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Quilombolas ainda vivem nas senzalas em Machadinha

Comunidade de Quissamã mantém viva a cultura do povo negro

Geral
Por Redação
18 de abril de 2015 - 17h00

A comunidade de Quissamã mantém viva a cultura do povo negro (Foto: Silvana Rust)

Parte do Brasil Império ainda está vivo na comunidade quilombola de Machadinha, em Quissamã. Ali, 68 famílias que pertencem à décima geração de escravos vivem na mesma senzala ocupada por seus antepassados. Hoje, embora muitos costumes tenham se perdido com a chegada das inovações tecnológicas, ainda é possível enxergar as raízes preservadas nas construções, no ar bucólico e na memória do povo que se orgulha do passado e da importância dele na história do país.

Até 2008, a comunidade ainda se parecia com aquela do século 19: a senzala era de chão batido, as telhas ainda eram as confeccionadas pelos escravos usando o molde das coxas e não havia divisão de cômodos nas pequenas moradias. Após a reforma e restauração das alas pela Prefeitura de Quissamã, os moradores ganharam mais qualidade de vida, mas a essência não se perdeu. No local onde antes eram as instalações da cavalariça hoje funciona a Casa de Artes Machadinha, um espaço feito para relembrar o passado e apresentá-lo aos moradores mais jovens e também aos turistas.

Solar de Machadinha (Foto: Silvana Rust)

Segundo o guia Bruno Santos, escolas da região costumam organizar visitas ao local e turistas de outros estados e também de outros países, como França, Alemanha, Angola e Bélgica, também conheceram de perto a história da comunidade. Além disso, o filme Maria Mãe do Filho de Deus também foi filmado no local. Ele explicou que, durante o processo de reforma, chegaram a cogitar a hipótese de restaurar também o Solar de Machadinha, construído em 1867 e que pertenceu ao Visconde de Ururaí, Manoel Carneiro da Silva. A casa grande é tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac) e encontra-se em ruínas, mas até o momento ainda não existe uma previsão para que seja reconstruída. Na opinião do guia, o adiamento da reforma do Solar contribui para a valorização da história dos negros. “Hoje Machadinha possui o maior conjunto de senzalas do estado do Rio ainda habitado e é um ponto turístico de muito significado para Quissamã. Hoje os olhares são voltados para os negros. Se a casa grande fosse restaurada poderia desviar a atenção dessa parte da história que muitas vezes é esquecida em meio à luxuosa edificação dos viscondes”, disse.

As obras de restauração da senzala também incluíram a construção de uma escola e um posto médico e também à reforma da Igreja Nossa Senhora do Patrocínio e do antigo armazém, que deveria cumprir a função de mercado, mas vem sendo utilizado como bar. No entorno da comunidade não existe nenhum estabelecimento comercial. “Eles reclamam muito do isolamento. Não existe nem mesmo um restaurante para os visitantes. É necessário esperar o ônibus, que passa pelo local apenas duas vezes por dia, para conseguir resolver qualquer pendência”, de acordo com Bruno.

Entre as tradições mantidas no cotidiano dos moradores de Machadinha estão as danças populares, como o Jongo, caracterizado pelas cantorias e pelo som de tambores e que é considerado a identidade da comunidade e Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira; e também o Fado “africanizado”, dança típica portuguesa com instrumentos de percussão. Atualmente, 60 pessoas fazem parte do grupo de jongo da comunidade que já se apresentou em outros estados e ganhou prêmios relacionados à cultura. A culinária típica das senzalas também vem sendo lembrada por meio do projeto Raízes do Sabor.

Os jovens Marina Carvalho Ribeiro, de 18 anos, e Arilson Silva Júnior, de 17, também gostam da comunidade. Eles contaram que chegaram a sair de Machadinha, mas voltaram porque “não existe lugar melhor”. “Aqui todo mundo é amigo, todo mundo se conhece. É ruim de transporte e a falta de comércio também é um ponto negativo, mas estamos acostumados”, disse Marina.

De acordo com uma das moradoras mais antigas de Machadinha, Maria da Glória Azevedo, de 82 anos, o lugar é “um paraíso”. Ela mora com a sobrinha e o cunhado em uma das moradias reformadas da senzala. “Amo Machadinha. Aqui é muito tranquilo, pacífico. Nasci, cresci e vou morrer aqui”, contou.

HISTÓRIA

O local onde hoje é a comunidade Machadinha, em meados do século 17 fazia parte da Capitania de São Thomé, que compreende o espaço entre a praia de Farol e município de Cabo Frio. De acordo com o guia, a área pertencia aos sete capitães, fazendeiros que ajudaram o império a combater os franceses, e pediram as terras como pagamento pelo serviço. O nome “Machadinha” foi escolhido nesta época devido às ferramentas de ossos e pedras utilizadas pelos índios Goitacazes que viviam ali.

De acordo com o guia, as terras da Fazenda de Machadinha foram adquiridas em meados do século 18 por João Carneiro da Silva, contratador de diamantes da Coroa portuguesa. Quando morreu, a área passou a pertencer ao filho, Manoel Carneiro da Silva, e com a morte deste, seu filho, João Carneiro da Silva, primeiro Barão de Ururaí, assumiu a fazenda. Em 1851, João Carneiro da Silva morreu e a área foi herdada pelo sobrinho, Manoel Carneiro da Silva, filho do Visconde de Araruama e que vinha a se tornar Visconde de Ururaí.

Manoel Carneiro da Silva foi casado com a filha do Duque de Caxias, Ana do Loreto Viana de Lima e Silva. A Casa da Fazenda de Machadinha foi construída entre os anos de 1863 e 1867, projeto do arquiteto alemão Antônio Becher.

Nesta época, a Fazenda de Machadinha chegou a ter oito mil escravos. Parte deles, os que trabalhavam na casa grande, vivia nas senzalas que ainda estão ocupadas. Essas moradias eram uma espécie de “privilégio” dos escravos mais “obedientes”. Segundo Bruno, Quissamã é conhecida como a cidade onde os escravos não eram maltratados, mas existem controvérsias. As moradias desses escravos eram dividas por uma parede e tinham porta e janela. A estrutura é a mesma dos dias atuais e ali eles podiam constituir família, o que significava mais mão de obra para o proprietário da fazenda, e também desestimulava a fuga.

Quando o Visconde de Ururaí morreu, a propriedade passou a pertencer a sua filha, Ana Francisca de Queiróz Matoso, que a conservou até falecer, em 1924. Posteriormente, os herdeiros venderam as terras para a Cia Engenho Central. Em 1970 a casa foi fechada e em 1977 foi tombada pelo Inepac. Atualmente, as ruínas da casa pertencem à Prefeitura de Quissamã.

Quissamã também é um dos poucos municípios com nome de origem africana. A área foi batizada ainda na época da exploração das terras, quando os índios Goitacazes viviam ali. Os sete capitães, primeiros proprietários das terras, encontraram um único negro no local. O negro disse ter vindo de Kissama, localidade próxima de Luanda, na África. A palavra significa “fruta da terra entre o rio e o mar”.