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Os ninhos dos urubus

Neste artigo, Paulo Cassiano Jr. critica a impunidade por trás dos episódios de Brumadinho e do Ninho do Urubu

Artigo
Por Paulo Cassiano Júnior
17 de fevereiro de 2019 - 13h06

De todos os absurdos relatados (e foram muitos!) sobre o incêndio que carbonizou dez atletas adolescentes do Flamengo, no interior de um contêiner ilegalmente instalado no Ninho do Urubu, nada me chamou mais a atenção que a notícia de que o centro de treinamento (CT) do clube fora autuado nada menos que 31 vezes por estar em atividade sem alvará de funcionamento. Convém repetir por extenso para evitar engano: trinta e uma vezes!

Até agora, dirigentes do Flamengo e autoridades municipais guardam eloquente silêncio sobre esta gravíssima questão: por que o CT funcionava sem autorização? Por que nenhuma providência efetiva foi tomada para a sua interdição, ante a debochada recalcitrância do clube? Ave que se alimenta de morte, o urubu fez ninho no Flamengo.

Perspicazes e oportunistas, urubus também têm sobrevoado Brumadinho, pacata cidade mineira que chora a abrupta perda de seus filhos, arrastados e soterrados pelo caudaloso rio de lama de rejeitos que irrompeu, desgovernado, de uma barragem da Vale. Um relatório interno da mineradora, datado de 3 de outubro de 2018, já advertia para o risco de colapso da represa, cujas chances de rompimento eram duas vezes maiores que o nível máximo tolerado pela política de segurança da própria empresa. O documento foi ignorado. Pelo lucro, “Vale” tudo.

Infelizmente, o Ninho do Urubu e Brumadinho não são fatos isolados. Basta recordar a noite do “réveillon” de 1989, quando 55 pessoas se afogaram na Baía de Guanabara depois do naufrágio do “Bateau Mouche IV”, que transportava 142 passageiros, mais de duas vezes a lotação permitida. Ou o edifício Palace II, construído com erro de cálculo estrutural e material de qualidade duvidosa, o qual precisou ser implodido após ter desmoronado parcialmente duas vezes, e matado oito pessoas. Ou a boate Kiss. Ou Mariana. Etc. etc. etc.

Não por acaso urubus proliferam tanto no Brasil, cuja Justiça caminha a passos de cágado e age com brandura invulgar. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, cada sentença consome, aproximadamente, 4 anos e 4 meses (dados da Associação Americana de Advogados apontam que um processo leva 2 anos para ser concluído lá). Em média, a permanência de uma pessoa na prisão em nosso país é de 367 dias, ao passo que, nos Estados Unidos, esse prazo é de  2.952 dias. Ou seja: aqui se leva mais que o dobro do tempo para se condenar e, quando isso acontece (aleluia!), a sanção é oito vezes mais amena! No Brasil, a impunidade (também) veste toga.

A irresponsabilidade de gestores, somada à omissão do Estado, forma a equação perfeita para a consumação de crimes. A convicção da impunidade é a garantia da reincidência. O fogo do CT do Flamengo e a lama da Vale são apenas disfarces de uma realidade batida: se os envolvidos são ricos, quase nunca acontece nada (na melhor das hipóteses, tranca-se a porteira arrombada só para criar sensação de segurança, até que, hipocritamente, todos aguardemos o agir do próximo delinquente).

Para dar início à mudança, talvez convenha deixar de chamar crime de tragédia. O que aconteceu no “Bateau Mouche”, no Palace II, na boate Kiss, em Mariana, em Brumadinho e no Ninho do Urubu foram crimes, não “apenas” tragédias. Por estas, há lamento e choro; por aqueles, punição.

Em tempo: nove dias após o incêndio, o CT do Flamengo vai muito bem, obrigado. Continua funcionando normalmente. Sem alvará.