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Uma fuligem que nunca acaba

Mesmo com o esforço das usinas que se modernizaram, ainda existem produtores que insistem na queima da cana-de-açúcar

Geral
Por Redação
8 de julho de 2018 - 0h01

POR THIAGO GOMES E OCINEI TRINDADE

O problema é antigo e já foi maior. No entanto, em Campos dos Goytacazes, os moradores ainda sentem a chegada do período do corte da cana-de-açúcar. E quem anuncia a época não é apenas o aquecimento da economia local, mas também a fuligem, resultada das queimadas praticadas pelos produtores rurais com o intuito de facilitar o corte da cana. Doenças respiratórias e muita sujeira são alguns desses transtornos. Apesar do processo ser comum na região, a Lei 5.990 de junho 2011 estabelece um prazo para a erradicação da queimada no Estado do Rio de Janeiro, que é 2020 para lavouras implantadas em áreas passíveis de mecanização da colheita e 2024 para áreas não passíveis de mecanização.

Na enquete realizada em uma rede social, leitores do Terceira Via descreveram o que passam quando o assunto é fuligem. Para Lilian Paes, as cinzas não se restringem a bairros. “Ela suja a cidade inteira, além de causar alergias. Desde sempre foi assim. Não há fiscalização”, reclama. A dona de casa Sandra Buchaul concorda. “Entra pela casa, suja roupas no varal, suja a piscina, faz mal à saúde, irrita e dá prejuízo, já que gasto para limpar. Um desrespeito”, frisa.

Fiscalização

A fiscalização de usinas e produtores rurais em relação ao cumprimento das metas da Lei 5.900/2011 fica a cargo do Instituto Estadual do Ambiente (Inea) e, de acordo com o superintendente do órgão, René Justen, o trabalho tem sido feito em Campos. Segundo ele, as usinas só podem receber a matéria-prima de produtores de cana cadastrados no Inea, o que tem facilitado a fiscalização. “Cada produtor recebe um número, com sua propriedade mapeada via satélite”, detalhou o superintendente. O Inea informou que houve propriedades autuadas nas últimas safras, mas não disponibilizou o número.

A lei estabeleceu o seguinte cronograma para as lavouras já implantadas em áreas passíveis de mecanização da colheita: 20% até o ano de 2012; 50% até o ano de 2014; 80% até o ano de 2018 e 100% até o ano de 2020.

Já para lavouras implantadas em áreas não passíveis de mecanização da colheita, o calendário é o seguinte: 20% até o ano de 2016; 50% até o ano de 2018; 80% até o ano de 2022 e 100% até o ano de 2024.

O dispositivo legal considera mecanizável a área cuja declividade seja inferior a 12%, em solos com estruturas que permitam a adoção de técnicas usuais de mecanização da atividade de corte da cana.

O texto da lei também cria condições para que a queimada ocorra. É vetado, por exemplo, atear fogo em áreas a menos de 1.000 metros da sede do município. É preciso comunicar ao Inea com antecedência mínima de cinco dias úteis a data, horário e local da queima.

René Justen explicou que, no caso de queimada clandestina ou criminosa, é de competência do Inea fixar o valor da multa, que varia de acordo com o tamanho da área e o grau de infração. Quem ateia fogo também pode responder judicialmente pela Lei de Crimes Ambientais.

Batalha na Justiça

Em fevereiro de 2010, a partir de uma ação civil pública, o Ministério Público Federal do Rio de Janeiro (MPF-RJ) conseguiu suspender temporariamente as queimadas como parte do processo de colheita da cana-de-açúcar em Campos. A decisão liminar foi proferida pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 2ª Região em recurso impetrado pelo procurador da República Eduardo Santos de Oliveira, autor da ação.

Já em 5 de março de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) firmou a tese de que a eliminação da queima da cana deveria ser planejada e gradual em razão de fatores sociais e ambientais. Na época, o parecer do ministro relator Luiz Fux, ao julgar o Recurso Extraordinário 586224, foi acompanhado pela maioria dos ministros do STF, declarando inconstitucional a Lei 1.952/1995, do Município de Paulínia (SP), que proibia totalmente a queima da palha de cana em seu território. Esta decisão pôs fim a uma discussão travada em território fluminense sobre a constitucionalidade da Lei 5.990/2011, aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) e sancionada pelo então governador Sérgio Cabral, que prevê a redução gradativa da queima da cana.

Asflucan e Sindicato Rural

De acordo com Tito Inojosa, presidente da Associação Norte Fluminense dos Plantadores de Cana (Asflucan), os produtores rurais têm cumprido a lei que prevê a redução gradativa de queimadas nas lavouras de cana. Atualmente, 90% da produção de cana em Campos vêm dos cinco mil produtores que ainda não utilizam a colheita mecanizada. “Por enquanto, só a Coagro possui. É um investimento caro. Buscamos alternativas para ajudar os pequenos. Há um projeto experimental com a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Coagro e uma universidade alemã para testar um equipamento até o fim da safra em setembro. Ainda é incerto sobre sua eficácia. Colher cana crua seria o ideal, porém há riscos para o lavrador como cortes e bichos peçonhentos.

Em 2017, a safra foi de 950 mil toneladas. Este ano, por conta das chuvas, deve chegar a 1,25 milhão. “Deveríamos colher pelo menos três milhões de toneladas, mas falta investimento. A crise nos atingiu. O preço do açúcar no mercado internacional está baixo, mas favorável ao etanol”. Inojosa aponta que há queimadas criminosas e irresponsáveis que não têm a ver com o corte de cana. “Há caçadores de preás, pessoas que queimam lixo e espalham mais fuligem”, fala.

O presidente do Sindicato Rural de Campos, Ronaldo Bartholomeu, concorda que há queimadas provocadas sem relação com a cana. “Para queimar, precisamos de autorização do Inea. É uma exigência. Nenhum produtor quer ser multado. A consciência do produtor mudou”, diz. Bartholomeu não opina sobre o futuro dos trabalhadores rurais após mecanização. “É o setor que mais emprega na safra. Teremos que buscar soluções”, pontua.

Crédito: Mayke Toscano/Gcom-MT
Colheita da cana de açúcar em Mato Grosso.

Colheita mecanizada

O presidente do Sindicato dos Produtores de Açúcar e do Álcool do Norte Fluminense, Frederico Paes, que também é presidente da Cooperativa Agroindustrial do Estado do Rio de Janeiro (Coagro), conta que, nos últimos anos, a região avançou em tecnologia e a mecanização da colheita tem substituído os incêndios nos canaviais. Ainda segundo Paes, entre indústria e lavoura, a Coagro investiu mais de R$ 26 milhões em processos que dispensam a queima da cana. Desses investimentos, nas lavouras, destacam-se seis colheitadeiras de grande porte e outras quatro de pequeno porte, além de tratores e caminhões que dão suporte às máquinas que fazem a colheita. Já na indústria, foi implantado equipamento que recebe a cana crua e faz a limpeza da palha a seco.

“As queimadas já foram bem mais recorrentes. Além da lei, há uma consciência ambiental dos produtores de que a queimada empobrece o solo. Até os pequenos produtores, que não tem colheita mecanizada, estão evitando queimar a cana”, comentou Frederico.

Risco ambiental

Para o coordenador do curso de Engenharia Ambiental do Instituto Federal Fluminense (IFF), Gilmar Costa, as queimadas causam impactos no solo e ao ar. “Devemos pensar em tecnologias que conservem os recursos naturais.  A queima da palha da cana gera emissão de C02 (gás carbônico), um dos gases do efeito estufa. A palha desprotege o solo e reduz o teor de umidade do solo, além de afetar uma série de organismos. A emissão de poluentes particulados com cinza ou fuligem afeta que tem problema respiratório. Há questões em debate sobre a queima da cana devido aos problemas sociais e de empregabilidade, mas do ponto de vista ambiental é injustificável com prejuízos no ar, no solo e na saúde”.

Fuligem na História e Literatura

A fuligem afeta Campos e diferentes regiões do Brasil. Na Literatura, ela encontrou inspiração. No século 19, o baiano Castro Alves escreveu o poema “A Queimada”. Já o paulista e modernista Cassiano Ricardo, na obra “Martin Cererê”, de 1928, cita a fuligem em versos.  Em Campos, nos anos 1970 e 1980, o professor e historiador Hélio Coelho também escreveu sobre o tema. Ele atuou em campanhas contra usinas de açúcar que emitiam poluentes. Conseguiu, na época em que foi vereador, aprovar lei que exigia a instalação de filtros nas indústrias. Ele também é contra as queimadas. “Há tempos, debatemos essa questão. Quando não há consenso, apela-se às artes e à literatura”, diz.  Em 1984, escreveu o poema “Essa terra, essa cana”. Segue um trecho:

Essa terra, essa cana…

Cadê o vento que vinha

Suave do canavial?

É só fagulha, fuligem,

Poluição infernal.

Essa terra tá doente,

Palavrório não me engana

É só cana na fazenda,

Essa terra, essa cana…