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Saúde mental: quem se importa?

Hospital Psiquiátrico Dr. João Viana, com 71 anos de assistência, vive hoje a mais dura crise financeira e ideológica de sua história

Campos
Por Redação
16 de setembro de 2018 - 0h01

O João Viana, que antes era abrigo, virou unidade hospitalar e enfrenta grandes dificuldades (Silvana Rust)

Se a saúde mental é hoje um tema delicado e, por vezes, incômodo, há 71 anos pensar a respeito das doenças psiquiátricas era um ato de ousadia e coragem. Refletir quanto aos possíveis tratamentos para essas enfermidades da mente era, então, tarefa para poucos. Contudo, mesmo diante de um assunto ainda obscuro, um grupo de campistas, sem formação médica, aventurou-se por esse caminho e criou as bases para o que hoje chamamos de Hospital Psiquiátrico Espírita Dr. João Viana. Esse, que já foi referência na área em todo o Estado do Rio de Janeiro, vive hoje, após 71 anos recém-completados de permanência e resistência, o momento mais crítico de sua história.

Ao longo dos anos foram muitas as situações de desespero que colocaram o Hospital — antes chamado de “Abrigo”
— nas pautas da imprensa. Falta de reajustes; atraso nos repasses municipais e federais; dívidas; greve de funcionários; fechamento do ambulatório; etc. Agora, a conjuntura é ainda mais dramática uma vez que o outro hospital que também prestava esse atendimento aos pacientes psiquiátricos fechou as portas em 2017 e os pacientes que lá estavam tiveram de ser transferidos para o único hospital que restou.

Acontece que a unidade não assiste somente campistas, mas os necessitados que vêm de outros 35 municípios do estado do Rio. Para se ter uma ideia, apenas 30% dos internos são de Campos. Esse talvez seja o principal entrave da
administração, uma vez que os governos dessas cidades não contribuem financeiramente para manter estes pacientes.

Além disso, o Ministério da Saúde repassa apenas R$ 49 por paciente internado antes de 2018 e, após a revisão da tabela, R$ 79 para os que que deram entrada no hospital recentemente; valor que estaria aquém do mínimo necessário, que seria de R$ 160.

Hospital
atende 80 pacientes de Campos
e outros 35 municípios (Foto: Silvana Rust)

Hoje, o Hospital Psiquiátrico abriga 80 pacientes e conta com 77 funcionários — entre médicos, enfermeiros e toda
a equipe multidisciplinar. Os gastos com medicamentos, por exemplo, ultrapassam os R$ 10 mil mensais; com a alimentação, R$ 30 mil; e, embora mais de 20 colaboradores tenham sido demitidos nos últimos meses, quitar a
folha de pagamento é ainda o principal desafio, porque a quantia chega a R$ 220 mil todos os meses. Além disso, as
dívidas de indenização e FGTS dos funcionários que foram desligados somam R$ 600 mil.

A oferta de serviços de Saúde, incluída a de cunho psiquiátrico, é incumbência do governo municipal, mas quando ele não cumpre esse requisito, firmam-se contratos com unidades terceirizadas a fim de atender à população. É o que ocorre no caso do Hospital Psiquiátrico. Assim, a prefeitura é responsável por firmar contratos e repassar tanto a verba federal, do SUS, quanto a contrapartida municipal.

Hoje, a prefeitura de Campos paga 63% em cima do que rege a tabela do Sistema Único de Saúde para cada paciente.
Mas esse pagamento só abrange os internos residentes de Campos, que são 30% da clientela do hospital. Os serviços
prestados aos outros 70% são mantidos apenas com a verba federal, que é ínfima diante do quadro financeiro da unidade. Além disso, na transição dos governos que administram a Prefeitura de Campos, restaram R$ 160 mil a serem pagos ao Hospital Dr. João Viana, que até hoje não recebeu uma previsão de quando essa quantia será paga. “Além do mais, essa contrapartida municipal é repassada com atraso, o que repercute no pagamento dos funcionários. Em setembro, por exemplo, paguei o salário de julho.  por isso que eles se revoltam e com razão”, explicou o diretor da unidade José Rolando.

Procurada pela equipe de reportagem do Jornal Terceira Via, a Secretaria Municipal de Fazenda informou por meio
de nota que a prefeitura vem tentando regularizar todos os repasses, de acordo com a viabilidade financeira do município. O órgão lembrou ainda que, “no início da atual gestão, havia um déficit de aproximadamente R$ 57 milhões mensais e menos de R$ 1 bilhão de receita municipal, além de uma dívida de mais de R$ 2,4 bilhões, incluindo o empréstimo com a Caixa Econômica Federal, deixada pela gestão passada”. Quanto à dívida da prefeitura com o Hospital Dr. João Viana, deixada pela gestão passada, a secretaria disse que “é necessário
que sejam concluídos todos os trâmites administrativos para que seja efetuado o pagamento”.

José Rolando lembra os momentos de apogeu do hospital e lamenta a crise atual (Foto: Silvana Rust)

Ambulatório
Um dos serviços prestados pelo Hospital Dr. João Viana é o atendimento ambulatorial. Até setembro de 2017, as consultas eram gratuitas, financiadas por recursos públicos. Mas, com os constantes atrasos no pagamento e dívidas cada vez maiores, a direção optou pelo fechamento do ambulatório. Somente em março deste ano a prefeitura
de Campos decidiu renovar o contrato ambulatorial, mas os valores específicos para esse serviço não foram repassados.

Em agosto deste ano, diante dessa conjuntura, a direção decidiu reabrir o ambulatório, mas os atendimentos passaram a ser “sociais” com valores entre R$ 30 e R$ 60, revestidos para ajudar a manter o hospital. “Sabemos que a maior parte dos necessitados não tem condições de pagar sequer R$ 30, mas essa foi a alternativa que nos restou”,
considerou Rolando.

Permanência e resistência
A história do Hospital Psiquiátrico Espírita Dr. João Viana começou em 1947, quando um grupo associado à Liga Espírita de Campos soube que havia seis pessoas com doenças psíquicas na comunidade da Coroa e que não tinham
assistência. Sensibilizados, decidiram comprar um imóvel, onde hoje está situado o hospital, e abrigaram esses enfermos. O objetivo era oferecer tratamento espiritual e alimentação, mas a notícia foi parar nos jornais da época, gerando uma demanda inesperada.

Foram muitos os pedidos de socorro que chegaram até o grupo que fez em 1950 a primeira obra de ampliação do prédio. Durante os primeiros 20 anos, o então Abrigo Dr. João Viana foi mantido apenas com recursos da Liga Espírita de Campos e com o apoio de voluntários. Em 1968 foi firmado um convênio com o extinto Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), hoje SUS.

Em 1980, o abrigo passou pela primeira crise financeira após atrasos nos repasses do governo federal. Somente no final dessa década que a situação mudou. Com a quitação da dívida e consequente investimento, o Hospital Psiquiátrico Espírita Dr. João da Viana tornou-se uma referência no atendimento à saúde mental. Esse título gerou ainda mais renda ao hospital que, nessa época, investiu em imóveis com o objetivo de angariar ainda mais fundos para o hospital. Até hoje, os alugueis desses imóveis ajudam a arcar com as despesas mensais.

Contudo, esse tempo de glória durou pouco. Em 1994, não houve reajuste na quantia repassada pelo governo federal
– o que só voltou a acontecer em 2001, em 2006 e depois em 2015. Desde então, os valores são os mesmos, embora os custos aumentem ano a ano.

A falta de investimento (ou de interesse) seria o motivo que levou a atual situação do Hospital Psiquiátrico Espírita Dr. João Viana. Questionado se havia risco de a unidade fechar as portas bem como fez o Hospital Henrique Roxo em 2017, o diretor José Rolando foi categórico: “as chances são grandes e iminentes”.

Movimento Antimanicomial

Eventos políticos ocorridos em todo o mundo desde 1980 firmaram o que hoje se chama de Luta Antimanicomial. Esse termo é comumente usado para tratar da desinstitucionalização da psiquiatria, que é a extinção progressiva dos chamados “manicômios”. Nessa época foi instaurada uma data para debater o tema, o Dia Nacional da Luta Antimanicomial (18 de maio), marcando as propostas de Reforma Psiquiátrica Brasileira.

Em Campos, acontece há anos a Semana da Luta Antimanicomial. Em 2018, foi realizada uma audiência pública
na Câmara dos Vereadores, quando o assunto foi amplamente debatido. Na ocasião, a coordenadora do Programa
de Saúde Mental da secretaria de Saúde, Elisa Peralva, frisou que “pessoas com transtornos mentais não merecem
ser internadas em manicômios”, mas “integradas à sociedade”

No entanto, sabe-se que, em determinadas situações, somente um hospital psiquiátrico oferece os serviços necessários. De acordo com o diretor do Hospital Dr. João Viana, países que experimentaram a desinstitucionalização da psiquiatria, como os EUA, tiveram de voltar atrás após observarem as consequências.

“Um paciente diagnosticado com doença psiquiátrica precisa ser acompanhado. Quando isso não ocorre da maneira
apropriada, essa pessoa pode gerar inconveniências para a sociedade e, por isso, a questão antimanicomial precisa
ser avaliada em todos os seus vieses. Penso que, diante das circunstâncias as quais o Brasil está inserido, os hospitais
psiquiátricos são muito necessários. Isso porque grande parte das famílias não tem condições financeiras, são desestabilizadas e não sabem o que fazer com um paciente psiquiátrico. É aí que entra o papel dos hospitais”, declarou o diretor.

Ele disse ainda que no Hospital Dr. João Viana estão internados ainda pacientes que, tecnicamente, não deveriam estar ali, mas que não têm autonomia para arcar com as demandas sociais. “Um paciente com alto grau de autismo, por exemplo, e que não têm família, acaba aqui por não ter para onde ir”, explicou.

Questionada sobre o tema, a coordenadora dos CAPS de Campos, Renata Manhães, declarou apenas que o movimento “combate à ideia de que pessoas com sofrimento mental devem ficar isoladas para tratamento”. Ela acrescentou ainda que “estas pessoas têm o direito de viver em sociedade, além do direto a receber atenção, cuidado e tratamento sem que, para isto, tenham que deixar de conviver com outras pessoas. Essa é uma última alternativa”, concluiu.