardilosas. Talvez por isso ninguém ache estranho que se indague de um brasileiro negro se ele se sentiu representado por Barack Obama no poder, embora idêntica pergunta não fosse feita a um brasileiro branco sobre Donald Trump. O negro “carrega” a sua raça consigo aonde vai.

É preciso reconhecer o nosso próprio preconceito e não tratar atitudes racistas como simples deslizes. Paradoxalmente, apesar de quase todo mundo considerar haver discriminação racial no Brasil, ninguém admite ser racista (“eu até tenho amigos negros”). Serve-nos o exemplo do ministro do STF Luís Roberto Barroso, que, no pedido público de desculpas feito a Joaquim Barbosa, por tê-lo chamado de “negro de primeira linha”, pontuou ser “sempre boa a oportunidade para enfrentar o racismo à luz do dia, mesmo o que se esconde em nosso inconsciente”.

No Brasil, é coisa rara a humildade.