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Salvações e pecados de uma praça

A São Salvador segue no centro de transformações, tensões e experimentações de Campos

Patrimônio
Por Ocinei Trindade
5 de maio de 2019 - 7h00

Uma praça cheia de problemas e história que atravessa séculos  (Fotos: Carlos Grevi)

Toda cidade tem um marco histórico. Em Campos dos Goytacazes, a praça do Santíssimo Salvador, no ponto urbano mais central, reúne milhares de histórias e situações que não são publicadas em livros ou jornais. Os passantes anônimos ajudam a contar sobre a trajetória do lugar que oscila entre o apogeu e a decadência no decorrer dos últimos séculos. A São Salvador sempre dividiu opiniões. A atual configuração desde 2005 gera críticas, mas há quem elogie. No espaço frequentado por todo tipo de gente há prazeres e problemas. Como na vida.

O pesquisador Leonardo Vasconcellos conta que a imagem mais antiga que se tem da Praça São Salvador é uma fotografia estereoscópica que pertenceu à coleção da imperatriz Teresa Cristina e ao imperador Dom Pedro II. O registro está na Biblioteca Nacional e foi realizado pelo fotógrafo francês Revert Henrique Klumb, no século 19. O prédio da cadeia pública destacava-se na paisagem. Em 1847, na primeira visita do imperador a Campos, a construção carcerária causou estranhamento ao monarca.

Em 1868, Pedro II preparou um roteiro de viagem para a princesa Isabel e o conde D´eu quando estiveram em Campos. “Um lugar com mato e lama e um presídio no caminho de acesso ao Rio Paraíba do Sul”, destacou. Leonardo explica que até o fim do século 19, o presídio ficava onde está a Praça Quatro Jornadas e o chafariz belga atualmente. Em 1879, surgiu uma preocupação com o aspecto da praça. Campos seguiu uma tendência mundial e ganhou tratamento paisagístico. Foram plantadas nogueiras da Índia ao redor da praça para amenizar a temperatura e palmeiras gradeadas.

Em 1872, a Igreja Matriz, o cemitério, além da Santa Casa e da Igreja Mãe dos Homens se destacavam na paisagem, em uma época que não eram comuns jardins e ordenamento em cidades brasileiras ou portuguesas como Lisboa. Em 1896, depois de jardinagem e arborização, a praça tornou-se um centro de convivência e contemplação, inclusive gradeado.

“Nesse período, a praça era chamada de Jardim São Salvador e ganhou destaque como área principal da cidade. O espaço era reservado à elite e os ex-escravos e negros não tinham acesso. Em 1913, as grades foram retiradas e todos puderam desfrutar do local. A praça ajardinada nos anos 1930 deixou de existir. Árvores foram arrancadas porque adoeceram e ameaçavam cair”, revela Leonardo Vasconcellos.

Em 1935, um novo projeto surgiu para marcar o primeiro centenário de Campos como cidade, que antes era chamada de Vila de São Salvador dos Campos dos Goytacazes. O Jardim de São Salvador voltou a ser praça aberta. “Campos é marcada pelas constantes transformações da praça. Estilos foram alternados com a praça vazia ou com árvores recém-plantadas, piso de pedras portuguesas, um monumento ao Soldado Desconhecido feito pelo escultor campista Modestino Kanto, bancos de madeira. Esta paisagem perdurou por cerca de 70 anos.

Antigos registros de imagens da Praça São Salvador (Fotos: Arquivo Nacional)

Em 2004, o prefeito Arnado Viana iniciou a obra da praça atual, que foi concluída em 5 de maio de 2005 pelo prefeito Carlos Alberto Campista em seu curto mandato. Na época, foram gastos R$46 milhões para a construção da nova Praça São Salvador.

Mais antigo registro da São Salvador, século 19, em Campos

“Na minha concepção, a praça pós-gestão de Arnaldo Viana é um equívoco. Temos uma cidade muito quente. É inconcebível tirar as árvores e plantar palmeiras outra vez que não oferecem sombra e conforto térmico. Ali só é possível ficar um período da manhã e à noite. Não é praça de convivência. Na Europa funciona por ser região fria. A São Salvador atual foi inspirada em uma praça de Nice, na França”, compara Leonardo.

Praça histórica

A historiadora Sylvia Paes diz que a Praça do Santíssimo Salvador quando Vila era um campo aberto, entre a igreja matriz e o Rio Paraíba do Sul, coberto de mato ou lama. Contudo, era o palco principal para apresentações de bandas musicais e festas populares como a de São Salvador e cavalhadas. Além de recepções ao imperador Dom Pedro II que esteve em vários momentos em Campos.

O ordenamento paisagístico surgiu com a República, por volta de 1906. “O capitão Carneirinho (Francisco de Paula Carneiro), importante empreendedor local, dono do Trianon e de outros teatros foi responsável por uma série de fotos coloridas manualmente na Holanda. Essas fotos retratam a praça arborizada e cercada por grades que hoje estão no Cemitério do Caju. Essa praça era parecida com a do Campo de Santana, no Rio de Janeiro, capital do Brasil à época”, ressalta. Em 1935, o engenheiro Coimbra Bueno também foi contratado para embelezamento da cidade que estava completando 100 anos.

“Em cada um desses momentos, a Praça São Salvador sofre intervenções menores ou maiores, de acordo com o gosto da época. A última transformação foi de um escritório de arquitetura do Rio de Janeiro que deu à bucólica praça uma identidade européia. Para nós é difícil usufruir dela em dias quentes e chuvosos, mas ela ainda é muito acolhedora nas noites frescas e iluminadas de verão. Ela vai continuar a se transformar, seguindo e contando nossa história, de cada uma das gerações que dela usufruiu. Vamos continuar sentindo saudades de tempos que não vivemos, e criticando o atual uso que se faz dela. Parte de nossas histórias individuais e coletivas”, diz Sylvia.

O primeiro plano-diretor da cidade, de 1992, limita o gabarito das construções. As mais altas datam antes deste ano. As mais recentes têm limites de altura menor. Os planos-diretores que se seguiram, assim como as Leis Orgânicas, sustentam um gabarito limitador do Centro Histórico, garantindo sua funcionalidade e a fluidez da ventilação.

“A praça continuará reunindo os mais diversos grupos como hoje: o skate, o funk, os evangélicos, os católicos, as bandas de música e de rock, a arte somadas às brincadeiras infantis, aos moradores de rua e aos loucos. Assim como a praça é um palco que se transforma, o que está em sua volta se transforma também”, destaca a historiadora.

Problemas e soluções

É visível a degradação da Praça São Salvador nos últimos anos. Postes e bancos quebrados, fiação elétrica exposta, postes e lâmpadas danificados, chafariz e fontes de água afetados são alguns dos problemas apontados em várias reportagens do Jornal Terceira Via. A prefeitura de Campos lançou o projeto Viva o Centro com a substituição temporária das luminárias. Réplicas de modelos históricos passam por restauração. “Os postes laterais também serão substituídos e darão lugar a novos postes com braços duplos de luz, iluminando a praça e rua. Todos os serviços devem ser finalizados em até cinco meses. Calçadão, canaletas e bicicletários serão revistos em novo ordenamento do Centro”, explicou a subsecretária de Governo, Daniela Tinoco.

O povo na praça

Luiz Barreto trabalha como jornaleiro na praça há mais de 40 anos (Fotos: Carlos Grevi)

O jornaleiro Luiz Gomes é filho de Manoel Gomes, primeiro proprietário da banca de jornais instalada em frente ao prédio dos Correios. “Só eu tenho 40 anos de atividades na praça. Lembro da época quando o bonde passava por aqui. Antes da última reforma, a praça era bem melhor, natural e arborizada. Durante a obra, por quase um ano não pude trabalhar. O acesso foi fechado. Hoje, o movimento de clientes caiu e os moradores de rua são um transtorno. O cheiro de urina fica impregnado”, queixa-se.

Williams Cabral deixou São Paulo para viver em Campos; na praça, vende artesanatos

Trabalhadores de rua também encontram na praça oportunidade de renda. É o caso do artesão paulista Willians Cabral. Ele confecciona peças com folhas de coqueiros. “Há três anos moro em Campos, onde me casei e tive uma filha. Vivo da minha arte e pelo menos duas vezes por semana exponho na São Salvador. É uma forma de ganhar de R$10 a R$20 por peça”, diz.

A moradora de rua e cadeirante Ana Neri Nobre vive nos últimos dois anos na São Salvador. Ela e o marido se juntam a outras pessoas que dormem no entorno da praça. “Eu durmo debaixo da marquise do Banco do Brasil, é mais seguro. A praça é nossa casa. Vivia em Muriaé, mas sem trabalho e onde morar, viemos para cá. Vendo bala e meu marido vigia carro. A gente vai vivendo”, conta.

Ana Neri Nobre é moradora de rua e vive na Praça São Salvador há mais de 2 anos (Foto: Carlos Grevi)