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Entrevista: Arlete Sendra, senhora das palavras fotografadas

Professora e pesquisadora há décadas, ela faz registros de vida valendo-se de escrituras, leituras e produções textuais

Entrevista
Por Ocinei Trindade
28 de abril de 2019 - 0h01

Professora e escritora, Arlete Sendra estreia na dramaturgia com o texto da peça “Eu fui Macabéa”, inspirada em Clarice Lispector (Foto: Silvana Rust)

Passos decididos atravessam corredores de escolas e salas de aulas; pela Universidade Estadual do Norte Fluminense, pelas estantes das livrarias e bibliotecas, pela vida de incontáveis ruas. O caminho é longo. Arlete Parrilha Sendra nasceu em terras de Cambuci, no Rio de Janeiro, na primeira metade do século XX. Poderia ter nascido em tempos ainda mais contemporâneos, por conta de sua capacidade de interagir com o presente. Apesar dos cabelos brancos de soberania, sua jovialidade e inquietude impressionam.

Arlete é a mãe de Carlos Vitor, Cláudia e Paula; a sogra de Simone, Paulo e Renato; a avó de Raiani, Júlia e Alice; e a bisavó de Pedro Henrique. Trata-se de uma mulher conectada pelos meios digitais, analógicos, impressos ou virtuais, não importa. “Minhas netas e o bisneto da geração alfa nos inserem no século XXI. Em relação de afeto, Pedro Henrique é o menino que caiu do céu”, diz a matriarca orgulhosa do herdeiro. Graduada em Letras Clássicas – Português, Latim e Grego, Arlete Sendra cursou mestrado e o doutorado na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio). Já o seu pós-doutorado foi realizado em Salamanca, Espanha. Depois de dedicar-se aos textos literários e acadêmicos, ela experimenta o teatro como autora por meio do espetáculo “Eu fui Macabéa”, texto adaptado da obra “A hora da estrela”, de Clarice Lispector. A peça fica em cartaz no Teatro de Bolso, em Campos, de 2 a 5 de maio. Arlete Sendra é uma mulher para ser vista, ouvida e lida.

 

A senhora é muito respeitada e admirada no meio acadêmico e educacional. Quantos anos de jornada e como faz para manter essa jovialidade e interesse pelo ofício?

Estou no magistério há 58 anos. Atualmente em processo de aposentadoria. Trabalhei do primário à pós-graduação. Gosto do diálogo com as gerações que aportam às salas de aula, razão pela qual meu espírito não se enrijeceu. Nunca fui uma mulher datada. Tentei estar em sintonia com as várias gerações que chegavam. Algumas vezes, consegui. Gosto de estar no sempre que abraça os múltiplos processos de transição. Conviver com jovens energiza, rejuvenesce. E ter um projeto de vida justifica o viver.

Em 1994, se não me engano, te entrevistei para a televisão com a saudosa professora Rita Maia promovendo literatura em um shopping da cidade. Como é promover leitura e literatura neste século?

Lembro-me deste trabalho. Mas não se repetiu. A professora Rita Maia deixou marcas profundas por onde passou. A leitura, hoje, está ampliada. Antes acreditávamos que se centrava em livros e revistas. Hoje, com a presença dos estudos humanísticos, são muitos os aportes para o conhecimento.

A gramática da linguagem nos fez ler filmes, fotografias, modas, cores, arranjos, músicas, fisionomias, olhares e outros. Talvez surpreenda dizer que hoje se lê mais que ontem se leu. Bancas de revistas são espalhadas em todos os espaços. Ler em terceiridade como propõe o semioticista C. S. Peirce realmente não acontece. Livros de literatura e ciência não são procurados. Mas a autoajuda tem seu espaço. E o futebol garante tiradas de jornais.

A senhora pertence à Academia Campista de Letras. Como observa as instituições em plena era digital, onde as redes sociais ocupam lugar dos livros e jornais?

Componho o quadro da Academia Campista de Letras desde 2003. E me honra muito esta “imortalidade”. Por duas gestões fui sua presidenta. Em outro momento, obviamente, com o apoio da Prefeitura Municipal de Campos, governo Arnaldo Viana e Alexandre Mocaiber, tínhamos, mensalmente depositada, uma verba que nos permitiu editar livros dos acadêmicos, publicar o jornal Palavrarte, editar a Revista da Academia. Viveu a Academia, neste momento, efervescência cultural. Hoje a Academia continua sendo nossa grande referência. E às segundas-feiras oferece, platonicamente, banquetes culturais.

Sendo imortal academicamente, como é lidar com a morte física? A escritora imortal da ABL Nélida Piñon disse que pensa todos os dias nesse assunto. O que acha disso?

A morte sempre foi presença em minha vida. Eu a conheci aos 06 (seis) anos com a morte de minha mãe. Aprendi que ela traz dor. Aprendi que traz saudades. E que saudade é ponte. E une. Ela tem sido generosa comigo. Hoje somos companheiras. Em linguagem, absolutamente abstrata, conversamos. – Agora não dá, digo a ela. Aquele projeto não está terminado. Estou iniciando outro. Espere mais um pouco. Afinal, você me terá em definitivo. Na verdade, o depois me assusta. Não há evidências comprobativas sobre o lado de lá. Mas acredito na força cósmica. E força cósmica para mim é o outro nome de Deus.

O Brasil conta com novos governos federal e estaduais. No sentido político, econômico e educacional, que perspectivas a senhora tem desse momento no Rio de Janeiro e no país?

O pensar sócio-político deste momento, em todas as esferas, distancia-se tanto do meu olhar a vida, do meu pensar o Brasil, do futuro no qual investi, que não posso avaliar as acontecências dos hojes que se sucedem. Repito o poeta português: “não vou por aí”. Até e enquanto puder abrirei outros caminhos.

A senhora tem uma produção significativa de textos escritos. Pode falar sobre suas publicações?

Sempre gostei de fotografar com palavras minhas cercanias e errâncias. Meus escritos me escrevem. Tenho diários e os alimento. Quando escrevi sobre, foram-se os coronéis, ficaram os lobisomens, de José Cândido de Carvalho, quis homenagear Campos, a Campos que me acolhe. Depois vieram outros livros voltados para estudos ensaísticos como Embornal: de ensaios literários para leituras a granel. E ao escrever… quando o depois chegar, falei de momentos que permanecem em minha interioridade. Dou meu aval a Joseph de Maistre: “um homem sozinho sempre está em má companhia” por isto faço dos livros meus companheiros. Sou viciada em livros que vejo como energéticos. Não aconselho a ninguém me emprestar livros: nunca os devolvo. Considero-os doação e assim os registro: doado por… e dato.

Agora em maio, a senhora estreia no teatro ao adaptar “A hora da estrela”, de Clarice Lispector, com o espetáculo “Macabéa”. Comente sobre essa experiência.

“…Eu fui Macabéa” não nasceu para teatro. Preparei para publicação a trilogia Elas são transtemporais, título, talvez, provisório, enfocando três perfis: Macabéa, encenação agora em maio; Capitu, em “Traídas e traidoras somos todas capitus” vendo em Capitu, a mulher que a cultura submete, em cena em junho; e “Diadorim, a dor que mora em mim”, encenação em julho. Guardei os textos, e ao apanhá-los, dois meses depois, vi que, talvez, pudessem ser encenados. Submeti-os a dois amigos que têm alma cênica, Fernando Rossi e Fabio Guilherme que os aprovaram. Tenho outros textos em elaboração, mas isto é para quando 2020 chegar.

O que Macabéa, a personagem-título, nos oferece para pensarmos e agirmos?

Para responder a você, cito Guimarães Rosa: “Clarice, eu não leio você para a literatura. Leio para a vida”. Clarice nos faz sair da plateia onde nos assistimos e assistimos o teatro da vida e nos faz entrar em nossos camarins para que nos vejamos no ato preparatório do viver, em plena ação. E não nos faz concessões. A alma é o tópos onde sua narrativa se conta. E o “eu”, em permanente ação, é o personagem que vive entre labirintos existenciais. Não se sai impune de sua leitura. Clarice fala a nossa razão sensível e questiona nossas estabelecidas certezas.

Na obra de Clarice Lispector, há humor apesar da angústia (e vice-versa), concorda? Clarice te inspira mais ou te perturba mais? Como é sua relação com a escritora?

Concordo, plenamente com você, no que concerne ao humor em Clarice. Como todo humor há nele dois tempos: no primeiro você ri, quando ela diz que “vomitar é luxo”. No segundo momento, você se surpreende pensando, por que “luxo” e onde está o luxo do “vomitar”. E quando entramos nos antecedentes deste luxo, uma sofrência nos envolve. A palavra em Clarice é sempre polimórfica. Ela é portadora de mitologemas que estão presentes em todas as vidas. O humor em Clarice é trágico, por mais paradoxal que possa parecer. Clarice nos impede o pensar pronto. E nos leva a buscar a alma do mundo. Ela me angustia.

Outros autores te inspiram? Quais e por quê?

Entre os autores presentes em meu ler, cito Machado de Assis, que segundo alguns estudiosos está nas entrelinhas de Sobrados e mucambos de Gilberto Freire, a conferir. Leio Clarice Lispector que me obriga a tomar chazinhos de erva-doce e camomila. Guimarães Rosa que está em minha dissertação de mestrado e em minha tese de doutoramento. Gosto de ler mitologia. Encanto-me com o Zeus, Atená, com Eros e Psiquê e muitos outros mitos. Leio Joel Mello, Adriano Moura, Aristides Soffiati, Fernando Leite e citando-os, cito todos/as que escrevem nesta terra goitacá. Cito Bauman, Harari, Mia Couto, Hatoum, Manoel de Barros, Fernando Pessoa e outros, e outros. Eu gosto de ler. As livrarias testemunham.

Fala-se muito em revolução e transformação por meio das artes, da literatura, das reflexões provocadas por escritores e atores. Como podemos lidar com essas mudanças de tempos?

Os momentos de transição são sempre impactantes, mas este é especial. Há uma mudança radical de paradigmas e nenhum momento da história registrou algo semelhante. O ritmo acelerado do XXI desequilibra. Vivemos inversões: ontem os homens tinham o controle da tecnologia; hoje a tecnologia tem o homem. O principio socrático ”conhece-te a ti mesmo” perdeu sua substancialidade. Tememos que nossos computadores sejam hackeados, mas são os homens os objetos dos hackers para jogos dúbios. Globalizamo-nos: somos cidadãos do mundo. Sonhos e esperanças tornaram-se bagagens descartáveis e, paradoxalmente, imprescindíveis. Diante dos avanços que presenciamos, nos tornamos hominídeos.

Como profissional da escrita e da educação, que avaliação faz de nossa cultura e sua capacidade de uso? Avançamos, retrocedemos ou em empacamos?

Estudar o processo educativo é uma de minhas metas. Entrar na infância desta era digital é o grande desafio. Conhecer como se dá o processo de gnose desta geração alfa e dialogar com o adolescente, conhecer suas inquietudes, ver como se dá sua inserção nas terras do amanhã é instigante. E é vendo-os, observando-os, que escrevi os vários rostos da educação, guardado em arquivos de meu computador. Vivendo sob o impacto das redes sociais, esta geração não está aprendendo o dialogar, o “viver com” em sintonia com a arte do conviver. Abortaram seu “eu” que está moldado pelo outro. Como impressionar o outro? O que o outro vai achar? Pensar? E enquanto o outro vai determinando as ações, o como ser, um vazio existencial, uma ausência de identidade vai sendo ampliada. Lembramos Rimbaud, em tradução: “eu é um outro”. Introjetamos o “outro” em nós e passamos a ser o que não somos.

Formar novos leitores te interessa? Como observa as novas gerações e sua ligação com os livros e leitura? Em sua família consegue influenciar os mais jovens?

Centrando-me nos múltiplos suportes que nos levam a olhar o mundo, vejo que somos contumazes leitores. Interesses divergentes, mas em convergências, todos lemos e lemos muito: filho, filhas, netas e o bisneto já em busca de seus interesses. Ouvimos a voz que nos chega: leia-me (decifra-me) ou te devoro. E vemos que muita gente está sendo iguaria para o lobo mau desta nossa contemporaneidade.

Como gosta de ser reconhecida e lembrada? O que espera do futuro?

Quando eu não mais “ser”, talvez possam dizer: acreditou que enquanto houvesse vida, não haveria ponto final.