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Mulheres continuam sendo espancadas e assassinadas em Campos

Crimes recentes levantam discussão sobre a rede de proteção à mulher na cidade, atendimento na delegacia e estatísticas de violência

Geral
Por Thiago Gomes
7 de abril de 2019 - 0h05

Emanuelle passou por novo exame de corpo de delito na última quinta-feira (Foto: Carlos Grevi)

Emanuelle Porto, 25 anos, e Tamires Ramos Martins, 23 anos, foram vítimas de violência contra a mulher, cujos casos ganharam repercussão na última semana em Campos dos Goytacazes. Emanuelle teve o tímpano esquerdo perfurado e denunciou o ex-companheiro, suspeito das agressões, à Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam). Já Tamires não conseguiu ir tão longe. Ela morreu em uma calçada do bairro de Donana, na Baixada Campista, após levar três tiros, no caminho da escola para casa. O crime também tem como principal suspeito o ex-companheiro, que era considerado foragido pela Polícia Civil até o fechamento desta edição.

Só na última quarta-feira (3), quando a equipe começou a preparar esta reportagem, os jornalistas do Terceira Via se depararam com cinco casos envolvendo violência contra a mulher, que chegaram ao Instituto Médico Legal de Campos (IML), em um período de apenas seis horas. As estatísticas apontam que a desigualdade de gênero no Brasil expõe as mulheres a uma rotina que inclui os mais variados tipos de violência, como a física, a sexual, a moral e a psicológica: segundo o Conselho Nacional de Justiça, no ano passado, 536 mulheres foram vítimas de algum tipo de violência a cada hora. Foram 4.461 novos processos de feminicídio que chegaram ao Poder Judiciário em 2018.

Tamires foi assassinada com três tiros (Foto: reprodução/Facebook)

Tamires

De acordo com testemunhas, Tamires Ramos Martins, de 23 anos, foi morta a tiros por volta das 22h de terça-feira (2). Ela era aluna do Colégio Estadual Desembargador Álvaro Ferreira Pinto, de onde havia saído minutos antes do crime. A vítima foi até uma lanchonete na companhia de amigas e lá foi abordada pelo suspeito, que chegou em um carro preto.

Ainda segundo as testemunhas, o homem seria ex-companheiro de Tamires e teria tentado falar com a vítima, mas ela não quis conversar e apanhou sua bicicleta para deixar o local. O suspeito, então, a teria seguido e efetuado diversos disparos de arma de fogo. Dois tiros atingiram o peito de Tamires e outro, um dos braços. Ela morreu antes da chegada do socorro e seu corpo foi sepultado na quinta-feira (5), no Cemitério de Goitacazes.

A tia de Tamires, Jorgiana Ramos, contou que a sobrinha vinha sendo ameaçada pelo ex-companheiro. “Ele acabou com a vida de uma família, tirou a vida da minha sobrinha só porque ela terminou o relacionamento. Tamires deixou uma filhinha de 6 anos que ela criava sozinha. Um criminoso interrompeu o sonho de uma menina de 23 anos com três tiros”, lamentou a tia.

A princípio, o caso foi registrado como homicídio, mas as investigações apontam para o crime de feminicídio. O suspeito era considerado foragido e até o fechamento desta edição.

Emanuelle denunciou ex-companheiro por agressão (Foto: Carlos Grevi)

Emanuelle

A agressão denunciada por Emanuelle Porto aconteceu no dia 31 de março. Seu ex-companheiro, Roger Gonçalves de Freitas, de 37 anos, mais conhecido como DJ Moranes, chegou a ser preso em flagrante, mas foi liberado horas depois, mediante pagamento de fiança de R$ 1.000. A fiança foi fixada com base em um laudo do Instituto Médico legal (IML) de Campos, atestando que a vítima havia sofrido apenas agressões leves.

O casal morou junto por cerca de quatro anos e estava separado há 15 dias, quando houve o caso de violência que resultou no tímpano esquerdo perfurado, conforme atestou o Boletim de Atendimento Médico (BAM) do Hospital Ferreira Machado (HFM). O atendimento hospitalar, que contradisse o laudo do IML, foi feito após o exame de corpo de delito.

Emanuelle conta que uma discussão entre o casal começou no domingo de manhã, quando o DJ apareceu no apartamento em que ambos moravam com o filho até a separação. O imóvel é do pai do ex-companheiro e, por isso, Moranes tinha a chave. A discussão evoluiu para agressão verbal, que rapidamente virou agressão física. A vítima narra que, enquanto o ex-companheiro foi à cozinha para pegar um objeto e dar continuidade à agressão, ela se trancou no banheiro.

“Não sei qual objeto foi este, mas ele o usou contra a porta do banheiro durante o ataque de fúria. A madeira ficou cheia de furos e marcas. Eu apanhei bastante, fui xingada e humilhada. Também fui ameaçada de morte, ele disse várias vezes que iria me matar. Tinha resolvido não me pronunciar, mas precisei falar quando ouvi um áudio dele, que circulou pelo WhatsApp, me difamando. Esse áudio tentava inverter a situação, colocá-lo como vítima e a mim como a culpada. Por isso, apenas por isso, resolvi me pronunciar e estou aqui concedendo esta entrevista”, disse.

Além da agressão, Emanuelle narra que acabou vítima do sistema que deveria existir para proteger mulheres que passam por situações como a dela. “O sistema é muito falho e começou a falhar comigo ainda na delegacia, durante o atendimento. Essa falha seguiu no IML, porque, apesar de ter me queixado de fortes dores no ouvido, o perito não fez nenhum tipo de observação no seu laudo, que acabou contribuindo para que a delegada fixasse a fiança dele. Isso sem mencionar a medida protetiva, que demora muito a sair. A gente vê casos de mulheres que morrem à espera dessa medida protetiva. É revoltante”, desabafou Emanuelle.

A vítima passou por novo exame de corpo de delito na última quinta-feira.

A luta por um atendimento mais humanizado

A psicóloga Conceição Gama, que integra o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher (Comdim) e faz parte do Movimento Unificado de Mulheres de Campos, alerta para a importância do primeiro atendimento à vítima de violência doméstica. Segundo Conceição, dependendo da abordagem realizada na delegacia, a mulher pode acabar sofrendo nova agressão durante o atendimento. “Em alguns casos, mandar esta mulher para casa, pode ser uma sentença de morte”, advertiu.

O atendimento prestado na Deam de Campos e a rede de atendimento geral no município foram tema de uma assembleia extraordinária do Movimento Unificado de Mulheres de Campos, na semana passada. “O Coletivo recebeu várias reclamações de mulheres que passaram pela Deam de Campos e percebemos que existe uma insatisfação em relação a este atendimento. O simples fato de perguntar “você tem certeza de que quer seguir com a denúncia?” pode desencorajar a vítima. E é muito importante que a mulher denuncie o agressor”, comentou a conselheira.

Conceição lembra que, no caso de Emanuelle Porto, a Deam chegou a emitir nota oficial à imprensa afirmando que a vítima tinha sofrido apenas agressões leves e negando que a membrana timpânica havia sido perfurada. “Divulgar essa nota praticamente defendendo o agressor, baseada apenas em um laudo superficial do IML, foi uma atitude precipitada”, analisou a integrante do Comdim.

Emanuelle também reclamou do atendimento. “Desta vez, não bastasse toda a humilhação que passei até conseguir ajuda da minha família e dos policiais militares, o atendimento prestado pela Delegacia da Mulher foi o pior possível”, destacou.

A delegada titular da Deam, Ana Paula Carvalho, disse que o primeiro exame pericial no IML foi determinante para qualificar o crime como lesão corporal leve. “O médico legista avaliou a condição física da vítima e não havia nenhuma lesão grave aparente. Emanuelle chegou a se queixar de uma dor no ouvido, mas a perícia não tem equipamentos suficientes para atestar, por exemplo, uma perfuração de tímpano. Essa confirmação veio um dia depois do crime, quando a vítima foi submetida a quatro exames médicos feitos por especialistas no Hospital Ferreira Machado. A nota emitida por nós foi baseada no inquérito feito antes mesmo da vítima ir ao hospital. Como houve esse fato novo no dia seguinte ao crime, estamos dando continuidade ao inquérito policial e, por isso, ouvimos novamente a vítima e vamos intimar o suspeito”, justificou a delegada.

O que fazer após uma agressão?

A Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência – Ligue 180 – pode, segundo Conceição Gama, ser um caminho para buscar orientação. Também pelo telefone, no número 190, a mulher pode solicitar ajuda. Neste caso, a presença da Polícia Militar no local do crime facilita o flagrante do agressor.

Os três Centros de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) na cidade também podem oferecer ajuda. “As mulheres que vêm sofrendo violência e estão com receio de denunciar o companheiro à Deam, seja por medo, insegurança, ou qualquer outro motivo, podem procurar os Creas”, esclareceu Conceição.

Na avaliação da conselheira, a rede de proteção em Campos ainda precisa de um Centro Especializado em Atendimento à Mulher (Ceam). “Em Campos, os Creas funcionam como um substituto, mas o ideal seria um Ceam, com a presença de advogados, assistentes sociais e psicólogos para prestar o primeiro atendimento”, analisou.

Rede Municipal

A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social (SMDHS) informou que oferece às mulheres, vítimas de violência doméstica, atendimento jurídico por meio da Superintendência de Justiça e Assistência Judiciária, além do atendimento especializado nos Creas.

“A SMDHS dispõe, ainda, de serviço de acolhimento às mulheres vítimas de violência, protegendo sua integridade física e prestando apoio psicológico e social à vítima, por meio da Casa Benta Pereira, que possui parcerias para reinserção dessas mulheres no mercado de trabalho. A SMDHS promoveu, no último dia 22, o “I Fórum Municipal de Direitos da Mulher”, no auditório da prefeitura, ocasião em que foram debatidas diversas diretrizes para a implantação do Ceam. O fórum contou com a participação de representantes da Delegacia da Mulher (Deam), do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (Cedim), Conselho Municipal dos Direitos da Mulher (Comdim) e representantes da secretaria. Apesar de o município ainda não dispor de um Ceam, todos os atendimentos que são próprios desses centros, são oferecidos pela prefeitura de Campos, através da secretaria, que também articula atendimentos em outras áreas, como a saúde, educação e etc”, disse o órgão em nota.

Manifesto da OAB de Campos

Diante dos frequentes casos de violência contra a mulher, na última semana, em Campos, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), 12ª Subseção do Rio de Janeiro, divulgou nota de repúdio. “As constantes notícias que versam sobre violência contra as mulheres demonstram ser urgente e necessária a desconstrução dos estereótipos machistas e o debate de conscientização sobre a discriminação da mulher na sociedade brasileira, para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Os índices de violência contra a mulher são estarrecedores e atingem milhares de mulheres no Brasil”, destacou a OAB.

Denuncie!

“Qualquer pessoa pode denunciar uma agressão em andamento. Não precisa ser necessariamente a vítima. Amigos, vizinhos que ouvirem gritos e pedidos de socorro também devem ligar para o 190 e solicitar a presença da polícia”, orientou a conselheira Conceição Gama.

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